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A construção do sistema de direitos indígenas no Brasil

O debate filosófico sobre o respeito à alteridade e às diferenças culturais, sociais e religiosas esteve presente no período de colonização das Américas desde os primeiros choques culturais com os povos nativos. Diante do objetivo primordial de dominação dos territórios pelo custo da dizimação de milhões de pessoas e imposição de uma cultura e religiosidade hegemônica40,

Bartolomé de las Casas criou uma corrente de pensamento chamada indigenista ou criticista da qual participaram muitos pensadores durante os séculos XVI e XVII (Souza Filho, 2010:46). Las Casas obtinha um posicionamento jurídico-teológico de que todos os seres foram criados por Deus e mesmo os “infiéis” (aqueles que não compartilhavam da crença cristã como os povos nativos) deveriam ser respeitados por suas crenças e organizações sociais (Souza Filho, 2010). Desta forma, cabia aos católicos levar a revelação cristã sem interferir nas escolhas e livre-arbítrio dos povos originários. Bartolomé de Las Casas instituiu o princípio da defesa da justiça dos povos indígenas introduzindo o respeito à diferença como fundamental para a interação entre povos (Souza Filho, 2010: 46). Como consequência, o Direito vigente à época reconheceu a argumentação de Las Casas . A partir disto, a legislação espanhola e portuguesa reconhecia em seus sistemas formais o direito à diferença e ao território dos povos originários, apesar de a realidade prática pouco corresponder aos direitos formais (Souza Filho, 2010:49).

O primeiro reconhecimento legal do Estado português perante os direitos territoriais e autonomia dos índios ocorre a partir do Alvará de 1º de abril de 1680. “Será na verdade o Alvará de1º de abril de 1680 o primeiro reconhecimento legal e explícito, por parte do Estado português, dos direitos territoriais e de autonomia dos povos indígenas brasileiros” (Barbosa, 2001:184). No entanto, a prática estatal foi marcada pela negação das identidades indígenas como forma de não reconhecimento de seus direitos, e pelo integracionismo. De acordo com Souza Filho (2010), o nascimento do Estado brasileiro imperial, a partir da Constituição de 1824, instituiu legislações integracionistas para os povos originários. A servidão dos indígenas foi exonerada pela lei de 27/10/1831 e em 1845 foi regulamentada a lei que estabelecia a relação entre os índios e o Estado através do Decreto 426. Em 1850 foram estabelecidos novos conceitos jurídicos como terras devolutas e registro de reservas indígenas, porém a ideia integracionista ainda não havia sido abandonada. Para que fosse estabelecida uma relação formal entre povos indígenas e o Estado foi instituído o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910 com o objetivo de oferecer um serviço público federal aos mesmos, ainda que com a finalidade de transformá-los em cidadãos e exterminar a categoria “povos indígenas” (Souza Filho, 1998).

A partir de 1950, o SPI iniciou um período de decadência administrativa devido à corrupção, uso indevido de terras indígenas e fraudes tornando-se um veículo de ação contrária aos povos indígenas e sendo extinto, portanto, em 1967. Neste mesmo ano foi criada a Fundação Nacional do Índio, vinculada ao Ministério da Justiça, pela lei 5.731/1967, bem como o Estatuto do Índio através da Lei 6.001 que atualmente encontra-se em fase de reelaboração. A administração da

FUNAI, como todo o Brasil desde a década de 1960, esteve sob direção dos militares e oscilou entre posicionamentos integracionistas e protecionistas. Com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988, foram consagrados os direitos vigentes de reconhecimento das organizações, usos, costumes, línguas e crenças, considerando também o reconhecimento de terras um direito originário. A conceituação da terra foi estabelecida como não somente aquela necessária à habitação, mas também para a produção, preservação ambiental e reprodução física e cultural. De acordo com o art. 231 da Constituição Federativa do Brasil e o art.2º, inciso IX da Lei nº 6001 de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), respectivamente:

“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições , e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Brasil, art.231, 1988).

“garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes” (Brasil, art.2º, inciso IX, 1972).

A responsabilidade do reconhecimento destes direitos foi designada ao poder executivo pela Constituição. Atualmente a aplicabilidade administrativa destes dois artigos é regulamentada pelo Decreto nº 1.775 de 8 de janeiro de 1996. A demarcação de terras indígenas, procedimento administrativo complexo, é realizada sob responsabilidade da FUNAI e cabe ao Ministério da Justiça reconhecer os limites da demarcação física, aprovar ou desaprovar a demarcação de forma motivada, com base na identificação e delimitação feita por técnicos especializados em conjunto com a comunidade. O Decreto estabelece os diversos passos do procedimento administrativo para a demarcação das terras indígenas e inclui a obrigatoriedade de elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas com base nas regras definidas pela Portaria MJ nº 14 de 9 de janeiro de 1996. O procedimento de demarcação de terras consta das seguintes fases: Identificação e Delimitação; Aprovação e Publicação do relatório circunstanciado; Declaração; Homologação e Regularização.

No período de identificação e delimitação é realizado um estudo antropológico de identificação e designado um Grupo Técnico (GT) sob coordenação de um antropólogo para realizar “estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessário à delimitação” (Art. 2º, § 1º, Decreto nº 1.775/96). A participação do grupo indígena em todas as etapas do trabalho do GT é obrigatória e ao final do processo é apresentado um relatório à FUNAI. Durante a etapa de aprovação e publicação é aberto

um período de 90 dias, após a publicação, para municípios, estados e particulares manifestarem oposição à demarcação. Na etapa de declaração, caso a identificação seja aprovada, são declarados os limites e a determinação da demarcação. Neste procedimento, o INCRA retira os ocupantes não indígenas, e os indeniza por suas benfeitorias, se houver. Após estas etapas segue a homologação e a regularização mediante registro em cartório de imóveis.

O prazo de demarcação de terras foi constitucionalmente estabelecido para ser concluído até 1993. No Art. 67 da Constituição Federal fica estabelecido: “A União concluirá a demarcação de terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Como a promulgação da Constituição ocorreu em 1988, compreende-se que o prazo para a demarcação seria 1993. Estas previsões geraram alguns conflitos quando o início do processo de demarcação foi definido após esta data. Segundo relatos dos Guarani, alguns entendem que é um argumento utilizado pelo governo para atribuir maior legitimidade ao levantamento das demarcações feito naquela época e criar empecilhos para os novos processos. Esta foi uma questão que surgiu durante o Evento “Direitos Territoriais Indígenas em Debate no Encontro da Comissão Nacional de Terras Guarani YVY RUPA” realizado em novembro de 2006. Segundo a exposição de uma liderança Guarani, o governo utiliza este prazo de demarcação como argumento de que todas as terras já foram demarcadas. Esta exposição pode ser verificada nas suas próprias palavras:

“(...) O prazo era até 1993. Só que se falarmos isso para o governo, o governo vai responder na hora que já demarcou tudo. Por que falam isso? Porque eles consideram o levantamento da FUNAI que foi feito nessa época. Nesse tempo, a FUNAI fez o levantamento mostrando que já foram todas demarcadas e que já terminou o trabalho. Só que o que temos hoje para demarcar, entrou depois de 1993. Depois disso, a FUNAI fez outras propostas e os processos foram aparecendo. Por exemplo, na aldeia onde moro, no Morro dos Cavalos, no conhecimento guarani, desde 1920, já estávamos lá e vivíamos lá, só que os não indígenas e a FUNAI dizem que o processo de demarcação dessa terra só começou em 1998 ou 1999. Então, na época, quando falavam do prazo de cinco anos, nossa aldeia nem entrou no processo. É por isso que os não indígenas vão nos pegando. Tudo isso é um argumento que os não indígenas usam. Só que isso não é verdade”. (Leonardo, coordenador da CGY, Aldeia Morro dos Cavalos, SC, 2006).

O processo de demarcação de terras legitima o reconhecimento das terras indígenas, mas pode correr o risco de impor o poder do Estado ao poder de autorreconhecimento de terras pelos indígenas. No entanto, o artigo 231 da Constituição de 1988 reconhece os direitos originários das terras tradicionalmente ocupadas, o que indica que a demarcação da terra é um procedimento administrativo que gera uma documentação, mas independentemente do reconhecimento da FUNAI, considera-se Terra Indígena uma área de ocupação de natureza tradicional, autodenominada pela própria comunidade indígena. Portanto, mesmo que não exista demarcação,

uma terra tradicionalmente ocupada por indígenas é considerada Terra Indígena, mas seu reconhecimento formal obedece a critérios constitucionais.

Embora o reconhecimento legal dos direitos originários dos indígenas seja de suma importância para o respeito destes povos, é importante ressaltar que o Estado impõe o seu próprio Direito e não reconhece o conjunto de normas sociais e organização dos indígenas como Direito, além de não considerar as diferenças sociais e culturais entre os povos indígenas. Este fato causa uma relação assimétrica de poder, onde cabe ao Estado reconhecer o Direito Indígena. Neste sentido, a condição de sujeito dos indígenas é negada a partir do próprio sistema jurisdicional estatal. Esta negação à diversidade revela o posicionamento integracionista que marcou toda a história do direito e da política indigenista no Brasil (Ladeira, 2008). Embora o princípio integracionista tenha sido abolido da Constituição Federal e do Estatuto do Índio, este marco aparece de outras formas na própria legislação atual e na práxis política. De todo o modo, estas transformações na legislação estiveram acompanhadas de mudanças na interrelação entre sociedades indígenas, Estado e campo internacional. Nas últimas décadas a questão política e dos direitos dos povos indígenas consolidaram uma dinâmica particular combinada pela confluência entre (1) desenvolvimento do direito internacional em matéria indígena, (2) abertura democrática e reformulação constitucional dos países da América Latina (novo constitucionalismo); e (3) o fortalecimento da mobilização indígena (Urquidi, Teixeira et.al., 2008:201). A combinação destes fatores implicou em uma nova dinâmica para o estabelecimento de direitos e políticas públicas, impulsionado com grande força pelas organizações internacionais. Tendo em vista essa dinâmica, será tratado a seguir como o movimento indígena e suas articulações interagiram com o campo internacional como uma estratégia de impulsionar os Estados nacionais a garantirem seus direitos.