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A complexidade das noções no entendimento divino e o possível

5. Capítulo 5 – Apontamentos sobre o possível e o existente em Leibniz

5.1 A complexidade das noções no entendimento divino e o possível

São numerosos os textos em que Leibniz defende ser a não contradição o princípio

fundamental do ser, isto é, tudo aquilo que se constitui como pensável ou não contraditório é desde logo, para o filósofo, ser. Essa concepção revela ao menos duas coisas: em primeiro lugar, que para o autor da Monadologia a condição mínima da cognoscibilidade – também o pensável, enquanto condição de todo conhecimento racional, tem por base o não contraditório – é igualmente a condição mínima do ser; em segundo, que a categoria do ser é extremamente abrangente, e, por isso, abriga uma variedade inabarcável – ao menos para um espírito finito – de entidades.

É igualmente frequente nos escritos do pensador o emprego da palavra “possível” para designar aquele conjunto de entidades que correspondem a seres complexos, em verdade, infinitamente complexos, cuja realidade não pode ser pensada se separada de um grupo perfeitamente exaustivo e determinado de realidades igualmente complexas cuja articulação resulta na concepção de um mundo. São, pois, os conceitos individuais completos sobre os quais o filósofo escreve no artigo 8 de seu Discurso de metafísica.

Temos então imediatamente marcado o foco da análise aqui, o que aliás era já prenunciado pelo conteúdo dos capítulos precedentes: dentre a infinidade de entidades cuja realidade é garantida por satisfazerem ao princípio de contradição, aqui teremos como objeto

privilegiado as noções completas de substâncias individuais, os seres possíveis a cuja análise Leibniz dedicou boa parte de seus escritos filosóficos.

O que significa dizer que se trata de seres possíveis? A compreensão de que são realidades meramente pensáveis, e, portanto, que respeitam o princípio de contradição falha como tentativa de dar uma resposta à questão, já que, embora a pensabilidade seja de fato condição para que se diga de algo que é possível, os textos de Leibniz dão testemunho de que há algo de mais complexo em sua teoria dos possíveis: os possíveis sobre os quais o autor escreve mais recorrentemente não são tão somente o pensável, mas também o infinitamente complexo. Então consideremos: serão as noções completas, para retomarmos a discussão

114 empreendida por Gaudemar em Leibniz, de la puissance au sujet, seres em potência no

sentido aristotélico da expressão? A comentadora mostra, desde logo, que não é esse o caso, e que, se é possível dizê-lo em algum sentido, tal não se aplica para além do plano analógico.

Com efeito, se em seu sentido clássico a palavra possível conduz a um entendimento relacionado à ideia de potencialidade, aqui concebida como a garantia de um estado de indeterminação naquilo de que se diz que é possível – a mesma comentadora assinala como Arnauld é levado a essa interpretação quando recebe o sumário do Discurso de metafísica e lê o que consta do § 13 do opúsculo – em Leibniz toda ideia de indeterminação é abolida, questão essa na qual repousa, aliás, o problema enfrentado pelo conjunto desta dissertação. Assim é que, em Leibniz, o possível não é aquilo que resta aberto ou vago em algum aspecto, mas o que é tal que sua existência atual pode ou não ter lugar. São, para reter de maneira talvez mais forte e mais clara os termos nos quais se desenvolve a filosofia leibniziana, conceitos, seres de pensamento que envolvem nas noções que os designam uma

complexidade tão grande quanto aquela que Leibniz crê ser parte do conjunto da natureza, e que se constituem como possíveis porque sua atualização, sua existência ou não neste mundo aqui requer a comparação – realizável apenas pela inteligência divina – de todos os outros conjuntos infinitamente compossíveis de essências que habitam o país dos possíveis que é o entendimento de Deus.

No segundo capítulo desta pesquisa, escrevi que o trabalho pelo qual atualizamos ideias e inventamos a linguagem com vistas a capturar, tão precisamente quanto possível, as relações entre as coisas sobre as quais se debruça nosso pensamento é análogo àquele que, realizado por Deus ao infinito e de infinitas maneiras resulta na concepção – e, possivelmente, ou potencialmente – na produção dos objetos mesmos para os quais voltamos nosso esforço de inteligir. Será útil aqui retomar essa analogia, para que avancemos um pouco mais na compreensão do sentido de possível no pensamento leibniziano e, por isso mesmo, para tornar mais claro o significado da interpretação de Gaudemar, importante para que

entendamos de que maneira podemos dizer das noções completas de substâncias individuais que existem infinitesimalmente.

Assim, se é por uma espécie de cálculo que logramos conhecer a realidade, é também por algo de semelhante a uma operação matemática que Deus pensa e produz essa realidade mesma. O material de que ele se serve para pensar aquilo sobre o que se exercerão ou não sua vontade e sua potência é o que Gaudemar chama de alfabeto nocional, e que, como apontado

115 acima, são as mesmas noções absolutamente simples que Leibniz buscava descobrir pela análise dos pensamentos humanos, e que lhe permitiriam completar o projeto da

Característica Universal. Chamadas pelo filósofo, em alguns textos, de disparates, essas noções são os elementos, os princípios da formação de todas as entidades do mundo leibniziano, em suma, de tudo aquilo que se constitui como meramente pensável. E, assim também, são os elementos de cuja combinação resulta a concepção dos conceitos completos que o filósofo alemão afirma serem a natureza da substância individual – ao menos quando pensada sobretudo do ponto de vista da lógica.

Neste momento convém retomar o texto de Gaudemar. Pois há, por assim dizer, um

desdobramento do sentido acima apontado de acordo com o qual o possível leibniziano pode ser pensado em analogia com o possível tal como entendido por filósofos tais quais

Aristóteles e os autores da Escolástica, sentido esse que revela não apenas a semelhança entre todas as concepções em jogo, mas também, e de maneira talvez mais relevante, a distância da posição de Leibniz em relação a esses outros pensadores. Trata-se do entendimento de que, para todos os autores mencionados, inclusive Leibniz, há algo como uma matéria sobre a qual se exerce a criação, com a diferença de que, para o filósofo alemão, essa matéria não se distingue daquilo que lhe dá forma. Em termos mais claros, o alfabeto nocional cujos elementos são combinados para que se concebam os possíveis, e sobre o qual incidirá o ato criador divino não se distinguem de Deus mesmo, porque as noções simplíssimas que dão o material da combinatória e da criação de um conjunto total das coisas são constitutivos da essência divina.

Assim, na verdade, como o próprio ato de combinar as noções simples, formar os conceitos mais complexos e determinar um deles à existência: todas essas operações perfazem um único ato de intelecção perfeita, unitário e por isso indivisível em momentos temporais diversos. Daí que se possa dizer que Leibniz se aproxima daqueles pensadores ao postular a existência de uma matéria que se dá ao ato criador, e se distancia na medida em que

preconiza que essa matéria, e, o ato que a informa, são uma só e mesma coisa.

Possível: mais que o meramente pensável, realidade infinitamente complexa cuja realidade é inseparável da de um mundo, da de um conjunto de essências compossíveis, dele não se pode dizer que seja indeterminado ou vago, nada do que é requerido para constituir sua identidade e absoluta singularidade lhe falta, de modo que sua possibilidade ou potencialidade refere-se apenas ao fato de que, para cada conjunto maximal de essências compossíveis, a passagem à

116 existência é que resta aberta, no sentido de que pode ou não ocorrer, porque dependente da vontade de Deus.

Possível: efeito de um exercício de combinatória, noção lógica que se oferece ao

entendimento, à potência e à vontade de Deus como aquilo sobre o que se pode exercer o ato criador. Mas haverá algo mais nos possíveis que somente sua dimensão lógica; em termos mais diretos, haverá neles algo relacionado à dinâmica, e, portanto, como veremos, a uma forma de existência que lhes compete enquanto possíveis? Eis o tema da próxima seção deste capítulo.

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