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O sacramento do batismo

3.3 A consciência do povo pela (n)ação

As cenas descritas no subtítulo anterior estão relacionadas com a maneira como a narrativa busca levar o espectador a se envolver com o filme, com a história narrada, com intenção de tornar a memória silenciada numa memória compartilhada, para que assim seja evidenciada e possa fazer parte da memória social sobre o período. Mesmo que, à primeira vista, não seja o foco principal do filme, a preocupação com a nação e com a construção da memória nacional permeia toda a narrativa, que utiliza diversos artefatos para aproximar o público do tempo da ação e fazê-lo se identificar, também enquanto parte da nação, com o que é representado na obra.

Além dos pontos que destaquei no subtítulo anterior, outras características muito acionadas em diversas releituras posteriores sobre o período, que também estão relacionadas às formas como são representados a nação e seus agentes sociais – neste caso, os jovens – também são utilizados por Ratton, como uma forma de dar mais credibilidade ao narrado. A caracterização social dos principais personagens do filme também pode ser entendida como uma classe média universitária. Os protagonistas, os frades, são todos homens e brancos. Diferente de outros filmes, o “principal personagem”, frei Tito, é nordestino, mas vive em uma grande metrópole. São Paulo e o Rio de Janeiro são os principais cenários dos filmes que tratam do tema.

Como acredita Ventura (2008), a juventude da época se dividia entre a música e a literatura e esta relação com as artes também é representada em Batismo de Sangue. Os livros são evidenciados em diversas ocasiões, como por exemplo, na cena em que Betto narra em off uma carta que escreveu aos pais, em que conta a situação na cadeia e menciona que os frades andam lendo muito. Também lembro que o local onde os dominicanos marcavam os encontros com Marighella, onde Fernando trabalhava, é uma livraria de arte, religião e ciências sociais. Em diversas outras cenas os frades aparecem lendo, uma forma do filme demonstrar que a leitura, isto é, o conhecimento, é a base de uma juventude que se mobiliza e tenta mudar algo na história do país.

As representações da juventude do período ainda têm muito a ver com a forma de compreender as mudanças culturais – em relação à arte – que estavam ocorrendo. No filme, isso aparece com a presença de Chico Buarque, que também está presente em O

que é isso, companheiro?, e Noel Rosa no rádio, artistas ativados frequentemente quando se busca falar sobre música, arte e política da época. Em seu quarto no convento, Tito escreve um poema, em que demonstra sua fé, e depois liga um rádio e canta com Chico Buarque a música Noite dos Mascarados (Imagem 33). Entre uma imagem de Cristo e um crucifixo nas paredes há espaço para o rádio e para o seu violão. O rádio, que entre as décadas de 1930 e 1960 foi o principal veículo de massa do país, aparece como algo muito presente na sociedade daquela época. Em outros momentos do filme, o aparelho também é personagem. Além de músicas, o sequestro do embaixador norte-americano é noticiado aos frades Ivo, Fernando e Tito (que estão no convento) e ao Betto (que está no Rio Grande do Sul) pelo rádio.

Imagem 33 - Tito canta “Baile dos Mascarados”, com Chico Buarque, no rádio.

A televisão também aparece no filme, mas ainda sem substituir o rádio como veículo de massa, mas já exercendo um papel importante na sociedade. Tanto a televisão, como o rádio, atuam como uma forma de demonstrar o tempo da narrativa, com o objetivo de levar o espectador para aquela época, questão que se repete em muitos filmes sobre a ditadura. A primeira aparição da televisão no filme é a exibição da chegada do homem à lua, outro tema recorrente nos dois filmes que analisei na pesquisa. Os frades estão reunidos com outros jovens na frente da televisão para acompanhar o momento (em julho de 1969). Nesta hora, jovens jogam cartas e Tito toca

violão e canta a música Lunik 9, de Gilberto Gil, outra semelhança com o filme de Barreto.

O segundo contato com a televisão é durante a fuga de frei Betto do Cristo Rei, depois que alguns policiais o procuraram no local. Um colega do convento lhe dá o telefone de um primo para que ele possa se esconder. Betto entra num bar, que está exibindo o jogo entre Corinthians e Santos, em que o Pelé tem a oportunidade de fazer o milésimo gol. Telefona e, enquanto está sentado após jantar, ouve a notícia exibida no programa Repórter Esso (Imagem 34):

LOCUTOR

E atenção senhoras e senhores, o líder terrorista Carlos Marighella foi morto agora à noite num confronto com a polícia em São Paulo.

Imagem 34 - Frei Betto assiste anúncio da morte de Marighella.

O uso de símbolos como a televisão, o rádio, as músicas, o futebol, a chegada do homem a lua, o milésimo gol de Pelé são referências que buscam criar uma memória comum e, desta forma, legitimar aquilo que buscam representar, que se repetem em outros trabalhos sobre o período, como no caso de O que é isso, companheiro?, que elucidam o desejo de compartilhar um espaço e um tempo comum. Após a exibição da notícia no Repórter Esso, a câmera, que filmava a televisão, corta para Betto num plano médio, que é possível perceber o seu espanto. Em seguida, Betto olha ao redor e a câmera passa a mostrar o que Betto vê, fazendo o movimento de seus olhos. Com uma música tensa, o frade percebe que ninguém que está no bar, todos jovens, presta atenção na notícia, o que remete à declaração de Ratton, que descrevi no primeiro subtítulo, sobre a participação dos jovens na luta contra a ditadura ser referente a uma minoria:

TORCEDOR

Bah, você viu que golaço do Rivelino. Acho que hoje não sai o milésimo do Rei.

TORCEDOR 2