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CAPÍTULO 2 – A FORMAÇÃO DA CIDADE E O MARCO MODERNO

2.1. A CIDADE: ANTES, DURANTE E “PÓS-MODERNIDADE”

A compreensão do que é a cidade hoje está inextricavelmente relacionada ao estudo de sua origem e a análise dos elementos essenciais do urbanismo enquanto “forma particular ou padronizada do processo social” (Harvey, 1980, p. 168). A cidade é, antes de tudo, fruto de um processo social particular que se desdobra em um meio espacial estruturado, moldado pelo ser humano. E, para existir enquanto ambiente construído foi necessário a constituição de um modo de organização social bem sucedido de produção, armazenamento e distribuição de um excedente de bens e serviços (Harvey, 1980).

Isso quer dizer que a história da cidade é também a história do desenvolvimento econômico, da organização social e da capacidade produtiva da sociedade, sobre estas bases se sustentam os processos sociais, políticos e intelectuais. Em conjunto, esses elementos são determinantes para a produção e reprodução da vida concreta no espaço urbano (Harvey, 1980).

Embora a economia tenha sido uma condição fundamental para existência de qualquer sociedade, nem sempre o mercado e a troca assumiram a importância que eles têm hoje para o funcionamento do sistema social e da rede urbana. Diferentes formas de integração entre sociedade, política e economia existiram no decorrer da história humana, inclusive antes do desenvolvimento das relações de mercado e da sua criação mais importante, a cidade (Polanyi, 1948). Mas, foi exatamente as transformações nessas relações sociais, econômicas e políticas, que em um dado momento tornaram possível a criação da cidade e da civilização urbana.

O urbanismo surge concomitante ao aparecimento do mercado e de uma organização social estratificada, com acesso diferenciado aos meios de produção. Assume diversas formas, dependendo da função do centro urbano em relação ao padrão de circulação do excedente socialmente produzido, padrão que se tornou

45 cada vez mais complexo com a evolução da sociedade, abrangendo desde a circulação de pessoas, bens e serviços à circulação de investimentos, dinheiro e crédito (Harvey, 1980).

Da polis grega à cidade contemporânea, o urbanismo como uma prática social tem sido notadamente coerente com o status quo (Harvey, 1980). E, é neste sentido que Lefebvre (2008) ao traçar uma linha do tempo do “fenômeno urbano” escolhe para cada categoria de cidade uma designação que caracteriza exatamente a organização social, política e econômica dominante no período (cidade política, cidade mercantil, cidade industrial, “cidade urbana”). Por outro lado, a própria história revela que é exatamente na cidade que se criam as condições necessárias à ruptura dos sistemas preestabelecidos ou como Jacobs (1970) defendia, o lugar por excelência da criação, do surgimento do novo. Tanto Harvey (1980) quanto Lefebvre (2008) percebem a sociedade urbana e, em particular, sua forma espacial, a cidade, como o lugar do “possível”:

A cidade (forma construída) e o urbanismo (forma social) podem (...) funcionar para estabilizar um modo de produção particular (ambos podem ajudar a criar condições de autopreservação desse modo). Mas, a cidade pode, também, ser o lugar das contradições acumuladas e ser, por isso, o berço provável de novas formas de produção. Historicamente, a cidade parece ter funcionado de forma variável, como pivô em torno do qual um dado modo de produção se organiza, como centro de revolução contra a ordem estabelecida, e como centro de poder e privilégio (contra o qual se revolta). (Harvey, 1980, p. 174).

O urbano (“abreviação de sociedade urbana”) define-seportanto não como realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de maneira recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtualidade iluminadora. (Lefebvre, 2008, p. 26).

Com base nas afirmações acima e admitindo-se a importância acerca do estudo das relações entre a cidade, urbanismo e economia, para a compreensão da produção do espaço urbano contemporâneo, julga-se útil estabelecer uma aproximação entre os processos econômicos, sociais e históricos subjacentes à forma urbana, uma vez que o estudo em conjunto desses elementos pode indicar vias alternativas aos padrões de desenvolvimento urbano atuais, que tendem a

46 intensificar as desigualdades sociais e a transformação do ambiente natural, através da generalização de processos de alto impacto social e ambiental no espaço urbano, tais como a urbanização em grande escala, a concentração fundiária, o esgarçamento do tecido urbano, dentre outros (Monte-Mór, 1994).

Este trabalho discute particularmente os processos recentes de transformação urbana em cidades do sudeste paraense, explorando possíveis relacionamentos entre este cenário urbano particular e processos que seguem tendências globais, assumidos como manifestações locais das contradições da expansão capitalista sobre a cidade (Fix, 2009; Harvey, 2005). Busca-se também explorar o quanto os efeitos negativos dessa trajetória podem ser potencializados quando os interesses políticos e econômicos são postos acima das dimensões social, urbanística e ambiental da cidade.

Acredita-se, que é possível a partir de um controle social efetivo e do realinhamento das instituições em favor do bem comum, a construção de novas formas espaciais mais compatíveis com os desejos da sociedade como um todo. E neste percurso o papel do arquiteto e urbanista é fundamental, bem como sua compreensão dos processos socioeconômicos e dos instrumentos práticos para a modelagem e qualificação do espaço urbano em favor de um modo de vida mais adequado a todos, respeitando as especificidades locais e potencializando a relação equilibrada com a natureza.

Feito este pano de fundo, o objetivo a seguir é recapitular a trajetória de evolução da cidade, como ela surge, quais são os processos subjacentes ao seu funcionamento, quais suas qualidades essenciais, sua função original e os novos papéis que ela assume no decorrer da história (cidade política, mercantil, industrial, urbana6).

Para efeito metodológico, tomou-se como ponto de referência para análise das transformações da e na cidade, a modernidade. Essa escolha se deve ao caráter particular dos eventos que se desdobraram até a criação da moderna sociedade de mercado, os quais desencadearam profundas transformações no sistema social,

6 Categorias utilizadas por Lefebvre (2008) para traçar uma linha evolutiva das civilizações urbanas e da origem da cidade.

47 político, econômico e cultural e, atingiram o clímax com a Revolução Industrial, dos séculos XVIII e XIX.

O processo de industrialização, além de caracterizar a sociedade moderna foi essencialmente um fenômeno urbano (Lefebvre, 2001), e marcou o início de um novo período da relação entre a sociedade e o ambiente construído e natural. Distingue-se, portanto, neste trabalho três momentos da história da cidade tendo como referência a modernidade: a cidade anterior à modernidade, a cidade na modernidade e cidade contemporânea (“pós-moderna”).