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A Cidade do Recife pelo Realizador Cláudio Assis

SEGUNDA PARTE: ITINERÂNCIAS URBANAS NO CINEMA

4. O ESPAÇO CINEMATOGRÁFICO

6.1 A Cidade do Recife pelo Realizador Cláudio Assis

Cláudio Assis Ferreira é natural da cidade de Caruaru e, desde sua adolescência, tem uma relação bastante íntima com o cinema. Durante os anos que viveu no agreste pernambucano, teve participação ativa em ações de cineclubismo, como no Cine Caruaru. Além de ter iniciado formação teatral com ensaios na Casa de Cultura de Caruaru.

Sua ida para a cidade do Recife, no final da década de 70, foi ocasionada pela necessidade de seu crescimento artístico e no investimento em suas ideias, roteiros e contatos. No Recife, o cineasta cursou dois e anos e meio de Economia, na Universidade Federal de Pernambuco, abandonando-o em seguida e mudando para Comunicação Social. Neste período ele já trabalhava com cinema e sua primeira produção audiovisual foi o curta-metragem Padre Henrique — Um crime político em 1987.

O realizador passou a se dedicar integralmente ao cinema a partir dos anos 90. Em 1993, o poema Soneto do desmantelo azul do poeta Carlos Pena Filho (1969) foi a inspiração para realizar o curta-metragem homônimo. Uma releitura do poema de Pena Filho ambientada entre as cidades de Olinda e Recife que fora filmada em preto e branco. Ainda nesta década, Assis dirigiu os curtas-metragens Viva o cinema, em 1996, e Texas

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Hotel, em 1999.

A virada para o século XXI foi decisiva para Cláudio Assis. Suas experiências anteriores o motivaram à realização de seu primeiro longa-metragem. Encontramos o cenário principal do seu último curta-metragem retrabalhado como uma das principais locações já em seu primeiro longa: Amarelo manga, de 2002.

A estética de grande parte da obra de Assis é acompanhada pela escolha de narrativas vividas nos espaços urbanos marginalizados. Em sua filmografia, a cidade do Recife e seu lado da marginalidade só não aparecem em duas produções. A primeira delas é Baixio das bestas, lançada em 2006, que tem o canavial como ambiência e, em 2016, o realizador pernambucano lançou Big jato83, filme passado no sertão pernambucano. Em 2011, em seu terceiro longa, A febre do rato, Assis exibe a atmosfera metropolitana do Recife em preto-e-branco.

Entendemos que o cinema é para Cláudio de Assis uma forma de observação da sociedade e uma maneira de lançar um olhar para ela. Sua linguagem audiovisual cuja narrativa tem cunho crítico e visceral torna-se, assim, ferramenta que contribui para uma transformação da percepção dos ambientes nos quais suas produções se passam. Recife surge no filme de Assis como espaço urbano que deve ser pensado para além das fronteiras geográficas, econômicas, temporalidades disciplinares e dos âmbitos das instituições normativas. Estética, narrativa e experiência urbana surgem reinterpretadas como traços de um possível aprendizado a partir da cidade e de suas “falas”. As imagens cinematográficas ali construídas podem ser tratadas à luz de construções visuais que atuam no trânsito vital entre experiência estética, política e arte.

As construções visuais dos espaços nas obras do realizador Cláudio Assis são elementos cinematográficos de papel relevante para a compreensão de suas produções. Percebemos que a contextualização dos espaços percorridos, habitados e vividos pelos personagens das tramas é um caráter fundamental no filme A febre do rato. No trabalho de composição da narrativa é o espaço que vai localizar os personagens na história a ser contada; ele que indicará o contexto a ser explorado subjetivamente.

As paisagens urbanas do Recife construídas pelas imagens de Assis conciliam-se com as imagens poéticas de Bachelard (1978), imagens que não ecoam de um passado,

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A narrativa foi inspirada na obra literária homônima do escritor Xico Sá e narra à formação de caráter, a revelação da imagem do sertanejo como um homem forte que reage e que parte em busca de um sonho.

150 mas de uma intuição e experiência. O Recife lido pelo cineasta e por seus personagens dialogam com aquele Recife visto pelo espectador, a sonoridade da cidade, por exemplo, torna-se questão de experiência e de repercussão. Em outras palavras, e novamente recorrendo a Bachelard (1978), o ser de uma imagem poética pode ser determinado após ela ser verificada, sentida e percebida. É preciso percorrer um caminho duplo para se chegar à sensibilidade da imagem: a repercussão e a ressonância proporcionadas pela imagem precisam ser reconhecidas ou identificadas para deixarem suas marcas.

As ressonâncias se dispersam nas diferentes imagens da cidade vista em A febre do

rato. E a repercussão é o aprofundamento das relações experiências com o filme na própria

existência do observador/espectador ou, nas palavras de Bachelard (1978, p. 187): “na ressonância, ouvimos o poema, na repercussão nós o falamos, pois é nosso. A repercussão opera uma revirada do ser”.

Na obra realizada por Cláudio Assis, temos um exemplo da relação que podemos ver nas várias sequências nas quais o protagonista Zizo aparece com amigos em bares na rua da cidade. A vivência da rua exibida no filme demonstra claramente a liberdade com a qual os personagens vivem a cidade e seus espaços públicos, não há brechas para uma ordem. É o prazer e o lazer oriundo do sentir a cidade, passear por ela, que nos ressalta ao final da experiência de assistir ao filme. Mais precisamente, é necessário percorrer o caminho duplo da ressonância e repercussão para se chegar à sensibilidade da imagem. Podemos, ainda, conceber essa sensibilidade com a imagem da cidade como uma apropriação desse espaço urbano e coletivo como um espaço da intimidade. O ser de uma imagem poética só pode ser determinado após ser sentido, suas marcas precisam ser conhecidas ou identificadas para que a apreensão se consuma.

Percebemos que as questões sobre o espaço cinematográfico presentes em sua obra são contribuições relevantes para uma reflexão sobre o olhar que temos para a cidade que habitamos. A inquietação do olhar para a cidade do Recife no filme A febre do rato permite adentrar um domínio em que o verdadeiro, o inverossímil, o ficcional, o idealizado, a fantasia e o incrível se misturam e combinam. Tanto Zizo, o poeta personagem desse longa-metragem mencionado, como Assis, o poeta-realizador, desenvolvem um saber sobre a cidade a partir das suas experiências. As imagens da cidade do Recife transformam-se em descrições desse saber, como se cada plano fosse um verso dessa construção poética.

151 A narrativa e estética da cidade do Recife ao longo do filme A febre do rato é uma recriação poética, caótica e aberta da imagem da cidade. A inquietação e o desassossego apresentados no filme como maneiras de se viver o espaço da cidade nos chegam como gritos de uma imagem-poética que convocam a atenção do espectador. A imagem da cidade parece não ter a intenção de mascarar os defeitos que a cidade tem, muito embora não concebesse o filme como uma representação das problemáticas, defeitos da Recife. Sentimos que a obra nos deixa a “essência” da cidade através de suas construções audiovisuais.

Identificamos no filme a construção de um espaço-pele-urbano do Recife que revela um olhar de indagação sobre como as habitantes da cidade a vivem. Essa sensação é vinda por intermédio da câmera subjetiva que parece dar visibilidade a saberes populares, o senso comum, as pequenas tragédias da vida cotidiana, os saberes ordinários e intuitivos que se tornam muitas vezes desvalorizados, esquecidos e marginalizados. A cidade como um tecido fragmentado por todas as relações existentes no seu interior.

A dinâmica do filme de olhar para os espaços urbanos é nada mais do que um ensaio crítico das reelaborações das formas de habitar a cidade. A maneira de olhar a cidade torna o espaço dentro da obra cinematográfica um elemento relevante na narrativa e na construção de afetos sobre a cidade. Em A febre do rato, o espaço urbano é uma temática central, um novo olhar para o ritmo da vida cotidiana contemporânea é assumido pela sua narrativa. A ambiência espontânea e arbitrária revela as atrofias diante do ser da cidade e acrescenta, aos deslocamentos mediados por meios mecanizados, novas possibilidades de deriva: mudanças aleatórias de direção, passeios por ruas e bairros esquecidos, novas formas de percorrer a cidade, errâncias diversas, guiadas pelos próprios pés.

As imagens da cidade criadas por Assis reafirmam, com Debord e Jacques Fillon (1954), a concepção de que grandes cidades são favoráveis à deriva. A deriva é compreendida aqui como a técnica de andar sem rumo, de maneira lenta, afetando ou deixando-se afetar, no trajeto, pelos cenários e possibilidades de percurso. O vagar pela cidade incitado por Assis em A Febre do Rato é exemplo desta deriva. A cidade de Recife é vista como um espaço para vivência no qual a ocupação através do caminhar é possível. Uma cidade aberta para as experiências estéticas baseadas nas afetividades dos transeuntes, ou podemos dizer ocupantes, com os espaços da cidade, suas ruas, suas possibilidades de

152 caminhar, errâncias e vivências.