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A congruência entre heteronormatividade, normas de gênero e heterossexualidade

4 LGBTFOBIA

4.2 LGBTfobia e Heteronormatividade: termos convergentes

4.2.1 A congruência entre heteronormatividade, normas de gênero e heterossexualidade

Há um nexo existente entre heteronormatividade, normas de gênero e heterossexualidade compulsória, porém não há como tocar nesse nexo sem falar do trabalho magistral de Butler (2015) que reverberou consideravelmente no feminismo e nos estudos

queer. Convém, nesse aspecto, fazer algumas digressões ao pensamento da filósofa, antes de

aprofundar na questão.

Butler está preocupada em denunciar, a partir da leitura de Beauvoir, que não só o gênero é construído culturalmente, mas também o sexo. Indica, nesse sentido, que o sexo sempre foi o gênero, de tal modo que a distinção entre essas categorias se revela nula. A autora, portanto, procura embater na tradição feminista a formulação que só o gênero é pré- discursivo, mas, também, o sexo o é. Nessa mesma perspectiva, demonstra que há no feminismo uma dificuldade política, na qual se procurou reconhecer uma base universal e que se buscaria combater uma opressão dita como “singular, discernível na estrutura universal ou hegemônica da dominação patriarcal ou masculina” (BUTLER, 2015, p. 30). Para ela, essa noção de um patriarcado universal aponta para um fracasso ante à dificuldade de reconhecer as pluralidades culturais ou os empecilhos que uma categoria universal enseja. Não há, portanto, como analisar o conceito de gênero sem analisar as interseções implicadas: raça, classe, etnia, sexualidade e regionalidade das identidades discursivamente construídas. Torna- se imperioso, nas críticas atuais, estudar as interseções políticas e culturais implicadas ao gênero.

Butler (2015) traz à tona, nessa mesma discussão, a inteligibilidade ditada pelo poder- saber, em uma perspectiva foucaultiana. No que diz respeito ao gênero, sexo e desejo, lança mão dos mecanismos existentes nas relações de gênero, chamando-os de normas de gênero. As normas socialmente instituídas e mantidas – denominadas pela autora por um conceito comum, heterossexualidade compulsória – indicam a existência de uma coerência, continuidade, do sexo, gênero, prática sexual e desejo. Todo(a) aquele(a) que foge aos mandamentos da heterossexualidade compulsória - sintonia impositiva - será sumariamente considerado inexistente, ininteligível. Assim, essa matriz cultural, heterossexualização, é revelava pela autora, com base em Foucault - na formulação de uma verdade sobre o sexo -, como reguladora das práticas e performances. Excluindo e oprimindo as(os) assimétricas(os). Tem-se aqui um exemplo do regime de normalização das subjetividades que disciplina e aperfeiçoa as sexualidades do(a) sujeito(a) ocidental.

Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas (BUTLER, 2015, p. 43).

Logo, depreende-se desse pensamento que o binarismo engendra o(a) indivíduo(a) ao papel determinado pelo sexo biológico, já que a construção da sexualidade e do gênero se dá pelas normas que regulam a cultura (BUTLER, 2015). Em outras palavras, a expressão “corpo que importa” - considerando esse corpo como sendo inteligível - está implicada na lógica do homem como sendo oposto a mulher, por oportuno, o heterossexual oposto ao homossexual. Esse raciocínio estrutura a construção de uma identidade; formação identitária que chancela a exclusão e a violência aos(às) que fogem dessa lógica; a identidade, nesse sentido, cinzela as relações e denuncia quando um(a) outro(a) – travesti, gay, bi, lésbica, outro - foge a ela.

Porém, essa formação identitária, dentro da congruência da norma de gênero, é responsável também pela heteronormatividade. Junqueira lendo Warner indica que este observa a heteronormatividade por meio da qual “a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade legítima (e natural) de expressão identitária sexual” (JUNQUEIRA, 2007, p. 10). Há, portanto, uma hierarquização fora e dentro das vivências não heterossexuais e das identidades de gênero divergentes. As experiências e as vivências que mais se aproximarem do disposto pela heteronormatividade terão menos chance de serem aviltadas.

Mais do que a homofobia, mas sem dela se dissociar, a heteronormatividade, ao se relacionar à produção e à regulação de subjetividades e relações sociais, parece chamar mais atenção para os nexos entre um conjunto de eixos que atuam na construção, legitimação e hierarquização de corpos, identidades, expressões, comportamentos, estilos de vida e relações de poder (JUNQUEIRA, 2007, p. 10).

Para Miskolci o dispositivo da sexualidade foucaultiano passa por uma inflexão e ele confere esse mérito à imposição:

(...) da heteronormatividade, como um conjunto de instituições, estruturas de compreensão e orientação prática que se apoiam na heterossexualidade mantendo sua hegemonia por meio da subalternização de outras sexualidades, às quais impõe seu modelo (MISKOLCI, 2011, p. 50).

Em complementação, Prado indica que a homofobia possui:

(...) um funcionamento que se utiliza, muitas vezes, de atribuições sociais negativas advindas da moral, da religião ou mesmo das ciências, para produzir o que aqui denominamos de hierarquia sexual, a qual é embasada em um conjunto de valores e práticas sociais que constituem a heteronormatividade como um campo normativo e regulador das relações humanas (PRADO, 2012, p. 70).

Deste modo a heteronormatividade pode ser entendida como mecanismo de vigilância e regulação da norma de gênero. A “vigilância do gênero” (BORRILLO, 2015, p. 26) não se limita às sexualidades. É possível que se pensarmos assim caíssemos mais uma vez na

opressão. Por esse motivo, há que se destacar para a sequência sexo-gênero-sexualidade- desejo, que essa lógica “implica que esse „dado‟ sexo vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo” (LOURO, 2015, p. 16). Logo, para as(os) travestis e as(os) transexuais a transfobia revela-se com contornos próprios. Em primeiro lugar são colocados(as) dentro de um mesmo recipiente cultural juntamente com os gays, as lésbicas e os(as) bissexuais. Há uma ideia comum de que as pessoas trans se relacionam com gays, assim seus desejos são mitigados e não reconhecidos enquanto desejo hétero. Há, ainda, a estigmatização das trans, aqui em especial as femininas, ao lugar de prostituição. Carrara e Vianna (2006, p. 245) chamam a atenção para as hierarquias sociais existentes no universo homossexual, “já que as vítimas são normalmente travestis ou homossexuais pobres, envolvidos com prostituição ou moradores de favelas, que carregam o peso mais estigmatizante da homossexualidade”.

Por outro lado, o ativismo trans tem ganhado força nos últimos anos, a fim de superar esse lugar naturalizado. O movimento trans, aliado aos demais integrantes das letras LGBT, é responsável por incluir suas demandas particulares na agenda política do movimento. “Nos anos 1990, o movimento trans tornou-se bastante ativo nos Estados Unidos, formando coalizões entre transexuais, intersexuais, cross-dressers, travestis e outras pessoas que cruzam fronteiras de sexo e gênero” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 51).

Esse recorte serve para alertar à questão do continuum sexo-gênero-sexualidade. Com efeito, o corpo que segue essa regulação estará mais suscetível a não sofrer com estigmas e violências. Porém, os corpos que subvertem essa lógica transitam independentes e, como afirma Louro (2015, p. 39), colocam-se contra a normalização. “O alvo imediato de oposição é certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade”. Aqui abre-se para um novo olhar: os estudos queer, que serão melhor debruçados no quinto capítulo desse escrito, na tentativa de compreender as variadas formas que a sexualidade-desejos-performances podem assumir numa perspectiva que põe em questão a política identitária tão majoritária e excludente que normalizou (normaliza) por gerações os(as) indivíduos(as).

Quando se coloca em questão a identidade e a sexualidade vistas como naturais, quando se deixa de “fazer” do corpo dado, um corpo feminino ou masculino (LOURO, 2015), para seguir uma performance ou uma sexualidade diversa da “natural”, desperta-se na heterossexualidade compulsória um sentimento de ódio. “Tal ódio serve, neste caso, à restruturação de uma masculinidade frágil que, constantemente, tem necessidade de se afirmar pelo menosprezo do outro-não-viril: o maricas e a mulher” (BORRILLO, 2015, p. 90). Sendo, então, a LGBTfobia realimentada por mecanismos normalizadores e normatizadores, aqui

denominados de heteronormatividade e da lógica de que todas as pessoas devem ser héteros, aqui denominada de heterossexualidade compulsória.

A partir da lógica da heterossexualidade compulsória é possível revelar a dificuldade na afirmação dos valores fundadores da democracia, já que, ao promover a desigualdade entre os(as) indivíduos(as) em função de seus desejos sexuais, as posturas de gênero são engessadas e, por conseguinte, gera-se o favorecimento da hostilidade (BORRILLO, 2009). Nesse contexto, a diversidade sexual deve ser compreendida como um direito ligado à vida privada do(a) indivíduo(a). Assim, o Estado, através de seus aparelhos, não pode se eximir de apreciar/receber, ou receber de forma “alérgica”, quando não de forma estigmatizante, as transgressões que atentem contra esse pluralismo. Borrillo (2009) afirma que a homossexualidade, assim como a cor de pele, a opção religiosa ou a origem étnica, deve permanecer fora do interesse interventor das instituições, bem como sendo um dado não pertinente na construção política do(a) cidadão(ã) e na qualificação do(a) sujeito(a) de direitos.

Por essa razão, e compreendendo que os(as) autores(as) e vítimas da LGBTfobia não estão inseridos(as) em um contexto particular e sim em um meio social dinâmico que se apresenta em sua forma multifacetada, cabe relacionar a LGBTfobia e outras violências a fim de se compreender sua complexidade.