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CAPÍTULO I: A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER

1.1 O SURGIMENTO DA DOUTRINA DA RESPONSABILIDADE DE PROTEGER

1.1.4 A Recepção da Doutrina da R2P pelos Órgãos da ONU

1.1.4.3 A Cimeira Mundial de 2005

O conceito da Responsabilidade de Proteger foi endossado de forma unânime na Cimeira Mundial de 2005, o que é considerado um marco para a consolidação do conceito no plano internacional. Na resolução final da Cimeira, se introduz formalmente a

36 responsabilidade do Estado na proteção de sua população contra o genocídio, crimes de guerra, depuração étnica e crimes contra a humanidade.

O Documento Final da Cimeira Mundial (2005) tinha como objetivo oferecer uma nova visão de segurança coletiva e de promoção dos direitos humanos. Nesse intento, alguns dos elementos do conceito proposto do R2P foram adotados pela ONU e outros sofreram modificações e subtrações, tendo convergências e divergências entre o documento da ICISS (2001) e o da Cimeira Mundial (2005) sobre o conceito de intervenção humanitária em face da Responsabilidade de Proteger.

O Documento inicia reafirmando a responsabilidade do Estado de proteger sua população:

[...] cada Estado é responsável por proteger as suas populações contra o genocídio, os crimes de guerra, a depuração étnica e os crimes contra a humanidade. Esta responsabilidade implica a prevenção dos referidos crimes, incluindo incitação à prática dos mesmos, pelos meios necessários e apropriados. Aceitamos essa reponsabilidade e agiremos em conformidade com a mesma” (Parágrafo 138; p.40).

Tais crimes internacionais são considerados condições para a ativação do princípio da Responsabilidade de Proteger, como acentua o documento: “onde as autoridades nacionais competentes não conseguirem proteger suas populações contra o genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade, o princípio da responsabilidade de proteger pode vir a ser ativado para que ocorra a proteção de tais populações” (ONU, 2005). Embora essas mesmas condições para a ativação do princípio do R2P estejam presentes no relatório do ICISS, esse se faz muito mais completo e cauteloso ao elencar as condições para que o princípio seja posto em prática.

Nessa esteira, a Comissão, no que se refere às condições para a ativação do princíp io, é mais especifica e cautelosa em descrever os tipos de crimes e de que modo eles podem aparecer para que se faça preciso uma intervenção militar de caráter humanitário, uma vez esgotados todos os meios pacíficos para solucionar o conflito. No documento da Comissão consta que deve haver um planejamento prévio, como também deve se incluir a necessidade de construir “uma coalizão política efetiva, fornecer um mandato claro, conceber um plano comum de operações, executar os objetivos acordados e mobilizar recursos necessários” (ICISS, 2001; p.58). Dessa maneira, para a Comissão, “a fase da intervenção militar será necessariamente precedida de ações preventivas que podem incluir medidas militares, tais como sanções ou da execução embargo, implantações preventivas, ou zonas de exclusão aérea” (ICISS, 2001; p.58).

37 O papel da comunidade internacional na proteção das populações, através das Nações Unidas, também é citado em ambos os documentos. Nessa perspectiva, o documento da Cimeira Mundial de 2005 aponta a responsabilidade incumbida à comunidade internacio na l :

A comunidade internacional, quando necessário, deve incentivar e ajudar os Estados a cumprirem essa responsabilidade e devem apoiar as Nações Unidas na criação de um dispositivo de alerta rápido. A comunidade internacional, através das Nações Unidas, deve igualmente usar os meios diplomáticos e humanitários apropriados, em conformidade com os Capítulos VI e VIII da Carta, para ajudar a proteger as populações contra o genocídio, crimes de guerra, depuração étnica e crimes contra humanidade” (ONU, 2005; p.40).

Percebe-se que, por mais que o documento da Cimeira Mundial endosse a responsabilidade da comunidade internacional, como também o conceito de soberania como responsabilidade do Estado, tais argumentações ainda necessitam de uma melhor abrangência, como está presente no documento da ICISS.

O Outcome Document também se refere à ação de prevenção - mesmo que de maneira breve e sem elencar quais medidas de prevenção poderiam vir a ser tomadas. No que se refere à reconstrução, o Outcome Document (2005) reconhece que há necessidade de uma abordagem coordenada, coerente e integrada para a construção da paz pós-conflito, como também uma reconciliação a fim de alcançar uma paz sustentável. Dessa maneira, prossegue o documento, existe uma necessidade de criação de um mecanismo institucional especifico para atender as necessidades especiais dos países que passam por conflitos, para que ocorra uma recuperação, reintegração e reconstrução. Nesse intento, o Outcome Document reconhece o papel das Nações Unidas, que criou uma Comissão de Consolidação da Paz como um órgão consultivo intergovernamental, com o intuito mobilizar recursos, aconselhar e propor estratégias para a construção da paz e recuperação pós-conflitos. (ONU,2005).

Tanto a Comissão como o documento da Cúpula Mundial de 2005 ratificam o uso de meios pacíficos para a resolução de um conflito e indicam como estes devem ser operados. O Outcome Document, no parágrafo 139, estabelece que a comunidade internacional, através da ONU, usará de meios pacíficos, diplomáticos e humanitários, como também outras medidas apropriadas em conformidade com os capítulos VI da Carta da ONU, para ajudar e proteger as populações contra o genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Nos casos onde as medidas pacíficas não forem consideradas adequadas, e dessa maneira ocorrer falhas no dever de proteger as populações afetadas, os países têm que estar preparados para agirem coletivamente e por meio do Conselho de Segurança da ONU.

38 No que se refere aos órgãos competentes e com autoridade universalmente aceita para autorizar e validar uma intervenção militar, o Conselho de Segurança da ONU é o que possui maior legitimidade, argumento exposto tanto pelo documento da Cúpula Mundial de 2005, como pelo documento da Comissão (ICISS). No entanto, o documento da Comissão apresenta outras alternativas de órgãos e mecanismos que podem autorizar uma interve nção militar com finalidade humanitária.

De acordo com a Comissão, não existe um órgão melhor nem mais adequado que o Conselho de Segurança da ONU para autorizar uma intervenção militar que tem como fim a proteção humana: “as tentativas de impor autoridade só podem ser feitas pelos agentes legítimos de autoridade. A intervenção coletiva feita pela ONU é considerada legít ima porque está devidamente autorizada por um organismo internacional representativo ” (ICISS,2001; p.47).

Para a Comissão, a autorização do Conselho de Segurança deve, em todos os casos, ser procurada antes de qualquer intervenção militar a ser realizada. O Conselho de Segurança deve agir rapidamente em qualquer pedido de autorização, para intervir sempre que haja alegações de perda de vidas em grande escala ou de limpeza étnica. N o entanto, em casos onde o Conselho de Segurança demore a tomar uma decisão, ou rejeite uma proposta de intervenção por razões humanitárias, podem ser usadas outras alternativas. Menciona- se, primeiramente, o apoio da Assembleia Geral em uma Sessão Especial de Emergênc ia, procedimento que foi desenvolvido em 1950 (Uniting for Peace) especificamente para “lidar com situações em que o Conselho de Segurança, por causa da falta de unanimidade dos membros permanentes, deixe de exercer o seu papel de responsabilidade pela manutenção da paz e da segurança internacionais”. (ICISS,2001; p.54).

Outra alternativa refere-se às intervenções feitas por organizações regionais e sub-regionais que agem dentro de suas áreas de atuação. Assim, para a Comissão, se o Conselho de Segurança não cumpre com a sua responsabilidade, então é válido esperar que atores possam encontrar outras formas de ação para atender à gravidade e urgência destas situações, lembrando que “intervenções unilaterais sem a aprovação do conselho de segurança, da Assembleia Geral da ONU, e\ou de grupos regionais ou sub-regionais não costumam ser apoiadas” (ICISS, 2001; p.54).

No Outcome Document (2005), com exceção da Assembleia Geral, o papel de tais mecanismos e órgãos não são reconhecidos sem a participação do Conselho de Segurança. O documento estabelece que a ONU está preparada para uma ação coletiva, através do

39 Conselho de Segurança, e em cooperação com as organizações regionais relevantes. Ressalta também a necessidade de a Assembleia Geral dar continuidade à responsabilidade de proteger as populações contra o genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade e suas implicações, levando em conta os princípios da Carta e do Direito Internacional (ONU, 2005).

Percebe-se que há muito pontos de convergência entre os documentos da Comissão e da Cúpula Mundial de 2005, como o conceito de soberania como responsabilidade do Estado, o papel do Estado – e da comunidade internacional - em proteger sua população de crimes internacionais, como também a concordância com os critérios de prevenção, ação e reconstrução.

A Comissão propõe uma versão mais ampla de tais critérios, uma vez que ao Outcome Document, por mais que tenha defendido grande parte dos conceitos que compõe o princíp io da Responsabilidade de Proteger, falta profundidade nos declarações e condições para a ativação do princípio, como também maior clareza no papel dos órgãos e mecanismos para lidar com as ameaças aos direitos humanos. No entanto, ambos os documentos defendem o dever dos Estados membros da comunidade internacional em salvaguardar a população contra crimes internacionais, caracterizando uma nova proposta que busca o consenso dos Estados para que as intervenções humanitárias percam o caráter controverso.