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A Construção social do mercado agrícola no Brasil

A satisfação das necessidades elementares de vida como motor da configuração dos modos de produção coloca a produção de alimentos nas instâncias primeiras de trocas de bens e posteriormente da organização do mercado agroalimentar.

O conceito de construção social de mercados, bastante utilizado desde os anos 1990, se insere na abordagem da sociologia econômica, especialmente na corrente funcionalista que, os compreende a partir do processo de interação social e inscrito nas relações estruturais sociais. Nos mercados agroalimentares é possível observar a coexistência do mercado convencional transnacional, que distancia produtores e consumidores, com outros mercados,

chamados de aninhados (PLOEG, 2016), diferenciados, alternativos locais, circuitos curtos, institucional, entre outros.

Os mercados aninhados são formados por vários componentes distintos (infraestrutura, multifuncionalidade e diferencial) que interagem e operam conjuntamente em articulação com outros mercados aninhados que distribuem e valorizam a produção ou serviços (PLOEG, 2016). O termo aninhado tem relação com a articulação ou inserção numa rede que oferece condições para que este mercado participe do “mercado agrícola” mundialmente estabelecido com seus parâmetros e regulamentos. Esses mercados se constituem a partir das “lacunas estruturais” dos mercados convencionais e se organizam e desenvolvem diferenciais (cadeias de trocas multiniveladas) como a “infraestrutura sociomaterial”, sendo que este diferencial não é a propriedade privada, mas um recurso comum (PLOEG, 2016. p. 24). Segundo Jan van der Ploeg esses mercados são “complexos e interconectados, cada vez mais, vêm se constituindo como importantes arenas de lutas sociopolíticas” (PLOEG, 2016, p. 25).

Sérgio Schneider (2016) apresenta, uma tipologia sobre os mercados em que a agricultura familiar está inserida: mercados de proximidade (venda direta, entrega direta, beira de estrada, feira local, grupos de consumo); mercados locais e territoriais (feiras regional e nacional, redes de venda, eventos, lojas especializadas, restaurantes, associação de vendas, sacolão); mercados convencionais (atravessadores, cooperativa, agroindústria, empresa privada, internet, supermercado) e mercados públicos e institucionais (alimentação escolar, fair trade, organismos internacionais, ONGs, entidade assistencial, estoques do governo). Este autor chama atenção para a forte polarização, que ocupou o debate na sociologia rural, entre inserção em mercados e mudança no modo de vida da agricultura familiar e camponesa. Schneider compreende que a inserção em mercados reflete as relações sociais estabelecidas entre o campo e a cidade, trata-se mais de uma leitura localizada no tempo e no espaço, que influencia nas dinâmicas de reprodução da agricultura familiar e camponesa e menos de um fenômeno que represente o fim desta forma de organização social do campo.

Schneider (2016) dialoga com uma perspectiva de que a inserção nos mercados não representa o fim das formas de organização social das populações do campo, mas as modifica não apenas pelas trocas mercantis envolvidas, mas, também pelas novas dinâmicas de interação entre o campo e a cidade. De acordo com esta tipologia, a maior ou menor inserção nos mercados pode ser medida “por um gradiente” que compreende desde uma quase autonomia, nenhuma integração, até a total e completa dependência da agricultura familiar e

camponesa dos mercados (SCHNEIDER, 2016, p. 117). O aporte tipológico de Schneider para os tipos de mercados em que a agricultura familiar e camponesa se insere podem ser lidos de forma ampla como constituídos por relações sociais que orientam os circuitos de comercialização, a partir da interação produção - consumo.

Entretanto, a compreensão da formação do mercado agrícola de alimentos passa pela análise das estruturas sociais e da correlação de forças nos diferentes períodos históricos, como mostram Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva em História Política do Abastecimento (1979). Linhares e Silva mostram que os interesses da classe dominante no Brasil dirigiram a atuação do Estado, desde 1918, para o fomento à produção de alimentos voltada ao mercado externo em detrimento do abastecimento do mercado interno (1979). Os autores evidenciam as disputas internas que marcaram o deslocamento dos conflitos do campo para a cidade, assim como do poder político e econômico, até então hegemonizado pela burguesia agrária e, que passa ser disputado pela elite urbana industrial. Linhares e Silva ao fazerem um apanhado histórico da política do abastecimento no Brasil, recuperam a centralidade das relações sociais, entre as classes sociais, na condução das orientações políticas sobre o mercado.

Mais que isso, Linhares e Silva contextualizam a profunda relação entre a produção de alimentos e a criação das condições de reprodução do sistema capitalista industrial então incipiente. Os autores destacam a transformação na relação entre campo e cidade, sendo exemplo maior disto o controle do preço dos alimentos como mecanismo de manutenção de baixos salários nas cidades, incidindo diretamente sobre os ganhos das populações rurais e da massa trabalhadora urbana. A atuação do Estado no período estudado por Linhares e Silva (1918 a 1974) foi marcada pela manutenção das contradições entre os interesses de classes, notadamente a favor das elites estimulando ao mesmo tempo o mercado exportador e o mercado interno. As iniciativas no campo do mercado de abastecimento interno foram adotadas como forma de contemplar parte da classe dominante nacional do setor industrial e, para conter a organização política da massa trabalhadora em torno do problema da fome, preços dos alimentos e alta da inflação (LINHARES; SILVA, 1979).

O estudo de Linhares e Silva, embora historiográfico, aponta para as relações sociais como constituidoras da organização do mercado de alimentos ao situar o abastecimento em perspectiva histórico-estrutural no Brasil. As relações de poder político e econômico conduziram a política de abastecimento e do mercado de alimentos, destacadamente no período entre a República Velha e a República Nova ou entre as matrizes produtivas agrícola

e industrial. A perspectiva metodológica de Linhares e Silva situada no materialismo histórico evidencia as bases da estrutura social como determinantes para a construção do mercado brasileiro de alimentos em favor dos interesses da classe dominante.

Linhares e Silva assinalam a composição demográfica da população brasileira de acordo com o Censo de 1950 destacando que 94,14% das mulheres, com dez anos ou mais, constituíam força de trabalho ativa e desempenhavam um papel econômico relevante. Esses autores mostram que quando consideradas apenas as atividades extra domésticas como econômicas, o percentual de mulheres economicamente ativas caía para 7,06%, enquanto que 59,0% delas desempenhavam atividades domésticas e/ou escolares. Embora Linhares e Silva não aprofundem a análise das relações sociais de gênero - conceito este que estava em construção na década de 1970 - identificam como “confusos os critérios” de atividades extra domésticas e atividades profissionais, já que estes causavam “equívocos” a respeito da responsabilidade com o sustento das famílias (LINHARES; SILVA, 1979, p. 132). Linhares e Silva apontam “a importância do trabalho feminino em atividades domésticas que, se remuneradas representariam parcela central do produto interno bruto” (LINHARES; SILVA, 1979, p. 133). Embora o trabalho doméstico realizado pelas mulheres não seja o foco desta pesquisa, os dados analisados pelos autores apontam para a divisão sexual do trabalho como estruturante na organização do abastecimento no Brasil, já que o trabalho feminino na produção agrícola de alimentos era invisibilizado e sequer passível de mensuração ao mesmo tempo em que as mulheres constituíam força de trabalho ativa nesta produção e representavam metade da população do país na metade do século XX.

Este quadro sofreu poucas alterações no século XXI já que as dificuldades de inserção das mulheres produtoras rurais nas atividades de comercialização estão relacionadas com as “atribuições de gênero” que as dirigem para a vida doméstica e para o espaço privado (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2011, p. 154). A rígida divisão sexual do trabalho na agricultura familiar e camponesa faz com que as mulheres constituam a maioria entre os membros não remunerados da família, “comprometendo a autonomia pessoal e financeira” delas (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2011, p. 155).

Os estudos e análises dos circuitos de comercialização agrícola, majoritariamente, reproduzem discursos delimitados pelo androcentrismo, construído na ciência e no pensamento econômico, evidenciando apenas a figura masculina como agente da esfera comercial. A presença das mulheres nos circuitos de comercialização agrícola tende a ser

invisibilizada proporcionalmente à escala de inserção comercial e à complexidade das organizações que estão inseridas nelas.

Patricia Allen e Carolyn Sach (2007) apontam que a rede varejista da alimentação norte americana depende do trabalho das mulheres, embora elas estejam ausentes dos espaços de gestão e decisão destas redes. No Brasil, os estudos a respeito da participação das mulheres rurais nos circuitos de comercialização agrícola são, comumente, voltados aos grupos produtivos formados por elas, com inserção local ou relacionados às políticas públicas como em MOTA et al. (2014), SCHIMITZ; MOTA; SOUSA (2016), SALVARO; ESTEVAM; FELIPE (2014). Elas vêm adotando diferentes estratégias de inserção econômica, destacadamente, a organização em grupos produtivos, comercialização via programas institucionais de compras públicas e participação em circuitos e feiras locais (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2011, FARIA, 2011). Estas estratégias constituem articulações empreendidas por elas para incrementar a renda e ampliar a participação na gestão econômica.

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- CONDIÇÕES DE AUTONOMIA CRÍTICA DAS MULHERES

ASSENTADAS DA REFORMA AGRÁRIA

4.1 A agenda das mulheres no MST: a articulação entre as relações sociais de