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3 A CIDADE DE ALCÂNTARA E AS COMUNIDADES REMANESCENTES DE

3.2 A Comunidade Remanescente de Quilombos da Agrovila de Espera, Alcântara,

O termo “Quilombo” tem origem na língua banto, até hoje falado em grande parte do continente africano. A princípio, o termo designava acampamento ocupado por populações nômades na região da África. No Brasil, este termo deu nome à resistência dos povos escravizados. Atualmente, as comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana –, que se autodefinem a partir das relações com a terra, parentesco, território, ancestralidade, tradições e suas práticas culturais e religiosas próprias.

De acordo com o art. 2º do Decreto Nº 4.887/2003, de 20 de novembro de 2003,

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2003).

Com base no Decreto, temos que é a própria comunidade que se auto reconhece “remanescente de quilombo”. O referido Decreto foi amparado pela Convenção Nº 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, sobre os povos indígenas e tribais em países independentes, e cujas determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo Nº 143, de 20 de junho de 2002, que aprova o texto da Convenção Nº 169, e pelo Decreto Nº 5.051/2004, de 19 de abril de 2004, que promulga a Convenção da OIT.

De acordo com Saule Junior (2003, p. 08), o termo quilombo é “definido” pela primeira vez no Brasil a partir da resposta dada ao Rei de Portugal à consulta do Conselho Ultramarino, em dezembro de 1740, como sendo “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. Esta definição de quilombo atravessou todo o período Imperial e chegou à República sem sofrer alterações. Assim, quilombola era todo negro fugitivo que se mantivesse longe das grandes propriedades rurais, como afirma Saule Junior (2003, p. 08):

No entanto, houve escravo que não fugiu, que permaneceu autônomo dentro da grande propriedade e com atribuições diversas, houve aquele que sonhou fugir e não pôde ou não conseguiu fazê-lo, houve aquele que fugiu e foi capturado e houve aquele que não pôde fugir porque ajudou os outros a fugirem e o seu papel era ficar.

A citação acima evidencia, em parte, o caso das comunidades tradicionais de Alcântara. Não é possível precisar quantos escravos fugiram (e se fugiram), quantos voltaram (e se voltaram), nem quantos ficaram nas terras abandonadas em Alcântara, mas, é sabido que a maior parte deles se constituiu destes últimos. Ainda nos referindo a Saule Junior (2003, p. 08), atualmente, “a interpretação do conceito de quilombo, contido na Constituição Federal de 1988, deve abranger todos os casos acima apresentados, garantindo-se o direito a terra e os direitos daí decorrentes não só apenas ao quilombo formado por escravos fugitivos”.

A Constituição Federal de 1988 garante às comunidades tradicionais, dentre elas as da cidade de Alcântara, o direito a terra de seus antepassados por pertencimento – conforme já mencionado, às suas condições de remanescentes de comunidades tradicionais –, ancestralidade, territorialidade, tradições e práticas culturais e religiosas. Entretanto, a norma constante na Constituição, que pese a situação das comunidades tradicionais de Alcântara, ao que parece, não tem sido observada desde a instalação do Centro de Lançamentos de Alcântara.

Parte significativa destas terras, hoje, passou a constituir o território da Base Militar, ocupado pelo Estado. Para tanto, usou-se de deslocamentos, desapropriações e reassentamentos compulsórios das comunidades para áreas distantes de onde viviam originariamente. Mesmo

tendo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em novembro de 2008, tornado público o relatório que tramitava na Superintendência, Processo Administrativo n° 54230.002401/2006-13, que trata da regularização fundiária das terras da Comunidade Remanescente de Quilombos, localizada no município de Alcântara, estado do Maranhão.

Constam dos autos o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território da Comunidade Remanescente de Quilombo de Alcântara, elaborado pelo grupo de trabalho constituído pela Ordem de Serviço/INCRA/SR (12) G nº 03, de 17 de janeiro de 2007. Os estudos socioeconômicos, culturais, antropológicos, fundiários, cartográficos e ambientais contidos no citado Relatório reconhecem que a citada Comunidade se caracteriza como grupo étnico remanescente de quilombo, dotada de trajetória própria e relações territoriais específicas com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, e concluem que as terras identificadas no referido Processo Administrativo, com área delimitada de 78.105, 3466 há (setenta e oito mil, cento e cinco hectares, trinta e quatro ares e sessenta e seis centiares), são consideradas como território da Comunidade Quilombola de Alcântara (BRASIL, 2008, p. 110).

De acordo com Almeida (2006b), as comunidades residentes na área de instalação do Centro de Lançamento de Alcântara são remanescentes de quilombos, pois carregam consigo fatores históricos, identitários e de conflito étnico que, a partir de uma análise crítica da formação da cidade de Alcântara e desfazendo a auto evidência das interpretações oficiosas do senso comum, não podem ser consideradas apenas do prisma da decadência econômica de uma aristocracia rural dos tempos coloniais. Segundo o autor, os procedimentos analíticos para reconhecimento das populações como remanescentes de quilombos devem considerar suas características culturais mais antigas, que vêm sendo abaladas com a desestruturação proporcionada pela implantação do CLA.

Desta feita, há um conflito social que traz consigo marcas do passado, fazendo com que, em outros tempos e de outras maneiras, as situações vivenciadas por seus antepassados sejam revividas, ou seja, o que Almeida (2006b, p. 25-26) denominou de “memória oculta e historicamente reprimida” e destaca que:

Este tipo de memória é provocada por uma situação limite que, ao colocar em jogo a sobrevivência do grupo, acaba tornando transparentes acontecimentos, representações e elementos identitários que tradicionalmente eram mantidos segundo uma invisibilidade social. O conflito social cria condições de possibilidade para que venha à tona o ideal de autonomia e de trabalho livre, por conta própria.

Ainda para este autor, constatam-se no seio das comunidades que foram removidas para a implantação do CLA, resistências às formas de imobilização da força de trabalho, a deslocamentos compulsórios e a outras medidas repressoras que reatualizam práticas escravistas de tempos passados.

Assim, para Almeida (2006b, p. 26):

Nesse contexto é que representam como submissão e que é vivida como rebaixamento moral a situação dos que foram deslocados para agrovilas e que foram desprovidos dos meios de se manterem por conta própria. Em contrapartida, ganha visibilidade antigas práticas clandestinas, ocultas, que permitem mapear Alcântara pelos traços contrastantes em face de um sistema escravista que, ainda na vigência da administração colonial não conseguiu manter imobilizada de maneira plena a força de trabalho. Multiplicam-se marcas evidentes dessas resistências, dispersas em práticas clandestinas de plantar em terras proibidas pelo CLA e designações do cotidiano que reativam a memória coletiva.

Como observado, os conflitos atuais trazem de volta no imaginário e na realidade das populações que foram deslocadas de suas terras de origem, práticas e situações semelhantes às que viveram seus antepassados no período escravagista. Travestidos de outras maneiras, por outros motivos, mas presentes como se estivessem a viver sob a égide do chicote e do trabalho forçado. Soma-se a tudo isto, o que é pior, o fato de que, hoje, quem tem usado de tais práticas é exatamente aquele que deveria protegê-los, o Estado brasileiro.

Outro fator apontado por Almeida (2006b, p. 73) que se pode destacar é a relação de interdependência das comunidades entre si e com o ecossistema, pois, “elas não têm existência isolada e percebem-se múltiplos níveis de organização entrelaçando os povoados”. Esta interdependência também é referida a questões econômicas, religiosas e políticas que implicam, inclusive, numa divisão de trabalho, de serviços e produtos que caracterizam muito bem “um sistema de trocas equilibradas entre povoados mais próximos ao mar e igarapés maiores, que se dedicam principalmente à pesca e complementam com agricultura, e povoados mais centrais distantes do porto”.

Os reassentamentos compulsórios já realizados agruparam povoados em sete agrovilas, dentre elas está a de Espera, a menor agrovila em número de famílias e, consequentemente, se levarmos em consideração os critérios adotados para distribuição das terras, a menor em termos de expansão territorial. Constitui-se num pequeno vilarejo de casas de alvenaria simples, umas um pouco maiores que as outras.