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A constituição do leitor

No documento 2012Leni de Fatima Bonez Caron (páginas 30-34)

Contemporaneamente e em sentido global, vive-se a era das grandes transformações em todos os setores, entre eles, o da educação. As novas tecnologias criaram novos espaços para processar o conhecimento gerado pelas inovações advindas desse processo. É inegável que a disseminação de novas informações provoca profundas modificações nas relações do homem com o seu meio. Nessa perspectiva, novas formas de leitura são promovidas e surgem novas discussões a respeito da leitura e sua relação com a escola.

Parte-se do princípio, no entanto, de que a leitura não é um comportamento natural do ser humano como comer, dormir, por exemplo. A aquisição da capacidade de ler, nessa perspectiva, é um processo cultural e que pode ser desenvolvido na criança em formação. Colomer esclarece que “é imprescindível dar aos meninos e meninas a possibilidade de viver, por algum tempo, em um ambiente povoado de livros, no qual a relação entre suas atividades e o uso da linguagem escrita seja constante e variada”.23

Nesse sentido, uma das formas que pode contribuir para transformar a aprendizagem do aluno, seria dar a ele a oportunidade de conviver em um ambiente povoado de livros, tendo em vista que, muitas vezes, os alunos não leem mais, porque não são muitas as oportunidades oferecidas pela escola.

Ressalta-se que esse contato sistemático com os materiais de leitura é determinante para a formação do leitor. No entanto, para que o aluno obtenha um melhor aproveitamento dessas leituras, seria importante a presença de um mediador entusiasmado para orientar as leituras a serem feitas. Nesse processo, entende-se que é através da articulação do mediador que o aluno pode desenvolver o gosto pela leitura, mesmo que a criança não traga o hábito leitor do ambiente familiar e, ainda que ela não tenha frequentado a educação infantil, uma vez que a leitura está presente no cotidiano das crianças desde muito cedo, mesmo antes de elas frequentarem a escola. Em todos os momentos e espaços, a criança já começa a fazer associações entre os sinais gráficos e o significado que eles contêm, mesmo sem identificar o código escrito. Se o pequeno, antes de ler o texto, ler as

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mensagens do ambiente que o cerca, estará apto a ler e compreender o texto escrito através da leitura de mundo. Talvez, nesse aspecto, estaria faltando o estímulo apropriado, para que a criança vá se familiarizando com os textos presentes em sua realidade e, num processo de interação com o material disponível, quer seja na condição de leitor, de expectador ou por meio de ações, seja capaz de abstrair algo que tenha significado para si e para o seu entorno.

O conceito de leitura, nesse caso, pode ser entendido, segundo sugere

Freire24, como a leitura de mundo. Nesse entendimento, o texto é todo e qualquer

bem cultural, verbal ou não, em que está subentendido um código social para dele se abstrair os sentidos, através de alguma substância física. Disso, entende-se que esporte, vestuário, cinema, televisão, rádio, artesanato, cozinha, jornal, fala, literatura, obras de arte e tantas outras manifestações culturais constituem-se em unidades de sentido, podendo ser consideradas textos. Transitar por qualquer dessas modalidades, abstrair os sentidos e reagir a eles de acordo com as experiências individuais, isso é “ler”! Nessa perspectiva, a criança estará exercendo uma atividade leitora produtiva que vai, em seguida, se estender a distintos materiais de leitura apresentados em diferentes suportes.

É importante esse contato da criança com as manifestações da cultura para a evolução de sua competência leitora. Paralelo a esse contato, a literatura deveria estar presente na vida do aluno, em especial, nos anos iniciais de formação da criança. Para essa fase, Rösing sugere que “a linguagem literária impõe-se diante

da linguagem usada na comunicação cotidiana” 25

. O texto literário pode cativar os pequenos tendo em vista que são seres bastante imaginativos. Seria necessário, então, oferecer livros e outros materiais que os ajudem a brincar com essa capacidade de imaginar. A literatura torna-se um universo rico em possibilidades para que a criança alimente seu imaginário e, consequentemente, pode aproximá-la prazerosamente dos livros.

De outro modo, depende de como essa linguagem é transmitida à criança, “pois somente o prazer do texto literário, além de proporcionar ao leitor a capacidade

24

FREIRE, Pedagogia da esperança, 1992.

25

de sonhar e imaginar, o emancipa” 26

. É justamente dessa emancipação que pode nascer um leitor reinventado e integrado ao seu contexto.

O texto literário pode, ainda, proporcionar às crianças o autoconhecimento e, quanto mais oferecer literatura a elas, maior será a sua capacidade para estabelecer relações entre as leituras feitas com determinado contexto. Com esse entendimento, o educador pode suscitar na criança o gosto pelos contos, pelas histórias, por exemplo, fazendo-a compreender situações semelhantes pelas quais tenha passado, ou venha encontrar pela frente em sua existência, através da caracterização dos personagens, dos conflitos presentes nas narrativas. Martha e Esteves referendam esse posicionamento ao afirmar que

[...] Os temas provocadores, compreendidos como enfrentamentos que configuram, no plano ficcional, etapas da evolução vividas pelo ser humano, ganharam força e podem ser aliados importantes, para que os pequenos leitores reconheçam angústias, faces diversas dos medos que enfrentam cotidianamente: mortes, separações, violência, crises de identidade, escolhas, relacionamentos, perdas, entre outros.27

Esses são, muitas vezes, enfrentamentos presentes hoje no cotidiano do aluno. Torna-se mais fácil para ele entender essas experiências, ilustrando-as através de exemplos dos textos literários. Nesse contexto, o que importa não são os fatos sobre os quais o autor escreve, mas as formas como cada um sente e pensa esse fato, o que aproxima uns dos outros. Segundo as mesmas autoras, os textos literários apresentados, além de revelarem à criança experiências de autoconhecimento, podem contribuir para a formação do sentimento de identidade por meio de experiências trazidas pelos personagens das histórias. O rico imaginário da criança em contato com o mundo da fantasia, como bichos que falam, bruxas, duendes e outros elementos mágicos presentes na literatura, podem transportar as crianças para um mundo onde tudo pode. São experiências que podem se tornar familiares a elas, mesmo que “pareçam” estar distantes de seu ambiente real.

A literatura, nessa perspectiva, torna-se uma aliada do professor no sentido de proporcionar à criança o desenvolvimento da autoconfiança e, ao amenizar problemas existenciais, consequentemente, ela pode tornar-se um aluno mais

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BURLAMAQUE; MARTINS; ARAÚJO, op. cit., p. 80.

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MARTHA, A. A. P.; ESTEVES, N. C. Literatura infantil e autoconhecimento: perdas e ganhos. In: RÖSING; BURLAMAQUE,op. cit., p. 141.

autônomo, dinâmico e participativo. Nesse contexto, pode-se trabalhar com a poesia, um gênero literário muito apreciado nessa fase de vida da criança e que está presente nas brincadeiras de rodas, na natureza, no ritmo dos trava-línguas, das parlendas, no folclore, nos provérbios. Depende da sensibilidade de cada um, da maneira como posiciona o olhar. A poesia tem a rima, a sonoridade, o lúdico que tanto agrada à criança e pode despertar nela o gosto artístico, a sensibilidade para a leitura de imagens poéticas. Gradativamente, com a oferta sistemática dos materiais de leitura, o leitor em formação pode evoluir para leituras mais complexas. Nesse processo pode ser enfocada a ambiguidade da linguagem literária, as múltiplas significações do texto poético.

Dessa forma, a poesia contida nesses tipos de textos se constituiu numa base sólida para o enfrentamento das dificuldades resultantes do desestímulo e desinteresse que os alunos podem apresentar por outros tipos de textos. Ler, trocar ideias, construir novas abordagens através de materiais de leitura atrativos e atuais disponíveis em diversos suportes são ações que devem estar presentes no trabalho com literatura em sala de aula de anos iniciais. Para aperfeiçoar as propostas de trabalho com a leitura e atrair o leitor em formação, seria interessante que o professor reavaliasse suas práticas em relação ao trabalho com o texto literário. Por exemplo, quando um educador tem a finalidade de ensinar através da poesia, esta se esvazia do simbólico, um dos seus principais valores. Lajolo diz que “a literatura na escola, [...] consumida com a mesma passividade com que se digerem figuras de geometria e regras gramaticais, habitua o aluno a uma atitude sempre passiva perante o texto” 28

. Pode estar ocorrendo essa problemática, hoje, em relação ao trabalho do professor com a literatura.

Configuram-se, nesse contexto, a atuação fundamental cognitiva, social e política do professor enquanto mediador entre a literatura/aluno/leitor. O leitor de anos iniciais, hoje, ainda se apresenta frágil, quando se trata da leitura. No entanto, a presença do mediador, com uma formação sólida em leitura e conhecedor de propostas que realmente surtam efeito no intuito de atrair o gosto do aluno, para que leia, utilizando-se de um trabalho consistente com objetivos claros e com a oferta gradativa de textos em sua complexidade e qualidade, com o estímulo adequado, pode emancipar esse leitor em formação, tornando-o capaz de interagir de forma

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menos ingênua e passiva em seu contexto escolar ou social.

Dessa forma, para proporcionar essa formação “ideal” à criança, é indispensável a atuação consciente e planejada do mediador em todo o processo. Analisa-se, nesse viés, a caminhada do professor, enquanto mediador de leitura no contexto escolar, sua formação precária, problemas estruturais e funcionais que o educador enfrenta em sua função de mediar a leitura e formar o leitor de anos iniciais do Ensino Fundamental.

No documento 2012Leni de Fatima Bonez Caron (páginas 30-34)