• Nenhum resultado encontrado

A configuração do romance e o conceito de plurilinguismo

3 INTELECTUAIS EM CRISE: A ALEGORIA EM UM QUARTO DE LÉGUA EM

4.3 A configuração do romance e o conceito de plurilinguismo

A complexa estrutura romanesca de Um quarto de légua em quadro não se restringe apenas a uma teatralização do pacto autobiográfico e ao jogo entre as formas diário e romance. Longe disso, é necessário perceber que esse recurso estilístico de profundas

reverberações na temática da obra está inserido em meio a outras estratégias de plurilinguismo presentes no texto. Para entendermos que outros fatores salientam, portanto, a estrutura multifacetada do romance, antes é necessário que nos detenhamos sobre a configuração do romance enquanto gênero, tal como o analisa Bakhtin (1990).

Segundo o teórico russo (1990, p. 403), o romance, enquanto gênero, seria caracterizado por três aspectos fundamentais, a saber: a atualização da matéria narrada, localizada temporalmente no presente, o retrato da ação inacabada, resultado de sua inovação temporal e, finalmente, a manifestação de pontos de vista divergentes. Essas peculiaridades do romance, entretanto, não seriam fortuitas. Como um gênero em evolução e em ascensão, ele estaria essencialmente ligado à Modernidade e à abertura da sociedade europeia para outros povos, línguas e culturas. O peso da alteridade, dessa forma, passa a ser sentido por uma civilização até então focada em si, o que acarreta, inevitavelmente, mudanças na maneira de representação artística dos indivíduos no mundo. Lopes (2003, p. 76), por exemplo, atribui a consolidação do romance à sua capacidade estrutural de retratar as diferentes vozes que se cruzam em sociedade e que se contradizem, impossibilitando a hegemonia de um ponto de vista único, exclusivo.

Evidentemente, a variedade de perspectivas enunciadas no romance está intimamente em desacordo com o mundo épico, preestabelecido e estanque. Para Bakhtin (1990, p. 423), ao contrário do romance, a epopeia constituir-se-ia um gênero fechado, um todo coeso baseado em uma visão de mundo homogênea. Seu objeto, o passado mítico e acabado de uma comunidade, não pressuporia dissonâncias internas de posicionamentos; ao contrário, o caráter universalista, propiciado pelo distanciamento temporal, seria sua tônica.

Como vemos, a originalidade do romance, ou seja, a coexistência de diferentes consciências manifestadas por diferentes vozes e sua afirmação devem-se sobretudo à quebra de paradigmas dos moldes épicos. À diferença da epopeia, o romance forma-se como um gênero aglutinador de perspectivas e de possibilidades, maleável por excelência. De acordo com Bakhtin (1990, p. 426), a estreita relação do romance com o presente habilitaria a discrepância entre as consciências representadas, entre a visão do herói sobre si e a visão dos outros sobre o herói e a individualização dos posicionamentos ideológicos. O teórico russo afirma ainda que “a verdadeira premissa da prosa romanesca está na estratificação interna da linguagem, na sua diversidade social de linguagens e na divergência de vozes individuais que

ela encerra” (BAKTHIN, 1990, p. 76), característica que ele denominou de plurilinguismo.

Aliás, o plurilinguismo como fator preponderante para a organização do romance traz diversas consequências para o estudo do gênero. Primeiramente, ele pressupõe que haja uma

correspondência entre a crescente complexidade das relações entre atores sociais na realidade e sua reelaboração artística em vozes distintas na prosa (BAKTHIN, 1990, p. 133). Em segundo lugar, o plurilinguismo põe em cena as concepções de língua31 e de discurso32 como atividades carregadas de significado, reconsiderando o papel social e ideológico da enunciação. Por fim, o conceito bakhtiniano ainda contribui para salientar a orientação dialógica33 do romance, pressupondo a necessidade da palavra em debate e da afirmação do outro na estrutura desse gênero.

Essa última hipótese interpretativa é digna de nota se pensarmos que o plurilinguismo não postula somente diversos matizes de linguagem e de perspectivas ideológicas, mas também reconhece o confrontamento desses posicionamentos. Assim, Bakhtin (1990, p. 105) defende que a unidade orgânica do romance seria mantida pelo autor, que disporia das vozes retrabalhando suas inerentes intencionalidades de discursos sociais e apresentando, sob o aspecto inteiriço da obra, a multiplicidades de pontos de vista que se chocam no todo romanesco. Ainda é o mesmo teórico que afirma, quando discorre sobre as possibilidades de realização do plurilinguismo no romance, que

um jogo humorístico com as linguagens, uma narração „que não parta do autor‟ (do narrador, do suposto autor, do personagem), os discursos e as áreas

dos personagens, enfim, os gêneros intercalados ou enquadrados são as formas fundamentais para introduzir e organizar o plurilinguismo no

romance. […] Todas elas [essas formas] assinalam a relativização da

consciência linguística, exprimem a sensação, que lhe é própria, da objetivação da linguagem, das suas fronteiras históricas, sociais e mesmo principais (ou seja, as fronteiras da linguagem enquanto tal). (BAKHTIN, 1990, p. 126-127).

Em Um quarto de légua em quadro, o plurilinguismo estrutural está presente em três das quatro possíveis maneiras de manifestação romanesca. Como vimos, existe nessa obra uma encenação de um pacto autobiográfico, romanceando uma pretensa veracidade do relato da personagem principal. Esse artifício gera, ainda, uma interferência entre a forma romance e

31Segundo Bakhtin, “a língua não conserva mais formas e palavras neutras „que não pertencem a ninguém‟: ela torna-se como esparsa, penetrada de intenções, totalmente acentuada.” (BAKHTIN, 1990, p. 100).

32 Bakhtin entende que o discurso seja a concretização da língua “em sua integridade concreta e viva” (BAKHTIN, 1981, p. 157). Nesse sentido, Lopes (2003, p. 70) contribui para essa reflexão ao postular que, para essa teoria, a linguagem só se torna relevante no discurso, através do contexto de enunciação, que a movimenta e a enriquece, abarcando amplas possibilidades de significação.

33

Não se pode tratar o plurilinguismo bakhtiniano fora de sua perspectiva dialógica. Para Barros, o dialogismo é

“um espaço interacional entre eu e o tu ou entre eu e o outro, no texto.” (BARROS, 2003, p. 3). A matização da

linguagem, que pressupõe a diversificação de pontos de vista, só se torna significante quando, além de reconhecer, dialoga com o outro. Daí advém o caráter polêmico e crítico do romance identificado por Bakhtin (1990, p. 428).

uma escrita diarística, uma vez que o discurso de Gaspar de Fróis se apresenta em um diário. É ainda nesse cenário que existe, dentro da trama narrativa, o estabelecimento de vozes em contraponto, responsáveis pela estruturação dos acontecimentos que vivenciam as personagens durante o assentamento açoriano no sul do Brasil. As personagens, consciências de mundo ideologicamente marcadas, questionam-se e lutam entre si pela hegemonia discursiva. Nesse sentido, deve-se ressaltar o posicionamento sociodiscursivo conflitante entre Joaquim Laio, Miguel Cardoso Ferreira e Gaspar de Fróis. No próximo item, veremos como, segundo a teoria bakhtiniana, ocorre uma estilização do romance que se condiciona a um bivocalismo; as personagens, por sua vez, irão nos conduzir a uma intensificação do plurilinguismo, fazendo que a obra se torne um romance polifônico.