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A construção de uma proposta de uma identidade étnica e urbana

As identidades ou as formas de identificação e representação dos sujeitos na contemporaneidade, principalmente em relação às questões étnicas, são marcadas, conforme Stuart Hall (1995) por uma contradição que consiste, de um lado, numa tendência em direção à homogeneização global, e de outro, numa fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da "alteridade". Processo esse caracterizado por uma homogeneização da cultura e uma posterior diferenciação da mesma, privilegiando as especificidades do “local” em relação a um “global”.

A constituição dessas formas de identidade se dá em meio às fronteiras, visto que, são relacionais, como nos ensina Barth (1998) é através de um recurso que lança seu olhar para trás e para longe, ou seja, para um passado; uma tradição inventada a partir de um referencial construído através dos sinais diacríticos, que em Paul Gilroy (2001) surgem como “traços residuais de sua expressão necessariamente dolorosa que contribuem para memórias históricas inscritas e incorporadas no cerne volátil da criação cultural afro-atlântica” (GILROY, 2001, p.158), os quais são cuidadosamente cultivados, em formas ritualizadas e sociais.

Essas identidades para Agier (2001) além de serem múltiplas, inacabadas e instáveis sempre construídas em processo, são ainda contextuais nunca podendo ser definidas por si mesmas, mas em relação ao referencial cultural, político e social do local, onde se constituem. Em se tratando do contexto urbano, ainda conforme Agier (2001), as identidades se constituem alterando os referentes de pertencimentos originais sejam eles étnicos, ou regionais, transformando as regras da vida social e cultural. Neste sentido,

A etnicidade urbana não é o pálido reflexo de uma etnicidade originária, localizada no universo rural e mais ou menos bem transplantada para a cidade segundo um princípio de continuidade cultural, mas uma criação propriamente urbana, um modo de classificação social que hoje diríamos híbrido (AGIER, 2001, pp. 11-12).

Neste tópico, trataremos a questão da identidade sobre o viés da etnicidade, de modo a buscar compreender de que maneira Maloca é construída enquanto um espaço praticado ou vivido na fronteira, o qual deve ser compreendido como um “lugar terceiro, jogo de interações e de entrevista, (...) um vácuo, símbolo narrativo de intercâmbios e encontros” (DE CERTEAU, 1994, p.214). Ou seja, um lugar ao mesmo tempo vazio e cheio de significados, onde os indivíduos que o constroem, o fazem, por intermédio de uma “identidade experimentada”.

Em primeiro lugar o que podemos definir como uma identidade experimentada ou vivida? Para Costa (2002) trata-se das “representações coletivas e sentimentos de pertença, repostados a coletivos de qualquer espécie, que um conjunto de pessoas partilha, emergentes de suas experiências de vida e de situações de existência social” (COSTA, 2002, p. 27), que nos auxiliam na compreensão do modo pelo qual os moradores da Maloca, por exemplo, ao mesmo tempo em que criam suas retóricas habitantes, fato que dá sentido ao espaço caracterizado por eles como étnico e urbano, constroem uma ideia de sujeito, produto do modo como usam seus símbolos, a fim de reformularem uma cultura influenciada por uma percepção de uma “África inventada”, através dos símbolos e discursos diaspóricos, os quais dão suporte à manutenção ou fortalecimento das fronteiras que os definem, enquanto tal.

Neste sentido, antes de nos reportamos ao processo de formação desse coletivo de modo mais detalhado, o que será feito no capítulo 2, examinemos, ainda que brevemente, alguns dos recursos analíticos que servem de suporte para a construção da identidade experimentada. As noções de estigma e de memória coletiva, respectivamente definidos por ErvingGoffman (1980) e Maurice Halbwachs (2006) vão servir de pano de fundo para discutirmos o processo de formação deste espaço, ou seja, a compreensão das estratégias que levam este território a reivindicar o reconhecimento de uma comunidade quilombola.

A concepção de estigma, aqui utilizada corresponde a um processo social, no qual dois grupos ou indivíduos interpretam papeis, um considerado pelas normas legitimadas pela sociedade como normal e o outro compreendido pelas mesmas como estigmatizado, ou seja, como desvio, ambos vistos como perspectivas de um mesmo processo, e não categorias. Trata-se de pontos de vista forjados a partir de situações sociais determinadas ou influenciadas por regras sociais preestabelecidas.

Neste sentido, como será observado no capítulo 2, a noção de estigma será discutida a partir do modo como os sujeitos se definem e são definidos pelos seus outros, vizinhança do bairro e sociedade aracajuana, passando, inclusive, pela própria forma de nomear este espaço, através do uso as memórias coletivas capturadas nas falas e discursos que povoam este lugar. Os sujeitos introjectam o estigma através do processo de desestigmatização, que ocorre em função da tomada de sentido por esses mesmos indivíduos, quando, então, passam a se reconhecerem como um grupo étnico que reivindica um espaço a ser definido como um quilombo urbano, em função das práticas que seus moradores exercem em relação ao espaço por eles habitado.

É justamente em função dos processos pelos quais passam os moradores da comunidade Maloca, no sentido da sua desestigmatização e consequente reconhecimento desta como uma comunidade quilombola, que estes sujeitos constroem um primeiro sentido identitário típico de populações ou grupos urbanos, o qual neste trabalho vem sendo definido como uma identidade experimentada, produto das práticas dos moradores da Maloca no espaço, as quais se encontram inscritas nas formas pelas quais a comunidade articula uma ideia de cultura africana que ressignifica o espaço através dos usos de seus símbolos.

Por fim, a partir dos sentidos dados a essas práticas em um espaço vivenciado na rotina de seus moradores, iremos observar como estes utilizar-se-ão de determinados sinais diacríticos, os quais representam uma ideia de etnicidade, por eles formulada para construir uma identidade tematizada, “uma estratégia deliberada e reflexiva de colocação publica de uma situação social qualquer sob a égide explicita da problemática identitária, em geral, com vistas à constituição ou potencialização de dinâmicas de ação social” (COSTA, 2002, p. 27).

Essa estratégia é construída em eventos como o Beleza Negra Criliber, cuja dinâmica de potencialização da identidade étnica do espaço analisaremos no capítulo 3. A qual se encontra inscrita sobre o corpo negro e compreende o uso que as participantes fazem de indumentárias, trançados de cabelo, amarrações na cabeça, e demais adereços, bem como, da sua performance em relação à dança e à música na medida em que transformam seus corpos em um espaço de inclusão que conecta os imaginários sociais produzidos na modernidade em torno do que se compreende como reafricanização.

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