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A Consciência e o projeto da Transvaloração de todos os valores

Novos olhos para o mais distante. Uma nova consciência para as verdades que até agora permaneceram mudas.

(O Anticristo, Prólogo)

Quanto mais a filosofia de Nietzsche se aproxima da concepção de um projeto sobre a Transvaloração de todos os valores, mais se evidencia uma forma de pensar que não quer ter medida comum com os principais valores nutridos pela consciência moderna, tais como: sujeito, certeza, emancipação, progresso, autoconhecimento, autodomínio, compaixão, igualdade e muitos outros que prevaleciam como referência das ações humanas. Cabe-nos agora investigar o que antes tínhamos como suspeita: se é que existe realmente uma relação de continuidade entre a crítica da consciência moderna e a elaboração da Transvaloração, quais os aspectos comuns que atravessam um e outro plano e que permitem cogitar tal possibilidade? A partir desta resposta, acreditamos ganhar mais segurança no passo seguinte e responder pelo teor da nova ou

segunda consciência que aparece nas linhas gerais da filosofia transvalorativa

nietzschiana.

Em princípio, faz-se oportuno trazer à tona o contexto embrionário de um plano nietzschiano de escrever uma obra intitulada Umwerthung aller Werthe. Antes da efetivação desse texto, com a intenção prioritária de atingir os meios para a superação da cultura moderna, percebemos que Nietzsche vai ordenando os temas trabalhados em seu último período para a realização de uma grande obra filosófica. Assim, após ter escrito Crepúsculo dos Ídolos, “sem perder um só dia”, ele se deteve à tarefa da transvaloração. Todavia, não deixa de ser um fato significativo que após o filósofo ter anunciado neste livro “ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser” e que nesse prazer também haveria uma dose de destruição, surja-lhe a urgência de dar cabo à obra que seria o ponto final de sua vida filosófica – A Transvaloração de todos os valores – , destinada a pronunciar, de uma vez por todas, o surgimento de novos valores para a cultura.

Dessa forma consideramos que a escrita de Crepúsculo dos Ídolos, com as densas críticas aos ídolos (moral, cultura, religião, arte e política) de seu tempo, deu a Nietzsche uma maturidade para enfrentar as principais questões que envolviam o seu projeto filosófico. Em uma correspondência endereçada ao seu editor Naumann, na

176  ocasião do envio do manuscrito de Crepúsculo dos Ídolos, na época intitulado ainda de

Ociosidade de um psicólogo400 (Müβiggang eines Psychologen), Nietzsche ressalta que

o seu presente texto era “de natureza bastante rigorosa e séria”.401 Cinco dias após enviar esta carta, ele escreve para seu amigo Peter Gast (H. Köselitz), informando-o que o manuscrito que remetera pouco antes a Naumann, em uma síntese ousada de suas heterodoxias filosóficas essenciais, teria o propósito de “iniciar o leitor e abrir-lhe o apetite” para A Transvaloração de todos os valores.402

Sendo assim, compreendemos que a formulação da Transvaloração de todos os

valores parece ter se desenvolvido às sombras de seus textos de 1888, pois, em outra

carta ao historiador Georg Brandes, ressalta que o conteúdo escrito nos últimos tempos, referindo-se especificamente a O Caso Wagner e Crepúsculo dos Ídolos, tinha sido “apenas descansos do principal”. No que se refere ao principal, a proposta de um livro sobre o caráter transvalorativo de sua filosofia, pilheria: “A Europa terá necessidade de inventar outra Sibéria, a fim de para lá enviar o autor dessa tentativa de valor”403.

Neste clima de empenho em realizar um projeto como uma tentativa de valor contra a cultura moderna, surge um roteiro de quatro livros. Seriam eles:1. O Anticristo. Tentativa de uma crítica do cristianismo, 2. O Imoralista. Crítica de um funesto modo de desconhecimento, a moral, 3. Nós que dizemos sim. Crítica da filosofia como um movimento niilista e 4. Dionisos. Filosofia do eterno retorno.404Destes quatro livros, sabemos apenas que o primeiro, O Anticristo, foi concluído. Criou-se então naquela época a expectativa de que Nietzsche se dedicasse aos outros livros que formariam seu novo projeto filosófico, porém, isso nunca aconteceu. Surpreendentemente, na carta de

20 de novembro de 1888 enviada a Georg Brandes405, ele anuncia a escrita de sua

autobiografia Ecce Homo e avisa que estava com a Transvaloração pronta diante dele, referindo-se assim à conclusão do primeiro livro, O Anticristo, como sendo a obra já completa.

Mesmo que Nietzsche não tenha escrito os livros inicialmente planejados sobre a Transvaloração, entendemos ser possível apreender a atmosfera de uma “filosofia transvalorativa” a partir da crítica da consciência moderna e responder pela segunda

       400 NIETZSCHE. KSB 8, pp.411-413. 401 Idem.

402 NIETZSCHE. KSB 8, pp. 416-418. 403 NIETZSCHE. KSB 8, p. 419

404 NIETZSCHE. Fragmentos Póstumos, KSA 13, 589 NF 22(14) 405 NIETZSCHE. KSB 8, p.482 .

177  consciência surgida no Crepúsculo dos Ídolos e pela nova consciência anunciada no prólogo de O Anticristo.

***

O escrito Crepúsculo dos Ídolos, considerado em Ecce Homo como o “mais malvado” dos livros, um “demônio que ri”, nasce com a missão de promover a ruína dos valores de verdade atrelados à consciência moderna. Nietzsche diz: “Crepúsculo dos

Ídolos – leia-se: adeus à velha verdade” 406. Portanto, o trajeto filosófico nietzschiano

neste texto se resume assim em traçar “esperanças, tarefas, caminhos para a cultura” 407. Vejamos, então, como o livro que antecede o anúncio da Transvaloração, toca centralmente na questão de ter brotado uma segunda consciência sem medida comum com as verdades da consciência moderna:

Não existe realidade, “idealidade”, que não seja tocada nesse escrito ( - tocada: que cauteloso eufemismo!...). Não só os ídolos eternos, também os mais jovens, portanto mais senis. As “ideias modernas”, por exemplo. Um forte vento sopra entre as árvores, e em toda a parte caem frutos – verdades. Há o desperdício de um outono demasiado rico: tropeça-se em verdades, esmaga-se algumas com o pé – são tantas... Mas o que se recebe nas mãos nada mais tem de questionável, são decisões. Eu sou o primeiro a ter em mãos o metro para “verdade”, o primeiro a poder decidir. Como se em mim houvesse brotado uma segunda consciência, como se em mim “a vontade” houvesse acendido uma luz sobre o declive pelo que até então seguia... O declive – chamavam-no o “caminho à verdade”... Acabou-se todo “impulso obscuro”, o homem bom era o que menos consciência tinha do caminho reto. E, em toda seriedade, ninguém antes de mim conhecia o caminho reto, o caminho para cima: apenas a partir de mim a novamente esperanças, tarefas, caminhos a traçar para a cultura – eu sou seu alegre mensageiro... Exatamente por isso sou um destino. – 408

A partir deste destino traçado à luz do projeto sobre a transvaloração, é interessante notar que Nietzsche se posiciona diante da filosofia moderna como se (als

ob) a partir dela tivesse-lhe surgido uma segunda consciência (ein zweites Bewusstsein).

Ora, esta segunda consciência, do modo em que é formulada, longe de significar outra estrutura de reflexão ou um conteúdo de verdade, quer apenas dizer que o novo

      

406 NIETZSCHE. Ecce Homo, “Crepúsculo dos Ídolos”, §1 407 Idem.

408

178  conhecimento adquirido se detém apenas em expressar o resultado de um longo trabalho de enfrentamento da consciência moderna: assim, o percurso filosófico de Nietzsche proporcionou que ele tropeçasse em demasiadas “verdades”, esmagasse algumas, pois, para o seu próprio espanto eram tantas..., que não teria sentido apenas refutá-las. A conclusão, depois de passar por tantas verdades, aparece de modo sintético na quarta tese referente à “Razão na Filosofia”, exposta no livro “demoníaco”: “dividir o mundo em um ‘verdadeiro’ e um ‘aparente’, seja à maneira do cristianismo, seja à maneira de Kant (um cristão insidioso, afinal de contas), é apenas uma sugestão da décadence – um sintoma da vida que declina”409.

Inclinamo-nos, portanto, a pensar que este sintoma da vida que declina é, seguindo a análise nietzschiana, gerado pela própria consciência moderna. Ao dar ouvidos às verdades que permaneceram mudas, o maior “ganho” de Nietzsche talvez seja a aquisição do conhecimento de que a trajetória moderna declina no sentido de um aprofundamento da consciência, ou seja, o problema não se concentra prioritariamente nas verdades modernas, mas na consciência que as sustenta; assim, a Bewusstsein, genuinamente um efeito de superfície, é aprofundada pelos vícios morais da Gewissen moderna e, por isso, “desenvolve-se” apenas no sentido de nutrir com verdades supostamente seguras os correspondentes valores da cultura moderna. Por este novo conhecimento, sem precedentes na história da filosofia, a zweite Bewusstsein que brota a partir do Crepúsculo pode ser análoga ao novo ar que Nietzsche ganha ao submergir de um grande mergulho na consciência moderna, mas a metáfora nietzschiana parece ser mais eficiente em retratar este sentido; é como se nele “houvesse acendido uma luz sobre o declive pelo que até então seguia... O declive – chamavam-no o “caminho à verdade”.

Já no prólogo de O Anticristo, livro que expressa a Transvaloração, Nietzsche diz que

é preciso haver se tornado indiferente, é preciso jamais perguntar se a verdade é útil, se ela vem a ser uma fatalidade para alguém...Uma predileção, própria da força, por perguntas para as quais ninguém hoje tem a coragem; a coragem para o proibido; a predestinação ao labirinto. Uma experiência de sete solidões. Novos ouvidos para nova música. Novos olhos para o mais distante. Uma nova consciência para verdades que até agora permaneceram mudas.410(Grifo nosso)

       409

 NIETZSCHE. “Crepúsculo dos Ídolos”, III, §6.  410

179  Desse modo, a nova consciência para as verdades que até agora permaneceram mudas, resultado de perguntas que ninguém teve coragem de fazer e da predestinação do filósofo a um trabalho de altura, remete-nos a um circuito, ousado e labiríntico, da própria constituição da consciência moderna. Todavia, compreender o homem moderno em sua condição décadent rendeu a Nietzsche (ele mesmo um décadent, um moderno) a inteligibilidade da consciência moderna e da lógica de seus movimentos: a intenção de Nietzsche, em seu percurso crítico pela consciência moderna, não pode ser compreendida como uma “correção” do declive moderno a partir de outra verdade ou como a aquisição de provas ou de indícios que alegariam a falsidade das ‘verdades’ modernas. Ao tomarmos as indicações referentes ao Crepúsculo dos Ídolos e ao prólogo de O Anticristo, a segunda ou nova consciência, longe de ser a restauração de uma melhor consciência, é o atestado de um caminho seguido e uma força de expressão, afinal ele se diz “um alegre mensageiro”, que se sente impulsionado a tomar decisões, “o primeiro a poder decidir”, a novamente ter “esperanças, tarefas, caminhos a traçar para a cultura” ou, simplesmente, ser o primeiro homem a se tornar um destino.

Portanto, este é o ponto máximo que aqui podemos chegar. O destino que Nietzsche parece querer traçar para a cultura de sua época a partir da Transvaloração, não podemos alcançar simplesmente retraçando o caminho nietzschiano pela consciência moderna; uma coisa não pode ser reduzida à outra. Complexos elementos seriam necessários para entrarmos na seara da filosofia transvalorativa e na compreensão do destino nietzschiano, tais como: a concepção de vontade de poder, eterno retorno, niilismo e a criação de uma grande política. Embora reconheçamos que haja um direcionamento da crítica da consciência à formulação do projeto sobre a transvaloração de todos os valores, pelas linhas gerais da concepção deste projeto, compreendemos que Nietzsche, ao fazer a crítica da consciência moderna, não quis simplesmente trocar estimativas de valor, de fazer com que algo visto como um bem se tornasse um mal ou vice-versa. O próprio sentido da transvaloração (Umwerthung) não pode ser resumido numa simplicidade causal; eliminar um antigo valor para colocar um valor oposto em seu lugar. Se prestarmos atenção no termo utilizado por Nietzsche para se referir à transvaloração - “Um-werthung” - , o prefixo um é uma composição verbal

180  da língua alemã que dá a ideia de movimento, além de sinalizar retorno, mudança.411 Ou seja, transvalorar não significa simplesmente trocar ou inverter valores, mas sim mudança, movimento e retorno. Assim, percebemos que a condição “transvalorativa” da filosofia nietzschiana se relaciona à crítica da consciência a partir de três aspectos principais:

1. de um retorno às condições de formação da consciência, das possibilidades do

engendramento tanto da Bewusstsein quanto da Gewissen moderna. Não é por acaso que metáforas de profundidade – “acender uma luz sobre o declive”, “adentrar as cavernas”, “descer até o caos incandescente” etc – são utilizadas por Nietzsche para se referir ao trajeto dele no rumo dos subterrâneos da consciência e das formulações culturais responsáveis pela degeneração do homem de seu tempo. Neste circuito pela consciência moderna, Nietzsche procura reconstruir a gênese das referências morais que conduzem a consciência em declive, ao mesmo tempo em que se dedica a questionar o valor desses valores. Passo fundamental, a nosso ver, nos contornos iniciais da

Transvaloração.

2. da consciência superficial e gregária e do fio condutor do corpo. Quando Nietzsche se diz um décadent e, ao mesmo tempo, um sadio nos fundamentos, entrevemos nesta afirmação a possibilidade do filósofo escapar de uma incoerência de propósitos: apesar da crítica da consciência se realizar pelos desdobramentos da sua própria consciência, ele é “sadio nos fundamentos”, ou seja, ele reconhece que a consciência é um sinal de debilidade e enfraquecimento, diz respeito ao nível mais superficial e prosaico de nossa relação com o mundo e, por isso, não querer fazer dela um novo sistema de pensamento. Assim, o projeto da Transvaloração parece ser pensado sob o reconhecimento desses limites da consciência e da adesão a um feixe de impulsos e de lutas que residem no “submundo de cada alma”. Portanto, tomar o corpo, em suas oscilações impulsivas, como fio condutor de uma proposta crítica significou escapar das oposições valorativas do idealismo e do materialismo, do otimismo e do pessimismo, do bem e do mal, da saúde e da doença ou de qualquer oposição binária que foi fixada e reproduzida até a exaustão pela consciência moderna.

      

411 PFEIFER, W. Etymologisches Wörterbuch des Deutschen. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1995, p.1483.

181  3. da compreensão de um destino. O destino de Nietzsche aludido em Ecce Homo, quando apresenta a Transvaloração de todos os valores como uma “autognose da humanidade”412, está na procura nietzschiana por um caminho singular. O destino de Nietzsche, embora não tenhamos condições de acompanhá-lo em todas as suas dimensões em virtude da delimitação desta tese, pode, então, ser comparado ao do artista trágico, que diz sim a qualquer aparência, por mais terrível que seja, pois, no final das contas, brota-lhe a consciência de que aparência e verdade se igualam, por isso, seu desprezo lançado ao mundo verdadeiro. O destino anunciado pode ser compreendido, por sua vez, em uma dupla face: por um lado, como negação de um caminho melhor, apaziguado, liso, como alternativa à décadence moderna e, por outro lado, como necessidade de um novo contexto de valores para uma filosofia afirmativa em que se prospecta um sentimento trágico da existência.

Sendo assim, pelo caminho que cumprimos pela crítica nietzschiana da consciência moderna, pelos aspectos acima referenciados, mesmo sem nos debruçarmos na constituição e construção da Transvaloração de todos os valores, podemos dizer que há um sentimento trágico que liga a crítica da consciência ao projeto de uma filosofia transvalorativa. Não é sem incômodo que no capítulo “Por que sou um destino”, de

Ecce Homo, Nietzsche fale de sua missão na filosofia:

Quem, antes de mim, adentrou as cavernas de onde sobe o venenoso bafo desta espécie de ideal – a difamação do mundo? Quem ousou sequer pressentir que são cavernas? Quem, entre os filósofos, foi antes de mim psicólogo, e não o seu oposto, ‘superior embusteiro’, idealista’? Antes de mim não havia absolutamente psicologia. – Ser nisto o Primeiro pode ser uma maldição, é em todo o caso um destino: por ser também o primeiro a desprezar... O nojo do homem é o meu perigo...413

Ao que tudo indica, a resistência à “maldição” de ser o primeiro psicólogo a ter adentrado na caverna da consciência moderna surge a Nietzsche como a aquisição de um sentimento trágico. Esta auto-percepção da tragicidade fica mais evidente conforme Nietzsche passa a ter um prazer em destruir e se vincular ao projeto transvalorativo, daí

dizer-se como “o último discípulo do filósofo Dioniso”414. Nas linhas gerais da

      

412 NIETZSCHE. Ecce Homo, “Por que sou um destino”, §1. 413

  Ibidem, §6. 

182 

Transvaloração expostas a partir do Crepúsculo, Nietzsche propõe um retorno à

consciência artística da Grécia antiga, à dimensão dionisíaca tão presente na cultura helênica. Desse modo, perguntamos: o que vem a ser esta busca nietzschiana pela dimensão dionisíaca?

No capítulo X, ainda em seu livro mais malvado, com o objetivo de esclarecer o que deve aos antigos, Nietzsche assevera que o rico e transbordante instinto helênico seria explicável pelo “excesso de força” 415 e que, por conseguinte, o “maravilhoso fenômeno” decorrente dessas forças excessivas seria caracterizado como dionisíaco. Assim é descrita a cultura helênica alinhada a uma visão trágica da existência:

A enorme tensão no interior descarregava-se em terrível e implacável inimizade com o exterior: as cidades dilaceradas umas às outras, para que os cidadãos de cada uma encontrassem paz diante de si mesmos. Era necessário ser forte: o perigo estava próximo – espreitava em toda parte. A magnífica destreza dos corpos, o audacioso realismo e imoralismo peculiar aos helenos, foi uma necessidade, não uma natureza. E com festas e artes eles não queiram outra coisa senão sentir-se lá em cima, mostrar-se lá em cima: são meios de glorificar a si mesmo, às vezes de inspirar temor a si mesmo.416

A partir desta descrição do contexto trágico da Grécia antiga, Nietzsche

aproveita o ensejo para acusar Goethe417 de não ter compreendido os gregos, pois,

segundo ele, faltava a este escritor representativo do pensamento moderno o elemento imprescindível para a realização da arte dionisíaca, a saber: o orgiástico. Na tentativa de esclarecer uma espécie de psicologia do orgiástico, o filósofo destaca que no mundo       

415 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, X, §4. 416 Ibidem, §3.

417 Em relação a Goethe, não existe em Nietzsche uma crítica homogênea. Primeiro, podemos encontrar a consideração de que a escrita de Goethe teria conservado um “grande estilo” que se perdera na modernidade. “Goethe concebeu um home forte, altamente cultivado, hábil em toda a atividade física, que tem as rédeas de si mesmo, que pode ousar se premitir todo o âmbito e a riqueza do que é natural, que é forte o suficiente para tal liberdade; o homem da tolerância, não por fraqueza, mas por natureza (...)”. (NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, IX, 49). No entanto, poucos parágrafos depois, ele diz que Goethe, por seus princípios, não teria compreendido os gregos e era um antidionisíaco por excelência. (NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, X, 4). Nesta contradição de afirmações, a qual delas devemos dar crédito? Lebrun entende que foi a releitura de Goethe que permitiu a Nietzsche “tomar conhecimento mais amplo de Dioniso”, como o filósofo expressa no fragmento póstumo de 1878, nº 27(49): “Eu começava a diferenciar de modo claro a antiguidade e a inteligência goethiana da grande arte; e, somente assim, pude chegar a ter uma visão simples da vida humana real.” Apesar desse reconhecimento, “o que Nietzsche aprende com Goethe é, sobretudo, que é fútil maldizer a razão e desafiar as regras e que de nada serve irritar-se seriamente, quando se trata de vaticinar em nome daquilo que a razão já localizou como delírio. O irracionalismo, em nome de seus próprio exageros, não faz senão ter a função do insensato...” Cf. LEBRUN. Quem era Dioniso?, p.377. Sendo assim, acreditamos que devemos reconhecer as duas afirmações nas perspectivas em que são lançadas: de fato, Goethe trouxe na sua escrita o grande estilo e elementos da dimensão dionisíaca (desmesura, sonhos, fortaleza etc), mas isso não implicou que o texto goethiano fosse engendrado a partir do abandono ao desmedido dionisíaco.

183  helênico o elemento orgiástico se expressaria na “vontade de vida”, ou, noutras palavras, em “dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos ”418. Foi, portanto, em decorrência de sua compreensão da “vontade de vida” como “sentimento transbordante de vida e força” presente na Grécia antiga, em que “a dor age como estimulante”, que Nietzsche julga ter conseguido, diante do fardo da sua crítica da consciência, a chave do sentimento trágico.419

A sabedoria trágica dos gregos encontrada por Nietzsche indica se transformar

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