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A COMUNIDADE DO PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO ESTUDADA

2.2.1 O português afro-brasileiro do interior do estado da Bahia

Várias foram as formas de resistência encontradas pelos negros quando alocados em países do continente europeu e americano como escravos. A luta árdua e quotidiana consistia inegavelmente pelo estabelecimento da manutenção do seu passado histórico e

pela oposição à opressão do regime escravocrata. Entretanto, ganha força e conotação de símbolo e auge da resistência o quilombo – “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (Conselho Ultramarino Português de 1740).

Segundo Reis e Gomes (2008), as comunidades quilombolas formadas no Brasil tiveram procedências que variavam de acordo com a relação instituída pela ordem escravista e com as circunstâncias da demografia do território colonial. Assim, embora considerados pelas autoridades portuguesas como redutos de escravos fugidos e que deveriam ser desmembrados a qualquer custo, os quilombos em algumas regiões e em situações especiais colaboravam no abastecimento de produtos e alimentos de comunidades relativamente afastadas dos centros mais urbanizados. Salles e Soares (2005, p.) sintetizam da seguinte maneira a importância do quilombo como instituição afro-brasileira:

[...] os quilombos foram parte significativa e expressiva na formação de experiências na formação de experiências de sociabilidade, práticas culturais, religiosas, políticas, geração de identidades, ocupação territorial que estiveram na origem da configuração de uma identidade brasileira, mais precisamente afro-brasileira. Mesmo quando sua história e sua memória tenham sido, em grande parte, silenciadas.

Conforme historiadores especializados no assunto, podemos dividir o quilombo em duas modalidades: (i) os que se formaram no período colonial como focos de resistência, constituídos de negros foragidos (como o Quilombo de Palmares) e (ii) os que se formaram após a abolição, constituídos de alforriados que viviam à margem da sociedade, desassistidos pela mesma sociedade que os “libertou”. A modalidade que nos interessa é a última, pois a comunidade aqui analisada foi formada por ex-escravos que migraram para áreas desabitadas e/ou que permaneceram nas terras abandonadas por colonos europeus.

Hoje em dia, são reconhecidas oficialmente pela Fundação Cultural Palmares (instituição pública ligada ao Ministério da Cultura, estabelecida pela Lei Federal n. 7668, de 22 de agosto de 1988, aprovada pelo Decreto n. 418, de 10 de janeiro de 1992) 159 comunidades quilombolas. Algumas, no entanto, ainda estão passando por um processo de reconhecimento, outras sequer estão na lista de espera.

2.2.1.1 Helvécia

"Um falar crioulo que deve ter sido geral, já que em 1961 dele subsistiam ainda vestígios" (FERREIRA, 1984)

A região de Helvécia localiza-se no extremo sul do Estado da Bahia, no Município de Nova Viçosa. Foi fundada em 1818 e, quarenta anos mais tarde, era constituída de algumas dezenas de estâncias com 200 colonos, em sua maior parte, imigrantes alemães e suíços, além de franceses e empregados brasileiros. Quanto ao número de negros, fala-se em, aproximadamente, 2000 homens que serviam como mão- de-obra escrava na cultura do café.

A então conhecida Colônia Leopoldina no Brasil teve anos prósperos com o empreendimento cafeeiro, chegando a ser a responsável por aproximadamente 90% da produção de café no início de 1850. Somente em fins da década de 1880 a cultura entra em declínio, por duas razões principais: (i) a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888 que terminou e a expansão da cultura do café para regiões mais férteis da Província, de modo que, no final da década de 1880, o Recôncavo já havia se tornado o maior centro cafeeiro da Bahia fazendo com que os colonos europeus abdicassem da região. Em seguida, de forma gradativa, estabeleceu-se na região ex-escravos que passam a viver isolados. O complicado acesso foi fator imprescindível para o conservadorismo de elementos crioulizantes na comunidade de fala de Helvécia. Segundo Lucchesi (2009, p. 92), as circunstâncias em que se achava Helvécia nesse período eram favoráveis às situações prototípicas de crioulização: primeiro, devido à proporção numérica entre escravos e brancos de dez para um, que terminava por inviabilizar o acesso aos modelos da língua alvo; segundo, a probabilidade de os empregados assalariados constituírem de falantes do português; e terceiro, a incidência de escravos crioulos vindos de outras áreas em que tanto senhores quanto trabalhadores eram falantes da língua alvo.

As primeiras observações linguísticas na comunidade foram feitas por Ferreira, em 1961, nas pesquisas de campo do Atlas prévio dos falares baianos (APFB). Não havia ferramentas de áudio disponíveis e tudo foi registrado em punho pelos

pesquisadores. Ferreira relacionou peculiaridades interessantes que apontam a existência de um processo diferenciado do português rural falado no Brasil, demonstrado traços característicos de uma possível crioulização em tempos pretéritos no sistema linguístico dessa comunidade. A esse respeito, nos diz a pesquisadora (1984):

Fatos que são peculiares de Helvécia, que ocorrem com uma certa constância, e que não registramos em nenhuma outra localidade ou então não foram registradas ocasionalmente. Esses fatos nos fizeram decidir que sim, que em Helvécia há, ou melhor, havia em 1961, remanescentes de um falar crioulo.

Os traços linguísticos encontrados por Ferreira (1984), que apontam evidências de um estágio pretérito de crioulização, foram: (1) variação na concordância de gênero no centro de SNs; (2) simplificação da morfologia flexional do verbo e, por fim, o objeto de estudo desta dissertação, (3) uso variável do artigo definido.

Trinta e três anos se passam quando os pesquisadores Alan Baxter e Lucchesi fazem as primeiras gravações das amostras vernáculas da comunidade de Helvécia com o apoio metodológico da Sociolinguística, compondo o corpus do português afro- brasileiro do Projeto Vertentes. O estudo sistemático do corpus permitiu a constatação de que realmente havia uma variação na fala dos moradores que “teriam feito parte do repertório gramatical do antigo crioulo de Helvécia” (LUCCHESI, 2009, p. 93). Além de observarem os mesmos traços linguísticos assinalados por Ferreira (1961), ainda que com menor frequência, outros traços foram reconhecidos e fazem parte dos trabalhos de iniciação científica, dissertações de mestrado e teses de doutorado veiculados ao Projeto Vertentes.

a. Éla é mȗitu sa’idu b. Io ‘sabi

3 O ARTIGO DEFINIDO EM PORTUGUÊS