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A configuração feminina em Eça de Queirós

III. O contributo da sociedade portuguesa oitocentista na modelagem da mulher queirosiana

2. A configuração feminina em Eça de Queirós

esplêndidas de educação moral, se não fossem pervertidos pelos apetites e caprichos do homem. A sua aversão ao cinema incide sobretudo nos temas diversos do adultério, precisamente os que recheiam a obra queirosiana.

Em 1959, ano de estreia do segundo filme convocado para este estudo, em pleno Estado Novo, Ercília Pinto, diplomada em Ciências Pedagógicas pela Universidade de Coimbra, não se distancia de forma significativa de Emília de Sousa Costa, quer no reconhecimento de que "a mulher foi o primeiro ser humano a cair em escravidão" (1959: 3), quer na recusa de uma mulher masculinizada, preferindo a tal mulher que ocupe resignada o seu lugar ao lado do homem.

Ercília Pinto defende que cada um dos géneros detém uma missão específica, e que será essa diferenciação que manterá o equilíbrio e a felicidade de ambos. Apesar de considerar de grande utilidade as organizações feministas do seu tempo, dirigindo particular evidência ao préstimo que tiveram na concessão do direito de voto ao género feminino, delega aos homens as missões sociais que exigem força muscular, razão, raciocínio ou técnica, reservando para a mulher as ações que convocam a ternura, o sentimento e intuição, fundamentando esta repartição com base na vontade divina (1959: 13). Produzia assim, no ano em que António Lopes Ribeiro realiza a segunda adaptação de O Primo Basílio, a apologia de uma colaboração social e política entre os dois sexos que, sem serem iguais, se poderiam equivaler, como dois hemisférios que se contrabalançam, notando-se, no seu discurso, o timbre reminiscente da supremacia masculina.

2. A configuração feminina em Eça de Queirós

2.1. O olhar farpiano

Os cerca de dois mil textos de As Farpas formaram fidedignos epítomes da sociedade oitocentista, ocupando-se de todos os assuntos e derramando, nas palavras de Vianna Moog, “a sabedoria antiga e a moderna, a verdade histórica e a anedota, a erudição e a graça, um resumo do tempo e das ideias” (1939: 173), ou, como afirma Carlos Reis, um autêntico “laboratório privilegiado de reflexão romanesca” (2009: 219), que lançou um profundo escrutínio sobre o estatuto de a mulher, cruzando os temas da educação, da família, do casamento e do adultério, no sentido de averiguar a capacidade de a mulher portuguesa de se manter nos seus papéis de mãe e esposa.

Se uns acreditavam que ler As Farpas era sinónimo de conhecimento puro e incessante, de contacto privilegiado com assuntos científicos e literários, na convizinhança de Voltaire, Rousseau, Kant, Hegel,Proudhon e iguais vultos da erudição universal, já outros, como Oliveira Martins, não pouparam os literatos que acreditavam que As Farpas estariam no lugar mais alto em matéria de conhecimento. Mas para os seus autores, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, não restavam dúvidas sobre a sua importância, assumindo ambos que As Farpas surgem como uma espécie de síntese auxiliadora, dirigida a um país que se encontrava mergulhado numa ignorância espessa. Ramalho Ortigão compara mesmo estes escritos com a ação de “um filantropo que considera dos pobres todo o dinheiro que possui” (Moog, 1939: 175).

Neste vasto conjunto de crónicas opinativas, Eça de Queirós posiciona-se desde logo contra a realidade da educação feminina, dando particular destaque à instrução administrada pelas mães, que considera oca, fomentadora de uma ostentação estéril e de superficialidade religiosa, totalmente direcionada para o pensamento romântico e de fantasia. Eça dirige incisivos reparos aos métodos pedagógicos dos colégios, que descreve como lugares de clausura, conducentes ao tédio (1969: 127-128).

Em O Primo Basílio percebemos, no início do romance, esta permissividade moral por parte da mãe de Luísa de Brito que, na condição de viúva, estende à sua filha, com apenas dezoito anos, a possibilidade de namorar o primo, numa referência à educação libertina e pensamento materialista da progenitora, completada com o romantismo que a filha absorve dos romances de Walter Scott: “Tinham muita liberdade, ela e o primo Basílio. A mamã, coitadinha, toda cismática, com reumatismo, egoísta, deixava-os, sorria, dormitava. Basílio era rico, então, chamava-lhe tia Jojó, trazia-lhe cartuchos de doce…” (Queirós, 2010: 15). Além disso, o leitor apenas consegue vislumbrar superficialmente o percurso formativo de Luísa, encontrando-o sempre revestido de uma frivolidade estruturante, muito associada às mulheres da sua posição social, que Eça insistentemente condenou em As Farpas.

Enquanto Luísa é enigma, de comportamento dúplice, Leopoldina personifica essa frivolidade e é precisamente com a amiga de infância que Luísa revela alguma pista reminiscente da sua convivência escolar, memórias congestionadas de delírios românticos e vestígios de alguma fantasia sáfica, decorrente dos “sentimentos” que as raparigas sentiam umas pelas outras.

Nas suas crónicas farpianas, Eça estabelece reparos primordialmente direcionados para a matéria da educação, alertando para as consequências de segregação sexual que, segundo ele, instigavam o caráter feminino com valências múltiplas sobre técnicas de fingimento e falsidade. Para Eça, não restava nenhuma dúvida de que este era o principal

perigo do colégio, a hipocrisia, porquanto aprendia-se a astúcia e as habilidades específicas da aparência, do fingimento, tornando as mulheres “hábeis em contradizer com o rosto e a alma” (1969: 128), matérias que a personagem Leopoldina não terá dirigido grande dedicação, ao contrário de Luísa, que as aprendera com mérito e as conservava para estruturar o seu comportamento. É esta duplicidade que permite ao leitor definir, de forma objetiva e antecipada, analogias imediatas com a mulher burguesa oitocentista, cheia de contradições, dividida entre o ser e o parecer, que as farpas queirosianas denunciam. Esta ligação de Luísa com o estereótipo epocal evidenciado por Eça é insinuada ao leitor, no início do romance, através de dois momentos distintos: o primeiro, quando o narrador nos mostra a Luísa autêntica, que se identifica com os impulsos lascivos e estouvados de Leopoldina, e, logo a seguir, a perspetiva que Jorge tem da esposa, juízo que se afigura longe do delineado pelo leitor, e que se constitui no objetivo principal da personagem Luísa: o parecer.

Não obstante, Eça, como já tinha antecipado, não desenvolve nenhuma proposta para uma autêntica alteração do ensino feminino, limitando a coadjuvar os seus colegas da época, mantendo-se leal à limitação do trabalho da mulher às fronteiras do lar e da família, uma dualidade de esposa e mãe que emerge da ficção queirosiana.

No que toca ao ensino, Eça reincide na subscrição dos testemunhos anteriores que distanciam a mulher das ciências exatas, sugerindo que se ocupem dos aspetos mais superficiais e pitorescos das matérias (Ibid.: 128), recusando qualquer tipo de profundidade temática.

A certa altura, quando Eça e Ramalho Ortigão reconhecem o atraso manifesto da instrução feminina e apontam a necessidade de evitar, através da educação profissional, o escravizar da mulher nas fábricas, parecem ir ao encontro da defesa de uma real equidade nas oportunidades dirigidas ao género feminino; mas cedo percebemos que apenas desejam resgatar a mulher das linhas de produção para as redirecionar a casa e restituí-las às funções do lar.

No entanto, ambos os autores defendem que o conhecimento essencial passaria pelas noções de economia doméstica, fundamentais para a realização da sua primeira missão e, para além disso, o saber que obtinham, de forma suplementar, favoreceria o seu entretenimento quando estivessem sozinhas e beneficiaria igualmente os seus maridos na função de os acompanharem, mantendo-se assim capacitadas para reestruturar, em qualquer sítio, um forte centro de moral (AF Jan.-Fev.,1875: 55). Para isso, seria necessário ter aptidões especiais, conhecimentos e ideias.

2.2. O caráter exógeno e negativo da mulher queirosiana

É quase impossível recusarmos liminarmente a tendência para uma decomposição psicanalítica do comportamento de Eça de Queirós em relação ao sexo feminino. Este impulso, que nos é sugerido principalmente pelas posições metópicas perfilhadas pelo escritor português nas suas farpas, encontra grande possibilidade quando observamos as suas personagens femininas mais analisadas, como são os casos de Luísa, Leopoldina, Amélia, Maria Eduarda, Ludovina ou mesmo D. Maria da Piedade - figuras sobre as quais Eça idealiza as debilidades de uma educação permeável à degradação social. Mas também mediante o incitamento de alguns autores críticos, no sentido da hipótese de recuperarmos sintomas de um jogo parabiográfico, estruturado, não nas experiências concretas e no entendimento exaustivo que o autor de O Primo Basílio tivesse do género feminino, mas no tratamento literário de um eventual distanciamento em relação à mulher, um desconhecimento dominador que terá brindado Eça com uma manifesta dificuldade de composição das suas personagens femininas. Vianna Moog coloca mesmo a seguinte pergunta: “A sua alarmante antipatia pelas mulheres não será consequência de uma revolta inconsciente pela mulher que o gerou?” (1939: 19). O enigma do nascimento de Eça de Queirós e o facto de não ter sido criado pela sua mãe, circunstância que nunca referenciou na sua escrita (Simões, 1980: 23), poderá conduzir a uma interpretação hipotética que liga a aparente hostilidade que Eça dirigiu ao género feminino, especialmente à mulher portuguesa, com a ausência da influência maternal na sua infância, contexto familiar que já vimos sobrevalorizado nos autores supracitados, os quais consideram o caráter da mulher necessariamente inviolável, pois achava-se que os homens eram produto principalmente da educação facultada pelas mães. O próprio Eça confirma que a educação inicial é garantida pelas mães, vaticinado: “Diz-me a mãe que tiveste – dir-te-ei o destino que terás” (1969: 107-108). Emília de Sousa Costa reforça esta perspetiva, recorrendo a uma interessante máxima legada por Nietzsche, que afirma que “cada um de nós traz consigo o reflexo da mulher que foi sua mãe, daí o respeito, o desprezo ou a indiferença que em geral o homem tem por todas as outras” (Apud Costa, 1916: 81).

Sem desejar aprofundar a análise sobre um eventual contágio biográfico, ou ousar concluir sobre a eventual relação direta entre a ausência materna na vida de Eça e a sua escrita, missão ainda e sempre difícil de concretizar, parece-me interessante fruir deste limbo interpretativo que liga o grau de conhecimento que o escritor português terá tido das mulheres e a maneira como construiu as suas principais personagens femininas. Não de forma percecionada, intuitiva, mas planeada, configurada com recurso a mecanismos

externos de pesquisa nas sociedades que o hospedaram e com um clarividente contágio de Flaubert e da sua Madame Bovary, como vaticina João Gaspar Simões que, em relação à personagem Luísa, afirma que Eça de Queirós, para além de não ter os conhecimentos profundos da mulher, que lhe permitissem compor esta personagem com os frutos da observação, também não possuía em si “os germes psicológicos capazes de a realizar introspetivamente” (1980: 396), aludindo às inúmeras reminiscências literárias provenientes de Ema, a personagem do romance flaubertiano.

Por conseguinte, o que esta perspetiva de análise convoca é a possibilidade de estas condições exógenas da existência de Luísa terem ajudado a determinar as características do seu temperamento, ou seja, propõe a construção deliberada das circunstâncias exteriores para manter o seu caráter de adúltera, não lhe concedendo a maternidade, mas facultando- lhe as fantasias de A Dama das Camélias, a ociosidade e o afastamento prolongado do seu marido, condições favoráveis para o aparecimento de um D. Juan indolente. Terá sido a conduta de Luísa determinada por circunstâncias exteriores, acatando totalmente os motivos de ordem física e social?

Na perspetiva da aparente obstinação de Eça em impregnar as suas personagens femininas de um caráter nocivo, o mesmo autor convoca a incontornável crítica de Machado de Assis, que classificou de negativo o génio de Luísa, considerando-a um “títere” (Apud. Simões, 1980: 398), esvaziando-a da capacidade de ter remorsos e consciência. Luísa surge, no pensamento do escritor brasileiro, como uma ideia pré-estabelecida, construída do exterior para o interior, reflexo direto das libertinagens que enfraqueciam, na visão de Eça, a conduta da mulher portuguesa finissecular, com peculiar cautela para a mulher lisboeta, que tanto censurara em As Farpas.

O temperamento fabricado de Luísa é igualmente referido por João Mendes, que faz sobressair o desinteresse e a preocupação que a personagem revela durante as opções que toma, estabelecendo, nesse sentido, a analogia com a heroína de O Crime do Padre Amaro, explicando que a sua queda é fruto da mesma postura sonhadora e romântica que moldou o caráter e a vontade de Amélia (1945: 30). E acrescenta que, depois de consumada a traição e de ter sido vitima das suas incúrias, o conflito acaba por se desenvolver pelo exterior, pois que Luísa admite a negligência do seu ato, mais de um incidente casual e da criada Juliana, que do seu sentimento de esposa.

Esta ausência de arrependimento e de pejo tende a consolidar a posição de Machado de Assis quando este observa que se Juliana não tivesse em seu poder aquelas cartas, o romance tornar-se-ia necessariamente mais curto. João Mendes robustece esta ideia superficial de mulher, adiantando que para Luísa ser uma personagem minimamente

verosímil necessitava apenas de ter o “coração cheio de alguma coisa de grande no bem ou no mal” (Ibid.: 31), expondo-a à banalidade e distanciando-a do caráter e da seriedade que qualquer mulher humilde e iletrada teria, comparativamente à frivolidade daquela “burguesinha desocupada” (Ibid.: 32).

Por outro lado, esta reflexão sobre a propensão de Eça de Queirós em retratar o pior do feminino através de uma perspetiva externa, utilizando primordialmente figuras masculinas como veículos dessa transmissão, e de conceder pouco espaço interior às suas personagens femininas, mereceu de Beatriz Berrini uma renovada interpretação, que valoriza a prudência que Eça teve sempre em relação a um território que desconhecia. Recorrendo à analogia com o proletariado e ao auxílio de Antero de Quental, lança a comparação coadjuvante: para exprimir o pensamento do proletariado só o proletariado é competente; da mesma forma, para conhecermos e revelarmos o mundo interior da mulher só a mulher é competente (1982: 138). Esta posição, para além de não negar a hipotética inaptidão de Eça de Queirós em estruturar, com conhecimento de causa, as suas heroínas, confirma que, como a própria ensaísta salienta, e dando como exemplo o romance Os Maias, quase todas as personagens femininas de Eça são visionadas exteriormente, predominando em geral o ponto de vista masculino, e o foco narrativo nunca se firma na consciência de nenhuma mulher e sempre as capturámos através do seu discurso, do seu comportamento, do olhar de outras personagens ou do narrador omnisciente que nelas se vai fixando (Ibid.:133). Quando olhamos para a personagem Maria Eduarda e a superficialidade do seu retrato interior, percebemos a recusa do narrador em demorar-se na perspetiva dela, concedendo-lhe apenas mais destaque nos momentos em que se cruza com Carlos ou Ega (Ibid.)

O crítico literário brasileiro Álvaro de Barros Lins concede-nos uma leitura próxima, mas menos discricionária em termos de género, considerando a falta de interioridade um preceito de todas as personagens queirosianas, as quais são construídas sem qualquer enigma. Lins confere dificuldade no conhecimento interior de todas as figuras que sobejam na obra de Eça, restando ao leitor o contacto com as suas características externas, mas sempre longe de conhecermos o que está no âmago destes aspetos (1939: 230). Sublinha ainda o sentido mais horizontal do que vertical da obra de Eça, assinalando que as suas personagens não elevam sequer o pensamento para fora do quotidiano, direcionando o naturalismo de Eça não só ao nível literário, mas também ao nível metafísico. Segundo Lins, a configuração física de uma personagem de Eça transmite de imediato a importância do papel que vai desempenhar na narrativa (Ibid.).

Não obstante, Beatriz Berrini insiste em avançar com as exceções de Luísa e Juliana, na medida em que afirma que é através dos conflitos interiores destas personagens que o

leitor é aliciado, pretendendo mesmo impugnar a falta de verosimilhança de Luísa, apontada por Machado de Assis42, acreditando que esta figura tem consciência moral e que age de

maneira coerente e verosímil, elegendo-a a personalidade mais rica de vida interior da galeria feminina de Eça de Queirós. Reconhece a futilidade e inconsistência no caráter de Luísa, mas assegura que esta age sempre de maneira coerente, usando inclusive a palavra castigo perante a evidência do seu erro, comovendo-se com remorso no momento em que lê as cartas de Jorge (1939: 230 - 241).

Julgo pertinente notar que esta posição unidirecional de Beatriz Berrini carece de alguma contraposição com a conceção feminina na obra de Machado de Assis. Não procurando o confronto, parece-me manifesto que a crítica machadiana publicada na revista O Cruzeiro, a 16 de abril de 1878, não se pode dissociar das diferenças culturais que separam os dois autores e da forma diferente como cada um observou, sentiu e interpretou as mulheres do seu tempo.

Na obra de Machado de Assis, a mulher também assume um papel de destaque, embora o perfil que alcança maior proeminência esteja manifestamente longe dos estereótipos vincados por Eça de Queirós. Assis criou sobretudo figuras inovadoras para a sua época, desconstruindo o papel passivo e de resignação atribuído à mulher, transfigurando-a, emprestando-lhe dimensão social, revestindo-a de astúcia, ousadia e mesmo poder, num claro domínio sobre o homem. A mulher machadiana faz uso da sua sensualidade para ascender socialmente, modelo que encaixa nos casos axiomáticos de Capitú, em Dom Casmurro, ou Guiomar e Laia Garcia em A Mão e a Luva.

Ao contrário das figuras femininas queirosianas, as mulheres de Machado de Assis são o elemento forte, a estrutura, a base das relações, que trazem o homem dependente. Se Eça sobressai pela preferência de heroínas tendencialmente submissas e com propensão para o adultério, ambicionando a independência sexual e económica, os contos e romances de Machado de Assis estão pejados de matriarcas que comandam fazendas, perfil que encontramos em Memorial de Aires, na compacta figura de D. Carmo, que segue a linha da mulher totalmente dedicada à família, mas que firmemente controla o espaço doméstico e o seu marido: “Aguiar sem Carmo é nada” (Assis, 2004: 1158).

42 O escritor brasileiro classifica o facto essencial do enredo de um “incidente erótico, sem relevo,

repugnante, vulgar” (Apud. Berrini, 1982: 138). Machado assina uma crítica muito moralista, atribuindo à personagem Luísa uma conduta imoral e sem remorsos e definindo a catástrofe que assolou a vida dela como uma circunstância fortuita. A ação que deveria advir do temperamento e dos sentimentos é transplantada para o acontecimento acidental. Condena igualmente o tom cru do livro e

Construídas interiormente ou não, predominantemente negativas ou emocionalmente ricas, o que se torna evidente são as características preponderantes nos diversos perfis femininos queirosianos, a sua pulsão sexual e a predisposição, de quase todas, para se tornarem fáceis, adúlteras, incestuosas e distantes da maternidade (Simões, 1980: 19). Nos romances de Eça, é detetável uma relação causa/efeito entre o adultério e uma ociosidade moldada pelo tédio e pelas leituras românticas, predicados de personagens como Luísa, Leopoldina, Ludovina ou a Condessa de Gouvarinho, nalguns casos agravados pelas relações incestuosas.

O biógrafo João Gaspar Simões sublinha a aparente dificuldade de o autor de O Primo Basílio retratar as mulheres que se afastam deste modelo. Estas verdadeiras exceções, segundo ele, no conjunto da obra queirosiana, permanecem acessórias, elenco que o Padre Allyrio de Mello arrisca mesmo limitar a duas: Joaninha, de A Cidade e as Serras e, com algumas reservas, D. Maria João, do conto Um dia de chuva (1945: 64). E se não fosse a obstinação queirosiana em relação ao incesto; talvez pudéssemos acrescentar Maria Eduarda, que acaba por patentear um evidente enriquecimento psicológico na galeria dos modelos femininos de Eça, porquanto vemo-la culta, instruída e sofisticada.

De resto, a mulher em geral, e a mulher portuguesa em especial, como refere o eclesiástico Allyrio de Mello, é encarada sempre como “excessivamente filha de Eva e do Pecado” (Ibid.). De facto, Eça de Queirós reduz ao mínimo a convocação de casamentos e maternidades felizes, e, como realça Maria Manuel Lisboa, "quase invariavelmente, onde há uma mãe ou uma hipótese dela, há uma adúltera, e onde há uma adúltera /mulher fácil /prostituta, existe uma forte possibilidade da derrocada do status quo" (2008: 32).

Na averiguação dos poucos retratos familiares que Eça preenche com a maternidade, impõem-se a leitura do conto No Moinho, no qual D. Maria da Piedade está envolta num

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