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4. O DIREITO E A CIDADE

4.3. A construção social do direito na cidade

Se não se pretende abrir mão das possibilidades que o direito encerra, enquanto elemento capaz de promover transformações na estrutura de poder, é preciso reconhecer, no mesmo plano, que tais transformações não vão ocorrer enquanto o legado do positivismo jurídico se mostrar forte na relação entre o Estado e a sociedade.

A soberania popular, que tem na representação a forma medular de acesso à produção do direito - e do território -, precisa dar azo a novos caminhos que conduzam as pessoas ao status efetivo de agentes construtores do seu próprio espaço, isto é, reconhecer e admitir outras formas de participação no processo jurídico-político, notadamente aquelas que propõem a superação da concepção individualista de soberania estatal - monismo - nos processos de produção e reprodução do espaço urbano.

A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e de forças políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma. Não pode deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária, a única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela. Apenas esta classe, enquanto classe, pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída

216 LEFEBVRE, Henri. The production of space. Trad. Donald Nicholson-Smith. Cambridge: Blackwell, 1991. Título original: La production de l’espace, 1974. p. 81.

112 pela estratégia de segregação e reencontrada na forma ameaçadora dos “centros de decisão”217. (LEFÈBVRE, 2004 [1970], p.113)

Muito embora se possa sustentar acerca da crescente proliferação de locais de representação institucionalizados nas últimas décadas, é necessário pontuar que esses espaços também constituem campos de força, onde os objetivos do tomador de decisões, ou do grupo ao qual pertence, podem influenciar diretamente o processo decisório. Nesse campo, a justa distribuição do poder entre os agentes envolvidos é, também, determinante para que a participação não se torne um mero instrumento legitimador das decisões dos órgãos estatais218.

Não são raros os casos de desvirtuamento dos instrumentos jurídicos que possibilitam o acesso da sociedade aos processos decisórios na cidade. Esses instrumentos, travestidos de boas intenções, podem ocultar decisões pré- firmadas entre os agentes sociais hegemônicos, ou seja, constituírem mera formalidade. Para além da descrença popular em relação a esses mecanismos, o grande risco social incutido nessa prática reside na manutenção ou no fortalecimento de uma estratégia vinculada à uma posição de poder, ora “chancelada pelo povo”.

Na relação entre o Estado e a sociedade, outra questão que se eleva em importância é o grau de participação do povo na construção da pró pria pauta política da cidade. Grande parte dos instrumentos de participação limitam o acesso do povo ao âmbito dos processos decisórios de políticas pré -formatadas. Ocorre que se alguma medida é posta em decisão, ela deve figurar, previamente, em uma pauta, isto é, constituir um projeto político que requer a validação popular.

Nesse contexto, a grande questão que se impõe é em que medida tais mecanismos propiciam a participação popular na construção dessa pauta, vale dizer, favorecem o questionamento da sociedade acerca da conveniência, da

217 LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. Título original: La revolution urbaine, 1970. p. 113.

218 KERBAUY, Maria Teresa M. As câmaras municipais brasileiras: perfil de carreira e

percepção sobre o processo decisório local. In: MENEGUELLO, Rachel (Org). O Legislativo

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necessidade ou do interesse público do projeto político levado à esfera de decisão popular.

Suponha-se, por exemplo, que um determinado município tenha a intenção de desapropriar uma dada área com vista à ampliação de uma estrada. Nesse caso, as discussões em torno da proposta governamental se restringiriam à legalidade do procedimento e ao valor da indenização a ser paga. Não seria possível questionar a premência do ato, tampouco sustentar que os recursos deveriam ser aplicados em outros projetos, como a construção de uma nova creche, um novo abrigo para populações de rua, um parque público, etc. Essa questão está diretamente relacionada ao caráter hierárquico e desigual da esfera pública:

[...] as pautas políticas são construídas em uma esfera pública plena de desigualdade, pois o campo político reproduz a desigualdade que está na vida social, como parte dessa vida social. [...] a hierarquia entre os sujeitos que compõem esse campo é que permite a existência de sujeitos que podem pautar a pauta e sujeitos que não conseguem colocar suas questões ou suas perspectivas nessa pauta219.

Nesse contexto, o direito não é um elemento acessório. Ele contribui de maneira determinante, enquanto ferramenta de manutenção ou transformação do status quo nas relações de poder que se estabelecem entre o Estado e a sociedade. O princípio da função socioambiental da propriedade, prescrita na Constituição brasileira, ilustra bem esse processo: em tese, ela restringe, ou melhor, desconstitui o direito de propriedade daquele que não a observa. Mas não é a própria norma constitucional que descreve o seu cont eúdo. O sentido da função socioambiental da propriedade é dado pela legislação urbanística, isto é, cumprir esta função “significa, quanto à propriedade urbana, a satisfação das regras de ordenação da cidade constantes do Plano Diretor220”.

É através desse instrumento jurídico-urbanístico que o princípio constitucional assumirá sua forma. E essa forma, evidentemente, não é única, ela é - ou deveria ser - tão diversa quanto as diferentes realidades existentes no tecido social. Ao delegar as definições de conteúdo e forma da função

219 ABONG. O papel da sociedade civil nas novas pautas política s. São Paulo: Editora Petrópolis, 2004. p. 75.

220 GEWEHR, Lilian; ISERHARD, Antônio M. F. A função socioambiental da propriedade

privada urbana ante as novas diretrizes do estatuto da cidade . In: Revista Direito Ambiental

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socioambiental da propriedade para a cidade, a Constituição destaca a importância do processo político no nível local, que passa a constituir mais um espaço de transformação, ainda que potencial, em direção à realização do direito à cidade.

Sob a ótica do direito à cidade, a qualidade do processo político local dependerá do grau de participação, capaz de ensejar transformações na ordem jurídica, que se traduzam na expressão territorial de novos padrões de sociabilização no espaço citadino. Para tanto, é imprescindível que novas formas sociais de produção do direito emerjam, esvaziando o argumento do monopólio estatal da lei e das ideologias nela materializadas, que apreendem o direito como produto acabado, sem matrizes históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais, como fim em si mesmo. A realização desses novos padrões abrem caminho para a construção de normatividades e, mesmo, institucionalidades alternativas, e comporta propostas já bastante ventiladas pela doutrina, como o pluralismo jurídico.