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A companhia dos Satyros um farol na praça Roosevelt

1 – UM PONTO DE PARTIDA: O ESPAÇO E O TEATRO

3- A CARTOGRAFIA POLÍTICA DOS LUGARES TEATRAIS DE SÃO PAULO

3.4 A companhia dos Satyros um farol na praça Roosevelt

Uma reflexão sobre Os Satyros não pode ser dissociada dos lugares teatrais nos quais a companhia realiza seus projetos cênicos e culturais, os teatros: Espaço dos Satyros I e II - uma vez que existe, desde a sua origem, uma forte relação entre os espaços ocupados pela companhia e a sua proposta cênica/social.

Atualmente (2006), os Satyros e seus teatros são pólos agitadores da cena contemporânea. Compreende-se, aqui, cena contemporânea “como aquela apoiada nas associações, justaposições, na rede, numa não-causalidade que altera o paradigma aristotélico da lógica de

ações, da fabulação, da linha dramática, da matização na construção de personagens” 89.

Trata-se da cena das simultaneidades, das sincronias, apoiadas em modelos de justaposição e amplificadora das relações de sentido. Uma cena, enfim, que incorpora em sua tessitura a velocidade do moderno.

A proposta de trabalho dos Satyros, em termos de linguagem teatral realizada pelo grupo, tem sua origem a partir da observação e experimentação realizadas nos últimos 17 anos de atividades da companhia. Tais processos foram sistematizados e denominados “teatro veloz”.

As premissas dessa metodologia, de acordo com o grupo, envolvem vários elementos estruturantes, que perpassam diferentes teóricos, como Meyerhold, Stanislavsky e Artaud. Entretanto, no conjunto dos artigos publicados sobre o assunto no site do grupo, e em suas montagens, nota-se certa afinidade entre os conceitos artaudianos em torno da criação contínua, linguagem, consciência e espacialidade, com o “teatro veloz”. (ver p. 166;169)

Tal constatação revela a indissociabilidade das propostas cênicas dos Satyros com o seu espaço.

O Espaço dos Satyros é formado por duas salas distintas -

Satyros I e Satyros II - localizadas na mesma rua, uma a poucos metros da outra, em frente a uma praça. Não se trata, todavia, de uma “praça qualquer”, mas da Praça Roosevelt, ícone do centro deteriorado de São Paulo, com seus travestis, prostitutas, garotos de programa, moradores de rua, traficantes e

89

COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo, Perspectiva: p.XIX, 1998.

menores abandonados, todos mergulhados em meio a uma paisagem grafitada, com pouco ou nenhum verde.

Em ambas as salas temos a mesma estrutura interna na relação palco/platéia. São espaços únicos, sem divisões formais pré- estabelecidas, concebidos como uma grande “caixa preta”. As salas podem se modificar a cada encenação. Esses lugares teatrais, portanto, tem como fundamento o desejo não só de uma comunicação direta entre o artista e o espectador, como também de se tornar um espaço capaz de se adaptar a cada espetáculo. Lugar, enfim, dotado de neutralidade.

As condições físicas das salas, porém, não possibilitam a realização de tais desejos, pois apresentam uma série de marcas estruturais – rugosidades 90 das paredes, diferenças de altura do teto, pisos imperfeitos, recortes, vigas de concreto, entre outras, que imprimem determinadas características e significações ao lugar, de modo a não permitir a qualquer pessoa, dentro daquele espaço, esquecer-se de que se encontra em um edifício adaptado à atividade teatral. Um lugar incomum ao imaginário simbólico do edifício teatral, um lugar ressignificado e que acaba por evocar uma sensação do “provisório” ou do “inacabado”, interferindo nos processos de comunicação.

Bem por isso, cada encenação deverá ser o resultado, em parte, de um diálogo entre o lugar teatral e os textos propostos pelo encenador. Por outro lado, deverá ser o resultado da relação do público com o lugar teatral, compreendido este como um espaço vivido. Desse modo, podemos observar,

de modo mais evidente, o espaço como agente da comunicação teatral e não como um depósito da cena.

No bojo das significações desse espaço, convém destacar algumas de suas características, resultado das marcas concretas da arquitetura cênica da sala, que interferem na cena introduzindo, nos processos nela realizados, alguns conceitos fundamentais ligados à cena contemporânea, como mobilidade, fluidez e instabilidade.

Todas essas características ligadas á estrutura arquitetônica têm em comum a noção de intencionalidade (ver p. 46-47; 115; 129; 213; 235), que atua no sentido de um espaço a ser organizado de modo voluntário e consciente, por meio da relação entre os objetos da cena, atores e os outros colaboradores (cenógrafo, figurinista, sonoplasta, diretor, etc.).

A relação entre os integrantes da montagem, contudo, não se constitui numa criação à parte do espaço, pois segundo Milton Santos, “o espaço é formado pelos objetos; mas não são os objetos que determinam o espaço. É o espaço que determina os objetos (SANTOS, M., 2004 a, p. 40)”. Destaca-se, assim, a presença ideológica desse espaço, que não pode passar despercebida.

Reforça-se, ainda, a questão de que o espaço físico dos Satyros, em termos de dimensão, não tem de fato vocação para cenografias “pesadas”, a saber, sua estrutura não comporta receber cenários que não sejam “ágeis”, para montar e desmontar, seja porque as salas apresentam uma alta rotatividade de espetáculos, seja pelas condições arquitetônicas impostas a um edifício que foi adaptado à função teatral.

A dimensão reduzida do espaço não permite a valorização

de grandes deslocamentos cênicos, pois são salas pequenas, para um público em torno de 90 a 100 pessoas em cada uma. Em conseqüência disso, os resultados dos desenhos de cena das encenações (marcações) tendem a uma forma concentrada e reduzida nos movimentos, que tem origem na dialética entre a mobilidade e a imobilidade.

Tais observações podem levar a supor, aos que não conhecem os espaços dos Satyros, que eles realizem somente trabalhos com poucos atores em cena. Paradoxalmente, os últimos espetáculos da companhia têm cerca de10 a 15 atores em cena, fato que sugere a existência de um diálogo preciso, em termos de organização e conhecimento do espaço pela companhia.

Não se pretende encerrar aqui as questões decorrentes da discussão entre o espaço e o teatro, mas refletir sobre a tendência de um repertório mais ligado à palavra em lugares teatrais pequenos. De fato, um dos componentes característicos dos Satyros é o de ser focado em um teatro que discute a palavra e as suas imagens, e aqui, mais uma vez, se aproximam conceitualmente das propostas de Artaud.

Um outro dado a ser considerado, independentemente das múltiplas conotações e leituras do environnement social entre a cidade e o espaço dos Satyros, é a sua visível relação e afetação com o entorno social, no sentido de transformação e interação entre o lugar teatral e a cidade. A praça Roosevelt, hoje, é um outro espaço social, depois da chegada dos Satyros.

Cabe observar que as duas salas são privadas, e nelas são realizados de 12 a 15 espetáculos por semana, aproximadamente de 10% a 12% da produção teatral paulista, a se considerar o universo em torno de 110 espetáculos teatrais apresentados nos Guias de Teatro, em média, semanalmente, na cidade de São Paulo. O que justifica um olhar mais apurado sobre as produções realizadas nesses espaços, com ênfase no trabalho da companhia dos Satyros, na tentativa de compreender o movimento ou as tendências da cena contemporânea teatral paulista.

A trupe tem 17 anos, foi fundada em 1989 em São Paulo, por Rodolfo Garcia Vazquez e Ivan Cabral. Estreou com o espetáculo “Arlequim” e depois se seguiram: “Sade ou noites com os professores imorais”, “Saló Salomé”, “Filosofia da Alcova”, “De Profundis”, “Sapho de Lesbos”, ” Kaspar”, “Cosmogonia”, ” A vida na Praça Rossevelt”, para citar só alguns, dentre os 47 espetáculos produzidos pela companhia.

A proposta do trabalho cênico forjado pelos Satyros, de acordo com seus fundadores e coordenadores, Rodolfo Vazquez e Ivan Cabral, é baseada no conceito do teatro veloz, que “são exercícios, embasados pela Bioenergética, alguns, e fundamentados nas teorias preconizadas por mestres como Stanislavski, Meyerhold e Artaud, entre outras influências, que, no caso das práticas de atuação cênica, levam os indivíduos envolvidos em um mesmo processo criativo à reflexão, ao auto-conhecimento e a uma apreensão diferenciada do todo em que se inserem, segundo disposições do imaginário” 91.

Afirmam, ainda, ser “um dos objetivos do Teatro Veloz

predispor os atores a uma prontidão de respostas aos estímulos oriundos do meio, com o envolvimento emocional e intelectual dos participantes. Esse Teatro, como um catalisador de processos que condicionam o indivíduo a repensar a sua realidade e a se reposicionar em relação a ela, é fruto de um dos princípios que norteiam as atividades da companhia dos Satyros, calcado no não–conformismo e resistência aos padrões arbitrariamente impostos pelo meio social”.

Basta verificar os títulos e repercussão de suas encenações nos meios de comunicação para comprovar que a questão social nunca se ausentou de suas montagens, como se pode constatar no último espetáculo da companhia, que estreou em 2006 -120 dias de Sodoma - baseado na obra do Marquês de Sade.

A encenação proposta pelos Satyros dialoga com os tempos políticos que vivemos no Brasil de hoje (2006), assim como a maioria dos textos montados pela companhia em sua trajetória nesses 17 anos, como afirma Rodolfo Vazquez: “Fazemos um teatro crítico, isso é inegável”.

120 dias de Sodoma é uma montagem corajosa. Nela o exercício da palavra em cena não se configura como um discurso vazio, inoperante, mas como o de uma palavra orgânica e ambivalente.

A proposta cênica de Rodolfo Garcia Vazquez, que valoriza a palavra estruturada nas simultaneidades e justaposições, faz com que o texto de Sade, a cada noite, se pareça com um relato de uma “notícia de jornal” - urgente e atual -, no sentido de que ele não pode ser narrado no dia seguinte.

Como se o texto adaptado para a cena tivesse um “tempo da urgência”, e fosse estruturalmente “provisório” e propositalmente “inacabado”. Tal como a sensação que nos impõe o espaço dos Satyros.

Costuma-se se dizer que “o teatro paulista vive em crise”, ou que “não há luz no final do túnel”. Acreditamos estar em crise, mas não mais submersos dentro de “túneis”. O teatro paulista, pelo contrário, nos últimos anos tem tomado as ruas na busca de encontrar seu papel social e cultural na cidade de São Paulo.

Basta ver as atividades de algumas das principais companhias teatrais contemporâneas, como o Teatro Oficina (Os sertões: o homem, a terra

e a luta – 2006); Vertigem (BR3 – 2006); Os Parlapatões e Pia Fraus (Stapafurdyo-2006) e grupo XIX de teatro (Hysteria e Hygiene- 2006), Os Fofos (Assombração do Recife Velho- 2006), entre outros.

Esses grupos do teatro paulista, e outros mais, buscam reconstruir “suas pontes” com a cidade e repensar o seu espaço e sua identidade na cultura da metrópole. O teatro compreendido não como periferia, à parte da cidade, e nem mesmo como uma atividade alternativa. E esse é um dos objetivos dos Satyros, nas palavras de Rodolfo Vazquez: “Detesto o titulo

alternativo. Ele abarca muitas coisas que não tem a ver com o tipo de trabalho que procuramos fazer. Somos underground? Não - se essa expressão quiser dizer que fazemos nossas artes escondidos debaixo da terra. Afinal, nosso trabalho quer se mostrar luminosamente o máximo de tempo possível”. 92

Nesse sentido, os Satyros, seja por meio do “teatro veloz”,

ou pela função social dos seus espaços, ou pela sua presença estética,como também pela presença maciça de artistas e espetáculos que transitam em suas salas, formam um mosaico luminoso e efervescente do panorama teatral. Por fim, pode-se metaforicamente afirmar que os Satyros são, hoje, situados na Praça Roosevelt, centro de São Paulo, um farol vigoroso que ilumina e, de certo modo, guia e alerta a cena contemporânea paulistana.