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A cidade no contexto do capitalismo na era das finanças

2 AS RELAÇÕES ENTRE CIDADE E CAPITALISMO

2.3 A cidade no contexto do capitalismo na era das finanças

No contexto contemporâneo, diversos autores buscam demonstrar que existem mudanças significativas nos padrões de urbanização no mundo. Oliver Mongin (2009), por exemplo, afirma que a cidade está cedendo espaço para uma dinâmica metropolitana onde

fluxos se sobrepõem aos lugares: “entramos no mundo do pós-cidade, aquele no qual as entidades ontem circunscritas a lugares autônomos doravante dependem de fatores exógenos, a começar pelos fluxos tecnológicos, pelas telecomunicações e pelos transportes” (MONGIN, 2009, p.16). Bárbara Freitag (2006) analisa a megapolização como um padrão específico de urbanização, decorrente de uma “transformação rápida e recente de uma cidade ou metrópole em megalópole” (FREITAG, 2006, p. 153), onde há transbordamento dos limites naturais e administrativos da cidade, que acabam por torná-la insustentável. Mark Davis (2006) estuda o crescimento das cidades e sua extensão àqueles contextos antes rurais, quando existe uma fusão entre o rural e o urbano, onde o segundo se sobrepõe ao primeiro. Para Davis (2006) temos que repensar os processos de periferalidade, que já não se caracterizam mais somente pela segregação, mas pelo afastamento dos ricos das áreas centrais, com o crescimento dos condomínios fechados. Esse aspecto é também identificado por Caldeira (2000), quando estuda a segregação na cidade de São Paulo.

A mudança nos padrões de urbanização, entretanto, não é fenômeno isolado. Ela ocorre ao mesmo tempo em que transformações, também significativas, acontecem no sistema capitalista de produção. O espaço urbano é construído numa intrínseca relação com o sistema de acumulação, mediante uma constante de reciprocidade e dominação entre capitalismo e cidade: assim como os capitalistas impõe seus interesses no espaço urbano, o espaço urbano também limita o capitalista (HARVEY, 1989). Por isso, podemos concordar com Ribeiro (2007) quando afirma que “o destino das grandes cidades está no centro dos dilemas contemporâneos das sociedades” (RIBEIRO, 2007, p. 21) o que a coloca como fundamental para pensar questões e mudanças recentes, como a mundialização da economia e a globalização em uma sociedade informacional.

As transformações socioeconômicas em curso desde a segunda metade dos anos 70 do século XX, em especial as decorrentes da globalização e da reestruturação socioprodutiva, aprofundam a dissociação engendrada pelo capitalismo industrial entre progresso material e urbanização, economia e território, Nação e Estado (RIBEIRO, 2007, p. 21).

A passagem da modernidade para a pós-modernidade24 no campo urbano atende a premissa de superar a ideia da cidade como um sistema racionalizado e automatizado de produção e consumo de massas. No modernismo está presente a estratificação de classe,

24 O modernismo teve importante relação com a urbanização, era um fenômeno urbano explosivo, marcado pela imigração para as cidades, urbanização, industrialização, “reorganização maciça dos ambientes construídos e dos movimentos urbanos” (HARVEY, 1989, p. 33). Os movimentos modernistas vêm para lidar com as expressões desse momento histórico marcado pelas ideias do iluminismo e do positivismo.

substituída, então, no pós-modernismo, pelo individualismo e empreendimentismo, marcados pela posse e aparência (HARVEY, 1989). Esse processo marca a produção da cidade, também a arquitetura, a arte e o planejamento urbano, onde “o processo urbano é visto como algo incontrolável e caótico no qual a anarquia e o acaso podem jogar em situações inteiramente abertas” (HARVEY, 1989, p. 49). Marcados pela necessidade de considerar “as histórias locais, desejos, necessidades e fantasias particulares” (HARVEY, p. 1989, p. 69), atende fortemente à criação de novas necessidades sociais.

O capitalismo na era das finanças acirrou a competição entre as cidades que buscam promover um “bom clima para os negócios”. Por um lado, a crise econômica e a diminuição dos investimentos públicos no campo social trouxeram consequências, como parques industriais e equipamentos obsoletos e a popularização de áreas centrais – com o aumento de moradores de rua, imigrantes desempregados, entre outros. Por outro lado, a dinâmica econômica global alterou geograficamente as relações de produção em decorrência da redução dos custos do transporte e de barreiras espaciais, tornando a distância das matérias-primas e do mercado aspecto de menor importância no rearranjo global.

Dessa forma, para além do fato de as cidades terem retratado aspectos centrais do capitalismo financeiro como a segregação socioespacial (herança histórica), a competição entre as cidades tem sido evidente. Os governos buscam, então, a qualquer forma e sob quaisquer consequências, tornar as cidades atrativas aos capitais financeiros. Assim, estão também condicionadas aos imperativos econômicos:

O que acontece com a cidade? Suas influências sobre a produção e a produtividade, sobre as trocas de bens, são levadas em conta, asseguradas, controladas, em nome de um controle geral sobre o espaço na sociedade. Nela mesma, ela é somente objeto de uso legado pelo passado, tornada objeto de troca e de consumo ao mesmo título que as “coisas” negociáveis. Ela não tem nenhum privilégio, ela não atrai nenhuma atenção especializada. Até o dia que sobrevém algo de novo, que subverte os cálculos triviais da rentabilidade (LEFEBVRE, 1999, p. 158).

A competição e sua consequente desregulamentação são perpetuadas sob o discurso da necessidade de receber investimentos, de gerar desenvolvimento, de ser uma resposta às crises econômicas, até mesmo através da geração de empregos. Nessa relação se reestabelece, de diferentes formas, a renda fundiária da terra nas particularidades do capitalismo financeiro. Nesse contexto, o Banco Mundial, além de sua participação através dos programas de ajuste estrutural no sentido de promover a mercantilização e financeirização da moradia, tem importância porque dissemina esse modelo de política (ROLNIK, 2015), pelo desenvolvimento teórico e prático desse padrão. Outras organizações internacionais também

vincularam seus empréstimos a iniciativas de assistência técnica realizada por consultores a governos e gestores locais. Além disso, houve a participação dos representantes do Banco em fóruns, seminários e formações com ministros, governantes e gestores (ROLNIK, 2015; FERNANDES, 2001).

Nesse ínterim, tem destaque o financiamento de projetos de revitalização de áreas centrais, principalmente de centros históricos, e de renovação de antigas áreas desativadas – como portos, centros industriais, entre outros. Além disso, acontece a criação de novas centralidades nas cidades, como espaços de circulação do capital no meio ambiente construído (FIX, 2011). Para Maricato (2014, p. 18), “o processo de assalto às econômicas nacionais, com propostas de renovações urbanas que incluem grandes obras e flexibilização normativa urbanística [...] é uma das estratégias regulares da globalização neoliberal”. Dessa forma, as cidades representam papel fundamental para a acumulação capitalista, em decorrência de suas possibilidades aos meganegócios, obras de infraestrutura e edificações (MARICATO, 2014). Diante desse cenário, “Dar determinada imagem à cidade através da organização e de espaços urbanos espetaculares se tornou um meio de atrair capital e pessoas (do tipo certo) num período (que começou em 1973) de competição interurbana e de empreendimentismo urbanos intensificados” (HARVEY, 1989, p. 92).

As tendências dessa competição podem ser normatizadas em sete questões que lhe servem como base: i) a ideia do “crescimento em primeiro lugar” é que determina as ações, onde a produtividade sobrepõe o campo social; ii) a lógica de mercado penetra no urbano, devendo a política urbana funcionar como os mercados competitivos; iii) a concorrência para empréstimos individuais baseada na possibilidade de escolha das agências de financiamento, onde ações como privatização e desregulamentação estão presentes; iv) o neoliberalismo licencia uma postura agressiva das elites e dos Estados, e as cidades devem estar atentas e monitorar oportunidades de promoção, assim como investir em melhores práticas para não ficar para trás na luta competitiva por recursos; v) apesar da linguagem de inovação, aprendizagem e abertura presente no discurso neoliberal, estão por trás práticas associadas a uma política urbana de repertórios baseadas em subsídios para o capital; vi) aquelas cidades que não cumprem os acordos estabelecidos podem ser punidas, e; vii) as cidades se encontram na linha de frente da hipertrofia do bem estar social e da resistência à neoliberalização (PECK; TICKELL, 2002).

A relação entre a adaptação dos países à globalização e a reestruturação do Estado foi acompanhada no plano urbano pela ideia de cidade global e pelo discurso do Planejamento Estratégico (FIX, 2011). A receita para a inclusão das cidades na dinâmica competitiva estava

ligada à criação de planos que superassem aqueles construídos no Modernismo, que tinham por base a racionalidade, o zoneamento, e passem a ter como objetivo a requalificação urbana.

Animação que se expressa na convergência entre governantes, burocratas e urbanistas em torno de uma espécie de teorema-padrão: que as cidades só se tornarão protagonistas privilegiadas, como a Idade da Informação lhes promete, se, e somente se, forem devidamente dotadas de um Plano Estratégico capaz de gerar respostas competitivas aos desafios da globalização (sempre na língua geral dos prospectos), e isto a cada oportunidade (ainda na língua dos negócios) de renovação urbana que por ventura se apresente na forma de uma possível vantagem comparativa a ser criada (ARANTES, 2000, p. 12).

Os planos, ou o planejamento estratégico25 que passa a ser o condutor das ações na cidade, “combinaram-se perfeitamente ao ideário neoliberal que orientou o ‘ajuste’ das políticas econômicas nacionais por meio do Consenso de Washington” (MARICATO, 2014, p. 19). As cidades deveriam se adequar a esse ideário que, como colocamos anteriormente, é parte das orientações dos organismos internacionais, baseadas em princípios como a privatização, mediante a adoção de termos empresariais para gerir a cidade.

[...] o plano estratégico cumpre o papel de, ao mesmo tempo, desregular, privatizar e fragmentar, dando ao mercado um espaço absoluto reforçando a ideia da cidade autônoma que necessita instrumentalizar-se para competir com as demais na disputa por investimentos, de modo a transformá-la em uma “máquina urbana de produzir renda”. A cidade deve agir corporativamente (leia-se, minimizando os conflitos internos) para sobreviver e vencer (MARICATO, 2014, p. 19-20).

Arantes, Vainer e Maricato (2000) apresentam, no livro A Cidade do Pensamento Único, a forma como o planejamento estratégico assumiu um lugar central na gestão das urbes. Isso se deu através das ideias de cidade-corporativa, cidade-pátria, cidade-mercadoria, cidade-empresa, onde além da lógica empresarial, há o retorno ao civismo e ao patriotismo, e a cultura tem lugar central, pelo reforço dos projetos de revitalização urbana. Ainda que na Modernidade já houvesse ligação das cidades com a divisão social do trabalho e com a acumulação capitalista, nesse contexto, do planejamento estratégico, “há algo novo a registrar [...] as cidades passaram elas mesmas a serem geridas e consumidas como mercadorias” (ARANTES, 2000, p. 26).

Decorrem do planejamento estratégico as ideias de empresariamento urbano (VAINER, 2000), onde a cidade deve ser gerida conforme uma empresa; e de gerenciamento urbano, dando lugar ao empreendedorismo citadino. Esse teve papel importante na passagem

25 Importante destacar que o planejamento é central no socialismo, mas sua direção é dada pelo projeto ético

do fordismo para o modelo de acumulação flexível, em decorrência de sua ênfase na cidade/localidade, e não no Estado-Nação (HARVEY, 1996). Toma forma como uma das soluções para os problemas econômicos decorrentes da reestruturação produtiva e dos ajustes fiscais nas últimas décadas. Diante de um retraimento dos regimes de bem-estar social, os programas neoliberais que penetram governos nacionais e locais transformam as cidades em laboratórios de marketing urbano, mediante zonas especiais de promoção econômicas e megaprojetos globais (ROLNIK, 2015). Dessa forma, o empreendedorismo urbano não é resultado somente de expressões locais, mas também “reflects the powerful disciplinary effects of interurban competition”26 (PECK; TICKELL, 2002, p. 393).

Quando da crise dos anos 1980 e seus reflexos urbanos – parques industriais e equipamentos obsoletos, centros ocupados de imigrantes e desempregados – a receita da revitalização toma forma: “transformá-las por meio da construção de grandes equipamentos culturais (museus, óperas e afins), símbolos arquitetônicos que aquecem o mercado imobiliário e da construção civil, dão um lustre ‘moderno’ à figura do governante, dinamizam o turismo e revigoram o chamado ‘marketing da cidade’, ao preço de uma forte valorização e elitização” (FERREIRA, 2014, p. 08).

Para Harvey (1996), o empreendedorismo urbano se estabelece através de quatro opções básicas, que na prática ocorrem de forma combinada: i) a competição se dá no quadro da divisão internacional do trabalho, o que significa que ocorre mediante a exploração de vantagens específicas para produção de bens e serviços. Essas vantagens podem existir em decorrência de recursos básicos, de localização, ou ainda daqueles recursos criados através de investimentos públicos ou privados – com predominância dos públicos – ou mesmo redução de custos locais via subsídio, por exemplo; ii) a atratividade de uma cidade para competição pode se dar através da divisão espacial do consumo por meio, por exemplo, de projetos de renovação urbana, entretenimentos, espetáculos, arte e cultura; iii) pode se dar ainda através da luta para assumir controle e funções de comando de altas operações do governo, ou de centralização e processamento, o que exige que a cidade tenha feito pesados investimentos em transporte e comunicação; iv) os limites da competição ainda são importantes, já que dizem respeito à redistribuição dos excedentes pelos governos centrais e as fontes de financiamento, assim como as áreas que serão financiadas (HARVEY, 1996).

Uma das principais estratégias engendradas no contexto do empreendedorismo urbano são as Parcerias Público-Privadas (PPPs) que têm sido apontadas como solução para governos

26 “reflete os poderosos efeitos disciplinares da competição interurbana” (PECK; TICKELL, 2002, p. 393 – tradução nossa).

locais, colocadas com a ideia de que não existem alternativas territoriais realistas, como acontece no contexto por nós estudado. São parte integrante do caderno de orientações dos organismos multilaterais, que, inclusive, prestam assessoria técnica para sua execução, e demonstram um

[...] novo papel da terra urbana na produção financeirizada das cidades. Não se trata apenas de competição no mercado por localização e de pressão permanente pelo postulado do uso mais rentável da terra, mas de uma nova forma de agenciamento da terra que combina investimentos privados em infraestrutura e real state e é promovida por corporações que articulam engenharia, gestão de obras e projeto e produtos financeiros (ROLNIK, 2015, p. 224).

As PPPs podem ser acionadas para realização de ações em diferentes áreas e caracterizam uma forma de ação conjunta entre governos e empresas que tem como justificativa a escassez de recursos públicos, a suposta ineficiência do setor governamental na gestão da cidade, superada pela eficiência do setor privado e do mercado. Ligada à ideia de competitividade, têm implicações importantes para a gestão da governança urbana (ROLNIK, 2015). Elas representam uma nova lógica de produção da cidade, com participação dos fundos de investimento privado, caracterizando uma nova forma de deslocalização na era das finanças.

As PPPs buscam atingir objetivos políticos e econômicos imediatos. Seu foco não está, portando na busca pelo desenvolvimento econômico (HARVEY, 1989), ou seja, não tentam responder aos problemas macroeconômicos e são incapazes de pensar a cidade em sua totalidade. Na cidade de Porto Alegre, por exemplo, em 2005 foi sancionada Lei n. 9.875, que instituiu o Programa Municipal de PPPs. Para Rolnik (2015) isso seria parte de uma nova lógica de fazer cidade, com base em cinco elementos: i) a criação de mecanismo inovadores de financiamento da infraestrutura em cidades que não podem se endividar mais; ii) a terra é acionada para garantir o financiamento, porque através dela é possível assegurar ganhos futuros; iii) o que remunera o investidor é a diferença entre o que o governo paga pela terra e o valor que ela poderá gerar no futuro; iv) “a necessidade e a escala de remuneração futura do investidor, vão determinar o uso futuro da terra e, portanto, o conteúdo do projeto” (ROLNIK, 2015, p. 225); v) não existe preocupação do investidor em relação ao destino daqueles que residem naquelas terras, já que é de responsabilidade estatal a entrega do terreno sem ocupações.

Para justificar a execução das PPPs, vigora o discurso da ineficiência e incapacidade do Estado, contudo, o que observamos na prática é que os recursos e riscos ainda estão a cabo

do setor estatal (HARVEY, 1989). Ou seja, a dita inovação na capacidade do setor privado está menos nas possibilidades de ele viabilizar recursos para investir no urbano, e mais na viabilização do Estado em executar projetos que sejam capazes de extrair renda da terra através das localizações, seja através de sua criação, ou de sua revalorização (RODRIGUEZ; SWYNGEDOUW; MOULAERT, 2005).

No contexto mundial, megaprojetos e megaeventos destacam-se na busca por atratividade no mercado e escondem não somente a busca pela riqueza, mas também questões ideológicas e políticas, já que “o espetáculo sempre foi uma potente arma política”. (HARVEY, 1989, p. 88). Dentre os megaeventos, os esportivos – como a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas – têm especial destaque já que possuem legitimidade histórica e são popularmente aceitos. Isso ajuda a construir o discurso ideológico que justifica a sua realização, já que aquele que os sedia tem um motivo “inquestionável” para dispor de recursos financeiros nacionais e internacionais para modernizar a cidade, e, como resultado, alavancam-se negócios do setor privado.

Dessa forma, a realização de um megaevento é associada à requalificação urbana, à construção de equipamentos esportivos, à construção de empreendimentos, como centros de negócio, rede hoteleira, bairros de alto padrão no entorno dos locais onde se realizam as atividades esportivas. Normalmente, e não por coincidência, essa requalificação urbana está ligada as áreas centrais nas cidades e implica em duas questões. A primeira está associada à oportunidade de executar obras de requalificação que não eram realizadas até então por ausência de recursos financeiros ou por dificuldade de criação de consenso quanto à sua realização. A segunda questão está na justificativa necessária para lidar com a remoção de famílias para destinar áreas para capital imobiliário, esconder a pobreza e criar políticas higienistas, mediante remoções de famílias, ou estratégias afins27.

Os modernos Jogos Olímpicos têm uma história especialmente sinistra, mas pouco conhecida. Durante os preparativos para os jogos de 1936, os nazistas expurgaram impiedosamente os sem-teto e favelados de áreas de Berlim que talvez pudessem ser avistados pelos visitantes internacionais. Embora os Jogos subsequentes, inclusive os da Cidade do México, de Atenas e Barcelona, tenham sido acompanhados por remoção urbana e despejos, os jogos de Seul, em 1988, foram realmente sem precedentes em escala de perseguição oficial aos pobres, quer fossem donos de sua própria casa, invasores ou locatários [...]. Pequim parece estar seguindo o precedente de Seul em seus preparativos para os Jogos de 2008 [...]. A Human Rights Watch chamou a atenção para a ampla concordância oculta entre incorporadores e planejadores oficias, que manipulam a excitação patriótica

27 Dentre elas, é possível citar o exemplo do plano de racionalização das linhas de ônibus no Rio de Janeiro,

antes dos Jogos Olímpicos de 2016, que visivelmente impactavam a circulação das populações mais pobres para as praias da zona sul (RODRIGUES; BASTOS, 2015).

inerente aos Jogos Olímpicos para justificar os despejos em massa e a ocupação egoísta de terrenos no coração de Pequim (DAVIS, 2006, p. 113).

Na intenção de competir para se tornarem sede dos megaeventos esportivos, os países e cidades lançam mão de diversas alternativas marcadas por desregulamentação, além de “favores, comissões, e outras formas de negociação pouco transparentes” (FERREIRA, 2014, p. 09) com os organizadores internacionais. No Brasil a lógica do Estado de exceção se fez presente tanto na preparação e realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014, quanto dos Jogos Olímpicos de 2016, mas ainda se mantém através da lógica do continuísmo, que acaba por tornar o Estado de exceção permanente (MAIOR, 2014). Maior (2014) relembra que a Lei n. 12.663/2012, que trata da restrição de circulação e comércios no entorno dos estádios, foi “assumidamente fruto de um ajuste firmado entre o governo brasileiro e a Federação Internacional de Futebol (FIFA), uma entidade privada, visando atender os denominados padrões FIFA de organização de eventos” (MAIOR, 2014, p. 34). Isso acabou impactando, por exemplo, os comércios no entorno dos estádios, inclusive alterando combinações anteriores feitas com vendedores ambulantes. Caberia ainda mencionar outras leis que foram aprovadas na ribalda desses momentos, como, por exemplo, a Lei n. 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo.

Em termos de riscos de investimentos, sabe-se que, como são processos especulativos, apresentam incerteza no que se refere às aplicações dos recursos públicos e constituem projetos de alto risco que, por vezes, podem ser desastrosos. Mesmo com esse condicionante, apresentam atratividade tanto política, quanto social, porque reforçam características como a solidariedade e a busca de identidade local, onde a imagem triunfa sob a matéria (HARVEY, 1996). Como afirma Oliveira (2014, p. 30) “Facilitada pelo discurso de um suposto legado, a estratégia adotada é a transferência da responsabilidade financeira para as cidades e países- sede, através de rigoroso controle jurídico e político sobre esses territórios. É exatamente nesse ponto que a produção do espetáculo esportivo e da cidade neoliberal convergem”. As consequências nesses países, justificadas mediante o discurso dos legados urbanos, são especialmente sentidas pelos pobres, nos processos de remoção involuntária de famílias. As remoções certamente atingem de diferentes formas as classes sociais e, nesse ínterim, conforme as diferentes formas de titularidade que possuem, como pôde ser observado na