• Nenhum resultado encontrado

2. O repertório

2.3. A conquista – conotação amorosa

O momento do oferecimento do nos % também é marcado pelas performances de (). Esta bebida fermentada é fabricada pelos próprios indígenas e é

26

Transcrição e tradução de Israel Dutra (! - ( ), 2011.

27

bastante consumida por eles nas festas e celebrações. Minha interlocutora % fez o seguinte comentário sobre a preparação do :

Qual tipo de maneira que a gente mistura assim de , né... Tem de cana misturado com batata doce, batata japonês, cará, cará roxo. Tudo isso que a gente mistura pra poder fazer nossa bebida pra ficar forte, sabe... Tem bebida de cana, tem vinho de pupunha feito na hora também... o . A gente faz vinho, vinho de pupunha fica, pra poder ficar forte a gente mistura com cana. Às vezes a gente cozinha, seca dois dias... aí a gente amassa e rala com aquele, próprio pra ralar... raiz de paxiúba. Aí a gente mistura tudinho, depois a gente tira caldo de cana, aí mistura tudo isso... fica gostoso (% , 2010).

Na cerimônia do % , a oferta do caxiri segue uma praxe específica, à qual os participantes devem obedecer. A organização é feita de tal maneira que todos os homens devem beber da cuia de todas as mulheres, em fila. Neste momento, as mulheres podem tomar a iniciativa cantar as canções de acordo com sua vontade. Piedade faz a seguinte descrição deste momento:

O oferecimento de é muito cerimonioso: as mulheres vêm em fila, cada uma com um recipiente cheio de . A primeira mulher serve ao primeiro homem, aguarda que ele beba, e segue para o próximo. Então o primeiro homem beberá da segunda mulher, e assim sucessivamente de maneira que cada homem beba do de todas as mulheres na mesma ordem. É neste momento que elas cantam suas músicas – que constituem o gênero musical () (Piedade, 1997, p. 65).

Cada performance acontece, porém, de acordo com a necessidade e a vontade das cantoras. São manifestações espontâneas num amplo sentido, nas quais a resposta a um canto pode ocorrer ou não. O não é, contudo, consumido apenas nas cerimônias de % . Existem ocasiões mais simples em que a bebida também é amplamente consumida como as “festas de ” ou outras reuniões informais. Segundo Lasmar:

Há ainda outro tipo de evento, muito comum, designado pelo termo , por causa do papel central conferido à ingestão da bebida de mesmo nome. O caxiris são atualmente organizados para comemorar a realização de trabalhos coletivos ou datas festivas, como dias santos, dia dos pais etc. Cada família da comunidade contribui com a comida de que dispõe e com a bebida que é capaz de produzir (Lasmar, 2005, p. 81).

Em São Gabriel, visitei o centro comunitário chamado de “Maloquinha”. Trata-se de uma pequena maloca, réplica das moradias indígenas de outrora, onde os seus membros se reúnem, geralmente nos fins de semana, para comercializar os alimentos e bebidas ( ) de fabricação própria. Estes encontros semanais acabam culminando em uma pequena festa de , já que o excedente da produção de alimento e bebida que não foi comercializado termina sendo partilhado e consumido pelas pessoas presentes ali mesmo. A certa altura, quando já consumiram parte do , os presentes também costumam dançar e cantar os repertórios indígenas como 0 1 -2 e (). Fazem parte deste centro comunitário, além da senhora % que já mencionei nas entrevistas, um senhor * ( e sua esposa * - ( que conheci através da pesquisadora Gláucia Buratto, também integrada ao GPMIA. Gláucia já estava em S. Gabriel quando cheguei à cidade para minha segunda visita e havia feito vários contatos com alguns moradores. O senhor * ( nos convidou a participar de um destes encontros na “Maloquinha”, mas nossos planos não se concretizaram em função do temporal que caiu no dia combinado. Em vez disto, realizamos alguns encontros com este casal indígena em sua residência no Bairro da Praia, ocasiões em que fomos brindadas com o () cantado a dois. O senhor * ( nos deu esta tradução, apenas em linhas gerais, para o seu canto e o de sua esposa:

Eu cantei pra ela que... porque ela é outro tribo, né... a minha esposa. Estou cantando pra ela, sabe... Ela está cantando pra mim que ela está dando pra mim a bebida pra mim, sabe... porque sou o marido dela. Nós estamos bebendo aí, assim. Ela cantou com língua dela, ela é * - ( , sabe... é diferente, claro. E eu estou cantando com meu língua ! ( , né... ela está cantando com língua dela, sabe... Eu entendo tudo (* ( , 2011).

Pude observar que, antes de começar a performance, os dois conversavam entre si como que combinando aquilo que iriam cantar. A esposa cantou a primeira parte e, após mais um diálogo privado, o marido cantou a segunda. A seguir está a tradução de seus cantos nas línguas ! - ( e ! ( :

Ãruko keó weapu nĩ bahsasé28

Canção de uma mulher embriagada por caxiri de cana

1. Em Tuyuka

28

Falado:

Essa mulher vai cantar para você Filha dos Tuyuka

Pede que você traga caxiri de cana para beber.

Cantado:

Pede, pede Essa tuyukinha Traga, traga para mim Pede para você

Ofereça caxiri de cana para me embriagar Traga, diz a mulher Tuyuka.

Deixa eu beber

Sua bebida de cana, diz a tuyukinha Alegria, diz essa mulher, diz essa mulher Alegria, alegria, diz a tuyukinha

Assim diz essa mulherzinha Diz essa tuyukinha.

É assim que te diz a tuyukinha Canta, canta,

Alegria, alegria

Essa tuyukinha, está muito alegre Estou embriagada.

Falado:

É assim que alegra essa tuyukinha Risadas.

2. Em Tukano

O Tukaninho não fez caxiri de cana Não fez caxiri de cana, cana não fermentou Filho dos Tukano, filho dos Tukano Não tem medo, não tem medo.

Traga caxiri de cuia, para me embriagar Traga sua cuia cheia de caxiri

Vou beber, vou beber

Não tenho medo, não tenho medo Esse tukaninho não tem medo

O filho dos Tukano tem medo Tem medo, sim, de mulher Não tem medo de bebida Disso não tem medo, não medo O tukaninho só tem medo de mulher Tem medo, tem medo

Tem medo de mulheres Tuyuka O filhinho dos Tukano

O filhinho dos Tukano não tem medo Não tem medo de caxiri de carás Não tem medo de caxiri de cará preto Traga, traga, traga

Falado:

Assim diz, o filhinho dos Tukano.

Esta é uma situação em que o () é cantado por um casal estável que possui muitos anos de convívio.

Entretanto, a oferta do também pode fazer às vezes de pretexto para a demonstração do interesse de uma pessoa pela outra. Na narrativa de A. C. Fernandes e D. M. Fernandes sobre o % , o repertório () aparece num contexto de conquista amorosa, no qual novos casais são formados após a realização da cerimônia:

Após a cerimônia, os rapazes das duas malocas dançam o dia inteiro com cariços, 9 ! e os outros instrumentos musicais do . Quando eles, juntamente com as moças, começam a ficar embriagados, cantam músicas apaixonadas, como, por exemplo, a canção chamada em desana () [...] Depois dos meio-dia, o ! tukano despede-se dos cunhados e volta para sua maloca com o seu povo. Antes dele ir embora, o líder desana pergunta o que ele quer em troca dos peixes. Às vezes, o ! tukano quer de carne de caça ou de frutas do mato, tais como japurá, bacaba, ucuqui etc. Depois de combinar isso, o pessoal tukano volt para sua maloca. Nesta ocasião, muitos rapazes tukano voltam com mulheres desana para a sua maloca enquanto mulheres tukano ficam na maloca dos Desana (Fernandes, A. C.; Fernandes, D. M., 2006, p. 83-84).

Evidentemente, toda a realização dos % e das “festas de ”, o ambiente festivo ou comemorativo destas ocasiões, contribui para a atmosfera de conquista amorosa que se instaura entre os jovens não compromissados e o repertório () faz parte deste processo.

3. Musicalidade lúdica