• Nenhum resultado encontrado

7. A TERAPIA DO SUJEITO E A ORIENTAÇÃO

7.1 A CLÍNICA FENOMENOLÓGICA

Mitigar os preconceitos que o paciente carrega sobre si mesmo e quebrar identificações caducas são objetivos comuns às clínicas psicológicas diversas, independentemente de suas bases teóricas (Sá, 2017). Segundo Heidegger (2009), em nosso inexorável ter de ser estamos constantemente sujeitos a nos perder, constantemente necessitados de ajuda. Somos errância radical até a morte, mas preferimos nos ver a partir de uma positividade, uma substância – “eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim” (Caymmi, 1975). Contudo, para ser sempre a mesma Gabriela, seria necessário que seu discurso fosse sempre exatamente o mesmo. Uma identificação tão completa consigo mesmo só seria possível se o tempo em nada nos alterasse (Sá, 2017).

Em uma terapia fenomenológica os sentidos são tematizados, a fim de que o horizonte vivido se amplie e outras possibilidades de ser se revelem. O ser-no-mundo implica em uma indistinção entre aquilo que sou e o que se me revela como óbvio. Então mudar-me é já mudar o mundo. Como parte do mundo que é, o si mesmo cede o lugar à experiência; menos do que um sujeito, meu eu está mais para uma função organizadora do discurso do que para algo propriamente existente (Sá, 2017).

Libertar o outro para si mesmo é já em Ser e Tempo a modalidade superior de pré-ocupação com o outro. Sendo o contato entre terapeuta e cliente é pré-mediado por múltiplos atravessamentos institucionais: idade, profissão, pagamento, religião, sexo, e etc. Esses enquadramentos, simultaneamente, efetivam e limitam o encontro.

74 Além da abertura da vida do paciente, uma abertura sobre o próprio relacionamento terapêutico encaminha o processo terapêutico. A instrumentalização da psicoterapia, por exemplo, através do diagnóstico, acontece quando a importância da abertura relacional é desconsiderada (Sá, 2017). Fora da relação sobra a entificacão e entificar as questões do paciente é o exato oposto da premissa de tornar o outro transparente para si mesmo, livre para todas as suas possibilidades.

A transferência, conceito central na obra freudiana, é reinterpretada na fenomenologia. Extraindo a causalidade subjetiva que leva Freud a pensar que há uma relação específica sendo projetada pelo ego, Heidegger interpreta o fenômeno a partir da disposição de humor. Junto à compreensão e o discurso, a afinação afetiva descerra o aí do dasein, estendendo-se se sobre qualquer outro encontro que se dê à abertura. Não há “transferência” porque o afeto já estava ali, o ser-aí é sempre já afetado. (Heidegger, 2009)

A caracterização profissional do terapeuta não se reduz à escolha de uma linha de terapia. A existência do terapeuta como um todo está em jogo: Desde suas experiências passadas, suas verdades pessoais irrepresentáveis até aspectos pré- reflexivos e atemáticos como a afinação afetiva e a abertura-de-mundo (Sá, 2017). A terapia é, antes de tudo, um encontro. A capacidade do terapeuta de acolher a diferença é fundamental para o estabelecimento da confiança. A suspensão fenomenológica, o passo atrás, a desedificação de si mesmo, pode ajudar o terapeuta a instanciar uma relação mais livre com cliente.

É importante lembrar que, diferente das outras, a terapia fenomenológica não propõe uma positividade do conhecimento clínico. Antes, ela se define justamente pela desedificação da pretensão teórica-técnica de contornar as infinitas possibilidades da realidade terapêutica. O processo psicoterapêutico é cada vez singular, visto que cada vida é única. Mesmo uma afirmação repetida duas vezes pelo mesmo paciente não é a mesma afirmação, já que, entre a primeira e a segunda vez ao menos algum detalhe do contexto já não é mais igual. Deriva daí um significativo desafio à transmissão da terapia fenomenológica e a certeza de que não se trata de uma aprendizagem ou treinamento como o das demais profissões (Sá, 2017).

A verdade no consultório ganha um novo sentido. Seguindo o caminho heideggeriano, a verdade como representação adequada (veritas) é relevada na clínica por seu aspecto utópico e metafísico. O mundo não está lá fora, a balizar as representações que fazemos dele. O mundo é confluente ao existir e vai desnudando ao paciente novas possiblidades de ser, conforme o tempo passa e outros sentidos

75 vão sendo acolhidos. Na terapia revisitamos memórias, sentimentos, coisas desgastadas e difíceis de comunicar em busca de que o real se manifeste. O verdadeiro não é uma objetivação, mas uma afinação, uma correspondência ao que é, uma entrega a um desvelamento (aletheia) que não se separa do próprio ser do ser-no-mundo (Pompéia, 2004; Sá, 2017).

Desapegada de uma causalidade subjetiva, a clínica fenomenológica não é dirigida pelo terapeuta, nem um exercício subjetivo de duas entidades previamente isoladas. Deixando de lado a explicação, o terapeuta deve buscar compreender. Ao compreender, é como se o terapeuta validasse a experiência do cliente, o que simultaneamente aproxima-os entre si e proporciona ao narrador um novo encontro com o conteúdo narrado. A disposição compreensiva do terapeuta encoraja o paciente a encarar as feridas de sua própria existência, tentando, por si mesmo, achar sentido naquela dor que ele se habituara a ignorar (Pompéia, 2004). Acolhendo o inominável, os “objetos invisíveis”, o terapeuta abre o terreno onde o paciente pode se reunir com seus próprios monstros – e os monstros dos outros.

A partir da leitura de Mestre Eckhart, pensador medieval, Heidegger (apud Sá, 2017) adota como conduta diante da era da técnica a gelassenheit – traduzida para o francês como serenité. Lassen significa deixar, soltar, libertar. Para o místico alemão do século XIV, essa “deixaridade” deveria ser assumida como um ethos que consiste na abstenção cotidiana de qualquer voluntarismo. Mesmo que bem-intencionada, a ação deve ceder o lugar a uma atitude meditativa, onde a atenção se entrega sem reter-se ao que se presentifica, a aquilo que é. Diante das imposições técnicas modernas isso significa simultaneamente dizer sim e não, acatar a técnica sem se deixar tomar por ela.

Na clínica, a serenidade se sedimenta como uma postura de desapego, que não valoriza nem desvaloriza nenhum assunto a priori, que não conduz nem dirige (Sá, 2017). Mantendo a abertura necessária para encontrar aquilo que não procura, o terapeuta está ciente de suas próprias limitações compreensivas. Não será a técnica e sua transformação do homem em meio para um fim que avançará no problema do outro (Duarte, 2005). A serenidade lembra a incompletude de toda interpretação e a vacuidade de todo conceito diante da gratuidade e frugalidade de cada encontro. Rejeitando qualquer determinação prévia – de si mesmo, de terapia, de alteridade - a escuta serena pode edificar um espaço de real acolhimento do outro.

76

Documentos relacionados