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A construção social da saúde: modos de vida e determinantes sociais em

2.2 A saúde dos jovens: expressão dos modos de vida

2.2.1 A construção social da saúde: modos de vida e determinantes sociais em

A construção social da saúde origina-se em tempos remotos e tem, como base, a produção europeia, de cunho científico e político sobre a determinação

social do processo saúde-doença. É ampliada com a medicina social, na segunda metade do Século XIX (ANDRADE, 2006). Nunes (2006) aponta que, desde esse período, princípios básicos foram se integrando ao discurso sanitarista, tais como: a saúde como assunto de interesse societário e a obrigação da sociedade de assegurar a saúde de seus membros; as condições sociais e econômicas com impacto considerável sobre a saúde e a doença e a importância de medidas sociais e médicas para a proteção da saúde.

Na América Latina, os estudos no campo da medicina social datam da década de 1970, com forte influência das ciências sociais na compreensão do processo saúde-doença. Essas marcas têm grande repercussão no contexto brasileiro frente aos movimentos ideológicos e politicossociais que culminaram na VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986, na Constituição Federal de 1988 e nas Leis Orgânicas da Saúde de 1990, movimentos no campo da saúde coletiva que visam romper com o monopólio do discurso biologicista sobre saúde e o papel do Estado e levam à criação do Sistema Único de Saúde (SUS) (BREILH, 2006; NUNES, 2006; ANDRADE, 2006; CARVALHO, 2007).

Com o passar dos tempos, o próprio conceito de saúde veio se modificando e se configurando cada vez mais como complexo. Nesse conceito, diversas dimensões, de ordens distintas se configuram: a dimensão ontológica, a dimensão epistemológica e a dimensão prática, o que permite dimensioná-la como objeto, como conceito e como campo de ação. Tem-se, então, que:

A saúde não é primordialmente `individual-subjetiva-contingente`, nem tampouco é primordialmente `coletiva-objetiva-determinada`; ela é, sempre e simultaneamente, o movimento de gênese e reprodução possibilitado pelo concurso de processos individuais e coletivos, que se articulam se determinam mutuamente (BREILH, 2006, p. 45)

Akerman et al. (2006) destacam que o próprio campo da saúde é muito interrogado sobre sua capacidade de produzir saúde e, por sua complexidade, a área da saúde passa a se debater com um cenário de crises pelos componentes éticos, políticos e econômicos. A produção da saúde é realizada fundamentalmente, embora não exclusivamente, fora da prática dos serviços de saúde, ocorrendo nos espaços cotidianos da vida humana. Para esses autores, “a saúde resulta das condições concretas de vida da população que, por sua vez, resultam da ação política dos sujeitos sociais que disputam recursos de ordem financeira, política,

institucional, entre outros”, destacando-se que a saúde e a organização dos serviços de saúde são espaços de disputa, de afirmação ou de negação de direitos e de necessidades.

Luz (2001) aponta uma reflexão fundamental sobre a multiplicidade de sentidos e significados na categoria saúde presentes na sociedade atual em que se tem, de um lado, a saúde resultante do universo simbólico contemporâneo, com representações relativas aos valores dominantes na sociedade como o individualismo, a competição entre as pessoas, o consumismo, o corpo e as estratégias de valorização do corpo, o status, o poder e com uma valorização estética da saúde pela juventude, beleza e força. Por outro lado, estão presentes os dados referentes às condições de vida, emprego, trabalho e qualidade de vida que remetem a outras concepções, ao sentido de ter saúde como o de poder trabalhar e estar empregado, o que sinaliza para a ressignificação da saúde.

Desse modo, o conceito de saúde deve ser entendido como um recurso para a vida, sendo construído pelas pessoas dentro de suas possibilidades, do que fazem em seu dia a dia, pelo cuidado de cada pessoa consigo mesma e com os outros. A concepção de saúde que norteia essa formulação reforça o marco referencial da produção social da saúde, dependente de fatores sociais, políticos, econômicos, culturais e ambientais, o que remete à necessidade de se compreender o processo saúde-doença em seu caráter biológico e social.

Os determinantes do processo saúde-doença estão presentes nas diferentes formas de inserção na vida social que dizem respeito à posição que cada classe social ocupa na realização cotidiana do trabalho e de seu “modo de viver a vida”. Assim se explica a tendência de que um grupo que experimenta as mesmas condições de trabalho e de vida apresente problemas de saúde semelhantes, decorrentes do embate entre os potenciais de fortalecimento e de desgaste presentes em suas condições de trabalho e de vida. Nesse sentido, a intervenção do setor saúde deve focar aspectos da estrutura e da dinâmica social que possam aprimorar os potenciais de fortalecimento, promover a superação dos potenciais de desgaste manifestado pelas diferentes formas de viver a vida e não somente no campo da recuperação do desgaste já instalado (SOARES, 2009; LACHTIM; SOARES, 2009; LAURELL, 1983).

Com esse enfoque, o processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza, em um dado momento; apropriação que se

realiza por meio do processo de trabalho, com base em determinado desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção. Formula- se um novo conhecimento sobre o processo saúde-doença, com uma visão da problemática de saúde a partir de um novo olhar que permite entendê-la como fenômeno coletivo e como fato social (LAURELL, 1983). Desse modo, captar as contradições determinantes da saúde e de sua multidimensionalidade envolve a sociedade em geral, os modos de vida particulares incluindo as condições de vida e o estilo de vida com os processos contraditórios que se expressam nas pessoas em sua subjetividade, como a sensação de bem-estar ou mal-estar e os processos fisiológicos e patológicos.

Contudo, a determinação do trabalho na compreensão do processo saúde- doença se dá pela inserção socioeconômica dos indivíduos e grupos sociais, sendo que a determinação do perfil epidemiológico da população é marcada pela forma como os indivíduos se articulam na estrutura produtiva que remete ao mercado de trabalho, condições e processo de trabalho e pelo modo de vida que contempla duas dimensões: o estilo de vida, como formas culturais e sociais que caracterizam a vida cotidiana dos grupos sociais e indivíduos e a condição de vida tida como condições materiais necessárias à sobrevivência, contemplando aspectos relativos à esfera individual e à esfera política que, para Paim (1997), devem viabilizar as necessidades básicas para a sobrevivência (BARATA, 2006).

Almeida Filho (2000) elabora um modelo sintético de compreensão dos processos da saúde que articula o trabalho, a reprodução social e o modo de vida, chamado de teoria do modo de vida e saúde. O modo de vida remete a uma abordagem social da saúde, tida como seu determinante e importante de ser compreendida atrelada às condições econômicas, sociais, culturais e ambientais gerais resultantes da organização macroestrutural da sociedade e da formulação de políticas públicas Esse autor afirma que:

O conceito de modo de vida é como uma construção basal que não implica meramente nas condutas individuais ante a saúde, incluindo as dimensões sócio-históricas, englobando a dinâmica das classes sociais e das relações de produção, sempre considerando os aspectos simbólicos da vida cotidiana na sociedade (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 171).

Almeida Filho (2004) afirma que as referências à discussão sobre modo de vida e saúde têm sido tímidas e fugazes mas que, pouco a pouco, esse conceito

vem assumindo posição de destaque nas construções da saúde coletiva, com uma sistematização capaz de articular os arcabouços da teoria social marxista e as práticas cotidianas na compreensão dos modos de vida. Almeida Filho (2004, p. 877) reporta a Agnes Heller como referência nessa articulação, ao discutir que:

O modo de vida não é totalmente independente da vontade dos sujeitos, na medida em que o próprio indivíduo (...) dispõe de um certo âmbito de movimento no qual pode escolher sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no interior das possibilidades dadas.

Considerando a diversidade juvenil e de contextos nos quais esses jovens estão inseridos tem-se como resultado uma pluralidade de expressões dos modos de vida. Nesses modos, revelam-se os determinantes da macroestrutura social, reflexos de condições econômicas e sociais, as condições de vida que se manifestam pelo acesso a bens e serviços e o estilo de vida dos jovens inscritos na materialidade de sua vida cotidiana. Nesse sentido, os modos de vida juvenis e as práticas cotidianas dos jovens expressam significados e valores do meio social a que pertencem.

Dahlgren e Whitehead (1991, 2006) propõem um modelo que articula a forma como se organiza a sociedade com seus determinantes macroestruturais e as relações entre modo de vida, condições de vida e estilo de vida, presentes no nível individual, e que explicam a gênese das iniquidades em saúde (FIG. 1):

FIGURA 1- Modelo de Determinantes Sociais em Saúde Fonte: Dahlgren e Whitehead (1991, 2006)

Esse modelo inclui os Determinantes Sociais em Saúde (DSS) em quatro camadas que compreendem os determinantes vinculados aos comportamentos individuais e às condições de vida e trabalho, bem como os relacionados com a macroestrutura econômica, social e cultural. A camada proximal é marcada pelos determinantes individuais, como idade, sexo e fatores genéticos que influenciam as condições de saúde. A camada imediatamente externa é onde aparecem o comportamento e os estilos de vida individuais. Essa camada está situada no limiar entre os fatores individuais e os determinantes sociais, já que os comportamentos, muitas vezes entendidos apenas como de responsabilidade individual, dependentes de opções feitas pelo livre arbítrio das pessoas, na realidade, podem também ser considerados parte dos determinantes, já que essas opções estão fortemente condicionadas por determinantes sociais - como propaganda, pressão dos pares, possibilidades de acesso a alimentos saudáveis e espaços de lazer (BRASIL, 2006; BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).

A camada seguinte destaca a influência das redes comunitárias e de apoio, constituintes do capital social cuja maior ou menor riqueza expressa o nível de coesão social que é de fundamental importância para a saúde da sociedade como um todo. Discutir a importância da rede ao se pensar a juventude é fundamental, uma vez que existem vários espaços identitários juvenis e formadores da juventude como grupos comunitários, religiosos, culturais, entre outros, nos quais, por meio da rede, é possível mapear os espaços locais por onde os jovens transitam para que possam ser compreendidos em seu contexto.

No nível seguinte, estão representados os fatores relacionados a condições de vida e de trabalho, disponibilidade de alimentos e acesso a ambientes e serviços essenciais, como saúde e educação, indicando que as pessoas em desvantagem social correm “riscos” diferenciados, criados por condições habitacionais precárias, exposição a condições mais perigosas ou estressantes de trabalho e menor acesso ao consumo de bens e serviços. Finalmente, no último nível, estão situados os macro-determinantes relacionados às condições econômicas, culturais e ambientais da sociedade e que possuem grande influência sobre as demais camadas (BRASIL, 2006; BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).

No estudo dos determinantes Buss e Pellegrini Filho (2007, p. 81) afirmam que:

O principal desafio dos estudos sobre as relações entre determinantes sociais e saúde consiste em estabelecer uma hierarquia de determinantes entre os fatores mais gerais, de natureza social, econômica e política e as mediações através dos quais esses fatores incidem sobre a situação de saúde de grupos e pessoas, já que a relação de determinação não é uma simples relação direta de causa e efeito.

A compreensão dos determinantes sociais depende, portanto, de análises aprofundadas, partindo da compreensão dos micro e macro-determinantes e contextualizadas capazes de explicitar as intervenções necessárias, bem como onde e como essas intervenções devem ser feitas. Os múltiplos condicionantes e determinantes do processo saúde-doença-cuidado colocam o setor saúde como articulador e em meio a uma rede importante quando se discute a saúde do jovem, uma vez que é necessário levar-se em conta o âmbito social, a educação, o trabalho, o lazer, a cultura e o esporte, entre outros. Neste estudo, a compreensão da saúde no cotidiano dos jovens, a partir da construção das interrelações entre as camadas propostas na FIG. 1, será de fundamental importância para o alcance dos objetivos propostos.

No contexto brasileiro, a Comissão Global sobre Determinantes Sociais da Saúde criada em 2005 e as Comissões Nacionais sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) estruturadas em 2006 são importantes dispositivos nessa construção. A CNDSS visa promover estudos sobre os DSS, buscando identificar, com maior precisão, as causas de natureza social, econômica e cultural da situação de saúde da população e recomendar políticas para a promoção da equidade em saúde, bem como mobilizar a sociedade para enfrentar as iniquidades em saúde e buscar melhores condições de saúde e qualidade de vida (BRASIL, 2006; BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).

Na análise dos modos de vida juvenis, além dos determinantes sociais em saúde, faz-se importante considerar sua relação com as práticas cotidianas, as representações e valores dos jovens, resgatando a heterogeneidade de suas experiências socializadoras. Na perspectiva de Guerra (1993), a expressão dos modos de vida conjuga, pelo menos, três níveis analíticos: o sistema e os atores, a história e o cotidiano e o objetivo e subjetivo na percepção do real. E, nesse sentido, o referencial da sociologia do indivíduo e sua interação com as estruturas da sociedade têm grande pertinência com os modos de vida uma vez que essas lógicas são interdependentes. Na análise da história e do cotidiano, busca-se conjugar as

diferentes práticas cotidianas com as relações sociais mais gerais que remetem à produção e à reprodução social, bem como à diversidade de redes de poder. No campo da objetividade e da subjetividade é que os valores sociais, as racionalidades e o imaginário social dos jovens podem ser analisados como eixos analíticos sustentadores dos modos de vida juvenis.

2.2.2 A condição juvenil na relação com as práticas de cuidado

A reflexão construída sobre modos de vida, determinantes sociais e a saúde busca reforçar a importância de que, no estudo da saúde no cotidiano dos jovens, objeto desta pesquisa, seja tomada, como ponto de partida para a análise, a vida desses sujeitos. É na vida que se manifestam a determinação social, as possibilidades e impossibilidades de acesso, de escolhas e de viver ou sobreviver em contextos adversos, marcados pelas iniquidades, com repercussão no âmbito biológico do processo saúde-doença e causadas pela distribuição desigual de poder, renda, terra, mercadorias, serviços, entre outros. Entender os jovens em seu cotidiano pode revelar as necessidades desses sujeitos, além da compreensão de como os determinantes sociais em saúde se expressam a favor ou não de sua saúde.

Desse modo, construir a relação entre juventude e saúde requer um esforço. Primeiramente porque todo o aparato conceitual da saúde concentra-se no entendimento do jovem com referenciais de adolescentes (ANDRADE, 2008, 2010). Salienta-se que a construção teórica feita neste estudo não se dedica a uma crítica ao conceito de adolescência. O que se pretende questionar, como forma de possibilitar uma reflexão mais ampla pela saúde, refere-se à forma como esse conceito tem sido construído e que práticas têm disparado quando se pensa a saúde dos jovens. Desse modo, a produção na área da saúde, tradicionalmente, centrou-se numa perspectiva dos fatores de risco e considerando adolescência e juventude como sinônimos. Essa compreensão remete a um conceito homogeneizante que desconsidera a análise da condição juvenil e das experiências que marcam as vivências dos jovens e que estruturam as ações de saúde. Essas ações têm, tradicionalmente, uma centralidade no corpo estritamente pela ótica biológica, sem atentar para o corpo social, para os valores dos jovens e sua relação com o processo saúde-doença.