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A condição juvenil: conceito analisador e objeto de intervenção

A tematização mais clássica da juventude no interior da teoria sociológica sofreu, a partir das décadas de 1970/80, importantes abalos. Eles vieram, de um lado, com a crise dos paradigmas clássicos das ciências humanas, decorrente das múltiplas frentes de crítica epistemológica que se colocaram a partir da década de 1970, como os estudos pós-modernos, pós-estruturalistas, pós-coloniais, de gênero. O que se implode, a partir dessas novas abordagens, é a tendência sociológica de se limitar os indivíduos e suas ações às macroestruturas e funcionalidade do sistema social. Abre-se uma margem para a compreensão das subjetividades dos sujeitos implicados nos contextos sociais analisados.

Aliado a esse pano de fundo teórico-metodológico, a própria atuação social dos jovens, seja no radicalismo político, seja na elaboração de culturas de contestação dos valores estabelecidos, levou a certa desconfiança nas análises que enquadravam, de forma simples e direta, as ações dos sujeitos jovens na perspectiva de uma fase universalmente vivida (GROPPO, 2009).

Por exemplo, uma corrente teórica que tentou elaborar uma visão diferente dos fenômenos juvenis daquelas pautadas na questão da crise da continuidade da ordem social moderna ou do conflito geracional entre juventude e sociedade adulta foi desenvolvida na

década de 1970, pelos Estudos Culturais britânicos, entre pesquisadores da Universidade de Birminghan, Inglaterra. Numa compilação de ensaios publicados nos anos 1970, Resistence Through Rituals (HALL; JEFFERSON; 1976), a noção de juventude como categoria unitária foi questionada. A partir da análise de grupos juvenis surgidos nos anos 1950, os autores substituem o termo cultura juvenil pelo termo subculturas juvenis de classe, destacando que o conteúdo simbólico de uma subcultura juvenil se origina nos conteúdos simbólicos da cultura da classe social à qual o grupo pertence. Essas subculturas são respostas culturais elaboradas pelos jovens aos problemas específicos de sua classe de origem. São assim uma forma específica de vivenciar os problemas da classe, especificidade esta dada por sua posição etária e geracional.

Não é possível, a partir deste foco, falar em juventude como categoria genérica, pois as formas de vivenciar a transição para a sociedade adulta são limitadas pela própria estrutura de classes da sociedade capitalista, ou seja, cada classe possui sua juventude. Esse olhar teve grande importância para a sociologia da juventude, estando próximo, em certo sentido, da reflexão realizada por Bourdieu (1983) em sua entrevista A ‘juventude’ é apenas uma palavra, citada anteriormente.

Outras formas de abordagem sociológica da juventude podem ser lidas na produção teórica contemporânea. David Harvei (1992), por exemplo, ao tratar do tema na ótica da “pós- modernização”, considerou que os atributos supostamente típicos da juventude cristalizada nas sociedades modernas (vivência do imediato, vigência do instantâneo) teriam se expandido de modo a compor formas hegemônicas de sensibilidade social para todas as idades.

Nessa mesma linha, outros autores, como Meyrowitz (1985), consideram a existência de um embaralhamento dos atributos e status modernamente atrelados à infância e maturidade. Baudrillard (1972,1991) fala de uma juvenilização da vida, na qual a juventude, enquanto experiência culturalmente determinada, é recodificada como “juvenilidade”, ou seja, como signo, deslocado das vivências concretas, mas que pode ser acessado através do consumo de determinados produtos.

Para os debates sobre PPJ, no entanto, estas perspectivas não se mostram tão frutíferas quanto aquela que coloca em questão a universalidade de tal fase de vida, iniciada pelos Estudos Culturais.

A visibilidade posta sobre a vivência da juventude como algo heterogêneo foi importante pois tornou possível estudar experiências localizadas a partir da cultura e do contexto histórico-político, e não apenas na ótica da disfunção ou do desvio, como no funcionalismo sociológico.

Contudo, vale ressaltar que a noção da crise e da transitoriedade não foi totalmente abandonada pelos estudos das subculturas de classe, uma vez que, no seio de uma classe determinada, as subculturas juvenis aparecem como reflexos da própria crise da transição etária, mas as formas de expressão desta crise são delimitadas pela cultura e pelos problemas da classe de origem (ABRAMO, 1994).

Há pelo menos um efeito constante da crítica dos estudos culturais: o uso do termo juventudes, no plural, parece ter se tornado paradigmático, indicando um grande leque de cortes empíricos possíveis, tão variados quanto pode ser a própria existência e experiência da juventude.

Esta nova visibilidade também se traduz na tendência da sociologia em reformular seus métodos de abordagem empírica dos jovens, numa tentativa de ressignificar a própria juventude como categoria, admitida como parte de um processo mais amplo de constituição dos sujeitos, processo tão longo quanto a própria vida, que não tem fim nem fases bem definidas, no qual a juventude constitui um momento determinado, mas não se reduz a uma passagem (DAYRELL, 2003).

Tomemos como exemplo um estudo sobre culturas juvenis que se tornou um clássico dos anos 1990, realizado pelo sociólogo português José Machado Pais (2003). Nesse estudo, Machado Pais faz as seguintes considerações de método:

Tomei os jovens como fatia de coetâneos movendo-se através do tempo, cada um deles com sua própria experiência de vida, influenciada por circunstâncias históricas e sociais específicas. Recorri, pois, a perspectiva metodológica do curso de vida... Interessava-me, nomeadamente, analisar as relações entre tempo pessoal e tempo

histórico, tempo de transição e tempo de sincronização, trajetórias individuais e estruturas sociais e, por último, interessava-me analisar a transição como um processo de negociações complexo (MACHADO PAIS, 2003, p.72, grifos do autor).

Interessante notar como a relação entre estruturas sociais e juventude é articulada, no trecho destacado, em função de “trajetórias individuais”, num complexo processo de “negociação” com o meio social. É uma abordagem muito diferente daquela empreendida pelos primeiros estudos sociológicos da juventude, focados em dizer, de forma mais disciplinar, qual o lugar social da juventude, ou o que se deveria esperar dos jovens. A juventude deixa de ser apenas uma fase de vida e torna-se também uma condição social.

Esta ideia fincou raízes na produção sociológica brasileira20, servindo para referir-se, de modo geral, a uma dupla dimensão da juventude: numa primeira dimensão, a condição

20 Ver, por exemplo, Dayrell (2003, 2007), Abramo (2005), Groppo (2010). Obras essas contidas nas referências

juvenil diria respeito ao modo como uma sociedade constitui e atribui significado a esse momento do ciclo de vida, que alcança uma abrangência social maior, referida a uma dimensão histórico-geracional; numa segunda dimensão, esta condição referir-se-ia a uma situação juvenil, que revela o modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referidos às diferenças sociais, como classe, gênero, etnia, etc. (ABRAMO, 2005; DAYRELL, 2007).

É importante, portanto, compreender que os programas formulados e coordenados no âmbito da Secretaria Nacional de Juventude, assim como a criação do próprio Estatuto da Juventude, foram tornados possíveis graças ao envolvimento de outros setores da sociedade na elaboração discursiva deste campo político, notadamente o meio acadêmico. Por exemplo, constatou-se a importância de pesquisas e produções acadêmicas que, incentivadas pelo governo e por instituições internacionais, levantaram informações sobre a relação entre os jovens e a educação, o trabalho, a violência, a sexualidade, o gênero, a saúde, a família, o uso de drogas e etc.21 De maneira geral, essas pesquisas refletem um movimento intelectual que tem forçado a ampliação das abordagens e das problemáticas relacionadas à juventude, dado que, além de produtores e/ou vítimas de problemas sociais, os jovens são sujeitos sociais, dotados de agencia e capacidade reflexiva. Há mais espaço para negociação entre os sujeitos jovens e a sociedade na forma como o discurso sociológico contemporâneo compreende o processo de socialização, e isto, não se pode deixar de frisar, constitui por si um fato político.

Um trabalho que mapeou o discurso sociológico latino-americano entre o final o século XX e início do atual demonstra que

os “S” encabeçam a lista das regularidades identificadas: pensar a juventude de hoje em suas múltiplas determinações e expressões obriga a todos a pensar e a falar no “plural”. Essa “regra” é tributária do campo que introduziu a necessidade de

ressignificação dos estudos e teorias sobre juventudes: os estudos culturais.

(BARBIANI, 2007, p.140, grifos do autor).

A despeito desta fragmentação do objeto juventude, duas categorias analíticas ganham destaque: a condição juvenil, encarada, como vimos, como o contexto histórico- político-cultural no qual a transição para a vida adulta é vivenciada; a de culturas juvenis, que enfatiza as construções identitárias e simbólicas dos jovens como formas de sociabilidade e reflexividade diante da realidade colocada pelos indivíduos submetidos, num dado contexto, à

21 Refiro-me às pesquisas “Perfil da Juventude Brasileira”, publicada pelo Instituto Cidadania em 2003, e

condição juvenil. O uso das categorias condição e/ou cultura, de acordo com a pesquisa citada, torna-se

o “guarda-chuva” possível e conciliador das diferentes perspectivas de encarar e definir a juventude em suas diversas manifestações e expressões. Aqui reside a possibilidade de uma “chave-explicativa” e estruturadora de saberes que venham a constituir e legitimar a categoria juventude(s) como campo do conhecimento, dotado de um estatuto epistemológico e ontológico próprio (BARBIANI, 2007, p.141).

O campo da cultura (identidade juvenil) e o campo da condição social (construção material e simbólica da juventude como fase) são os mais explorados na identificação contemporânea da juventude (GROPPO, 2010)22.

Outro conceito que aparece em algumas discussões no campo das Políticas Públicas para a Juventude (PPJ), e que vem se somar à diversidade de situações tornadas visíveis pela noção de condição juvenil, é o de moratória vital (MARGULIS e URRESTI, 1996), espécie de crédito vital decorrente do fato de os jovens estarem mais longe da velhice, da enfermidade, da morte23. Este conceito permitiria analisar as diversas situações juvenis a partir da maior ou menor posse do excedente temporal, do crédito vital, de algo que se dispõe quando se é jovem e que, ao contrário, se desgasta e se perde com o envelhecimento. “De este modo, tendrá más probabilidades de ser joven todo aquel que posea esse capital temporal como condición general” (MARGULIS e URRESTI, 1996, p.5).

La juventude, en tanto función, estaria expuesta a um desgaste diferencial em la materialidade misma del cuerpo según género y setor social,com lo que deja de ser mera cronologia para entrar a jugar, processada por la sociedad y la cultura, em el plano de la durabilidade que es cualitativamente diverso, no lineal y más complejo. Así, lo sociocultural influiria los ritmos del desgaste biológico, haciendo la pesar la diferenciación em la mera cronologia (idem).

Como se verá adiante, essa consideração da juventude como moratória vital desigualmente experimentada está implícita na prática e desenho de alguns programas, para os quais um dos focos é a vulnerabilidade a que estão expostas determinadas parcelas da população de jovens brasileiros.

22 Luís Antônio Groppo tenta condensar essas duas formas de apreensão sociológica da juventude no conceito de

“dialética da juventude”, o que significaria considerar um processo de constante disputa entre as identidades juvenis e a condição juvenil socialmente delimitada, ou seja, a integração social versus a autonomia juvenil. Ver A condição Juvenil e Modelos Contemporâneos de Análise Sociológica das Juventudes, GROPPO, L.A. in

Ultima Década, n. 33, CIDPA, VALPARAISO, deciembre 2010, pp. 11-26.

23 Esta discussão aparece, por exemplo, nos capítulos referentes à educação e segurança pública do estudo

publicado pelo Ipea em 2009. Ver: CASTRO, J.A.; AQUINO, L. M., ANDRADE, C. C. (orgs.) Juventude e

Enfim, essa breve explanação nos demonstra que há, na teorização contemporânea da juventude, um elemento fundamental para a constituição desta como objeto de políticas públicas específicas, que é o reconhecimento do jovem como sujeito necessariamente diverso, condicionado pelas condições materiais e culturais de existência.

O processo de reconhecimento do jovem como sujeito jurídico e problema de políticas públicas só é possível pela redefinição epistemológica do objeto juventude, não mais circunscrito apenas pela temática da fase biopisicológica, mas encarado na ótica da condição social à qual o sujeito é submetido e desenvolve sua personalidade e sociabilidade.

A partir dessa redefinição conceitual, alguns documentos norteadores para as políticas têm afirmado que seu objeto é a juventude como condição social, ou simplesmente a condição juvenil, demarcando tanto o desenho quanto as metas a serem alcançadas pelas políticas adotadas.

Existem, pelo menos, cinco elementos cruciais para a definição da condição juvenil em termos ideais-objetivo maior de políticas: i) a obtenção da condição adulta, como uma meta; ii) a emancipação e a autonomia, como trajetória; iii) a construção de uma identidade própria, como questão central, iv) as relações entre gerações, como um marco básico para atingir tais propósitos; e v) as relações entre jovens para modelar identidades, ou seja, a interação entre pares como processo de socialização. (UNESCO, 2004, p. 26).

O objetivo das políticas de juventude, no Brasil, seria, assim, criar mecanismos que ajam diretamente sobre a condição juvenil, garantir direitos aos indivíduos que vivem tal condição e garantir que a condição juvenil seja um direito de todos. Aplicar medidas políticas com foco na juventude possibilitaria alterar a qualidade da condição juvenil, dado que as desigualdades sociais impossibilitam muitos jovens de viver esta condição em sua plenitude ou normalidade.

É importante lembrar que as políticas aplicadas nem sempre “alcançam” a condição juvenil na ótica da cidadania. Segundo Krauskopf (2003), coexistem pelo menos quatro focos nas políticas de juventude adotadas: a juventude como etapa de preparação, transição entre a infância e a idade adulta; a juventude como etapa problemática; a juventude formada por atores estratégicos para o desenvolvimento; a juventude cidadã, como sujeito de direitos.

A coexistência entre modelos pautados por diferentes critérios é uma das limitações apontadas pelos especialistas do campo e se explicaria pelo fato de a juventude ser sempre uma representação, variável de acordo com o contexto em que a política é formulada. (SPÓSITO e CARRANO, 2003). Apesar disso, verifica-se um esforço nos documentos formulados no âmbito do governo federal no sentido de estabelecer como meta a condição

juvenil na ótica dos direitos e da cidadania. “O governo federal inovou na concepção de política pública e passou a considerar a juventude como condição social, e os jovens, como sujeitos de direitos” (BRASIL, 2006, p.7).

A expectativa é que as políticas adotadas não devam ser “apenas o retrato passivo das formas dominantes de conceber a condição juvenil (criminalização dos jovens pobres, por exemplo), mas poderiam agir, ativamente, na produção de novas representações” (SPÓSITO e CARRANO, 2003, p.182).

O foco das políticas públicas é a condição juvenil. Isto implica em estabelecer a juventude como condição desigual (desigualdade entre jovens e não jovens e desigualdade entre os próprios jovens); situação vulnerável (se grande parte da população já se encontraria em situação de vulnerabilidade, o fato de ser jovem é um agravante desta vulnerabilidade); sujeito sociocultural (submetido à determinada realidade social, mas que responde reflexivamente à esta realidade).

Vejamos como estas três esferas de significação sociológica da juventude são expressas no debate contemporâneo sore políticas públicas e tornam-se os principais focos de programas governamentais.

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