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3. IDENTIDADE E DISCURSO

3.2 A construção discursiva da identidade

Estudiosos da filosofia, da linguística, e da sociologia (LACLAU; MOUFE, 1985; MOITA LOPES, 2003; SILVA, 2011; HALL, 2011) reconhecem o discurso como um fator central na construção de identidades. Todos eles compartilham da ideia de que os relatos que mobilizamos para descrever certas características identitárias constituem o que supostamente estão descrevendo.

Para a Análise de Conversação, corrente da microssociologia inspirada na etnometodologia, a identidade não é algo que uma pessoa ou um grupo tem e da qual podemos derivar sentimentos, motivações, comportamentos, etc., mas algo que as pessoas constroem cotidianamente e continuamente por meio de descrições e narrativas (ANTAKI; WIDDICOMBE, 2008).

Também para a psicologia social discursiva (POTTER; WETHERELL, 1987; WETHERELL; POTTER, 1992), perspectiva teórico-metodológica que orienta a análise do material discursivo analisado para este trabalho, as identidades são produtos de práticas discursivas. A psicologia social discursiva, como mostraremos de maneira mais aprofundada no capítulo metodológico, ao descrevermos o método de análise de discurso desenvolvido por essa corrente teórico-metodológica, enfatiza a ação do discurso na construção dos objetos sociais e o modo como esse processo de construção discursiva é marcado por contradições e conflitos. Essa mesma compreensão orienta os estudos desses autores sobre a construção discursiva desses objetos sociais que ocupam um lugar central na nossa vida social, as identidades.

Nesse processo de construção discursiva das identidades, a reiteração de determinados conteúdos discursivos é uma das estratégias mais comuns. Um exemplo pode ser observado no trecho abaixo produzido por uma ONG que trabalha em prol da adoção ao falar sobre os procedimentos necessários para os candidatos a pais adotivos.

“Saiba como adotar uma criança abandonada. Os casos de abandono de bebês que ocorreram nos últimos dias em Belo Horizonte remetem a um assunto: a adoção de crianças. Na manhã do último sábado, um bebê recém-nascido foi encontrado enrolado em um saco plástico, boiando na lagoa da Pampulha, após ser

abandonado pela mãe, Simone da Silva, 29 anos. Outro caso aconteceu ontem: uma menina de menos de uma semana de vida foi abandonada na porta de uma casa (...).12” (negrito do autor e

sublinhado nosso).

Como se pode observar, os termos “abandono”, “abandonado”, “abandonada” são reiteradamente usados nesse pequeno fragmento de texto. Lendo relatos desse tipo, muitos leitores certamente são levados a acreditar que o abandono (ou o sentimento de abandono) é um atributo próprio desse grupo, um atributo que faz parte da essência das crianças que foram adotadas.

Com o objetivo de questionar essa reiteração que sustenta identidades hegemônicas é que a filósofa norte-americana Judith Butler (1999 apud SILVA, 2011) justifica a necessidade de “quebra” desta posição para que possam emergir novas e renovadas identidades que não representem simplesmente a reprodução das relações de poder existentes.

Pensando a construção da identidade numa perspectiva discursiva, o filósofo e psicólogo Rom Harré usa o conceito de posicionamento para referir-se ao modo como as pessoas localizam a si mesmas e os outros nas interações discursivas do cotidiano (DAVIES; HARRÉ, 1990; HARRÉ; LANGENHOVE, 1991; LANGENHOVE; HARRÉ, 1994).

O posicionamento é uma estratégia discursiva, é um processo no qual nos posicionamos (posicionamento reflexivo) e posicionamos os outros (posicionamento interativo), cabendo a nós aceitarmos ou resistirmos aos posicionamentos que nos oferecem (BURR, 2003; LANGENHOVE; HARRÉ, 1994) num processo contínuo de negociação (DAVIES; HARRÉ, 1990). Esta dinâmica permite que as pessoas construam seu “senso de self” ao ir posicionando-se nas práticas discursivas das quais participam (RASERA, GUANAES; JAPUR, 2004).

O posicionamento discursivo é um ato (ou conjunto de atos) que ocorre tanto nas interações entre indivíduos quanto nas relações entre grandes categorias sociais. Durante séculos nos Estados Unidos, só para citar um exemplo, os negros

12 Informações retiradas do site do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (GAASP). http://www.gaasp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=168%3Asaiba-como- adotar-uma-crianca-abandonada&catid=44%3Anoticias-anteriores&Itemid=80>. Acesso em: 24 de junho de 2015.

foram posicionados pelos brancos como um grupo de pessoas desprovidas de qualidades como beleza, inteligência e coragem. Os negros nunca aceitaram de maneira passiva esses conteúdos identitários que lhes eram atribuídos. Um ato coletivo marcante nessa história ocorre nos 60 do século passado quando os negros recusam abertamente essa posição identitária. A frase Black is Beautiful é a expressão dessa recusa coletiva.

As pessoas adotadas são também insistentemente associadas a atributos identitários que os estigmatizam. Os fragmentos de texto a seguir ilustram bem esse processo.

“Mensagem para Angelina Jolie e Brad Pitt: a próxima década pode revelar-se uma tarefa difícil. Como pais adotivos mais famosos do mundo, os atores podem ficar surpresos em saber que um novo estudo mostra que ser um adolescente adotado dobra as chances de ser diagnosticado com um

comportamento ou problema emocional. Além disso, os

resultados abrem a questão do que está por trás daquele risco aumentado - pais adotivos ou genética?13” (Kathleen Kingsbury, Revista Time, 05.05.2008, grifo nosso).

“Como lidar com uma criança adotada que é problemática. A criança adotada, principalmente as mais velhas, será, sim, uma criança problemática. Mas a intensidade dos problemas dependerá do tempo e do amor dedicado ao relacionamento.14”. (Beth Proença Bonilha, [ ]).

Nesses relatos, crianças e adolescentes, filhos adotivos, são retratados como pessoas predispostas ao desenvolvimento de processos psicopatológicos. Os termos utilizados, “problema emocional, “criança problemática”, mostram que se trata da reprodução de um discurso muito semelhante ao discurso psicológico visto no capítulo anterior, quando abordamos o modo como estudos de várias áreas da

13 Tradução livre de: “Memo to Angelina Jolie and Brad Pitt: the next decade may prove to be a difficult one. As the world's most famous adoptive parents, the actors may be alarmed to hear that a new study shows being adopted approximately doubles the odds of an adolescent being diagnosed with a behavior or emotional problem. Furthermore, the findings open up the question of what's behind that increased risk — adoptive parents or genetics?”. <http://content.time.com/time/health/article/0,8599,1737667,00.html>. Acesso em: 29 de junho de 2015.

14 Trecho retirado do site Família.com.br em: <http://familia.com.br/como-lidar-com-uma-crianca- adotada-que-e-problematica>. Acesso em: 29 de junho de 2015.

psicologia construíram os filhos adotivos.

Como veremos posteriormente neste trabalho, quando nos debruçarmos sobre os relatos de militantes da causa da adoção, posições identitárias como as construídas acima são, assim como ocorreu com o movimento negro norte- americano, frequentemente contestadas.