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1. O RECONHECIMENTO DE ESTADOS NO DIREITO INTERNACIONAL

1.2 A prática internacional diante do reconhecimento de outras entidades territoriais

1.2.1 A Convenção de Montevideo sobre os Direitos e Deveres dos Estados (1933)

A Convenção de Montevideo, realizada em 193350 pela União Panamericana (antiga denominação da atual Organização dos Estados Americanos) na capital uruguaia, estabeleceu um marco importante na definição do que é um Estado para o direito internacional, bem como revelou expressivas considerações acerca do instituto do reconhecimento de Estados.

Logo em seu Artigo 1º, são já estabelecidas as qualificações necessárias para que uma entidade seja classificada como Estado, ou seja, um sujeito internacional, dotado de personalidade jurídica para atuar na vida pública internacional:

Artigo 1. O estado como sujeito de direito internacional deve ser dotado das seguintes qualificações: a) uma população permanente; b) um território definido; c) governo; e d) capacidade para entrar em relações com outros estados51.

Nesse trabalho, cabe verificar quais são os verdadeiros significados das definições que são trazidas pelo supracitado artigo da Convenção.

Uma população permanente exprime que um Estado é, acima de tudo, uma coletividade humana; uma população é a condição de sua existência. Como elemento

49 Deustche Continental Gas-Gesellschaft vs. Polish State, 5 ILR, 11, 13, 1929: “ (…) according to the opinion rightly admitted by the great majority of writers of international law, the recognition of a State is not constitutive but merely declaratory. The State exists by itself and the recognition is nothing else than a declaration of this existence, recognized by the States from which it emanates.”

50 Montevideo Convention on the Rights and Duties of States, League of Nations Treaty Series, Vol. 165, 1933. pp. 20-43.

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Ibidem, Art. 1. “The state as a person of international law should possess the following qualifications: a) a permanent population; b) a defined territory; c) government; and d) capacity to enter into relations with other states.”

35 constitutivo do Estado, significa a coletividade de indivíduos que são ligados a um ente governamental através de um vínculo jurídico (a nacionalidade atrelada ao Estado) 52.

Este vínculo jurídico pressupõe que os nacionais não foram acidentalmente submetidos à autoridade soberana, mas sim que os mesmos desempenharam um papel imediato de legitimação daquele governo emergente53.

Deve-se aludir, ainda, ao fato de que não existe no direito internacional consuetudinário um limiar de população necessário a um ente para obter a condição de Estado54.

De igual forma, não pode existir Estado sem que haja um território. Possuir um território, por consequência, é condição prévia para que um governo exerça o conjunto de poderes reconhecidos às entidades soberanas pelo direito internacional sobre aquela porção de terra correspondente ao Estado55.

É difícil delimitar alguma condição específica que prescreva a necessidade da posse de porções suficientes de terra. Da mesma forma, compreende-se que a ausência de fronteiras claramente delimitadas não impede que uma entidade venha a emergir como Estado para os efeitos do direito internacional, conforme foi atestado na sentença do caso North Sea

Continental Shelf:

O pertencimento de uma dada área, considerada como uma entidade, de forma alguma é regulada pela delimitação precisa de suas fronteiras, não mais que a incerteza acerca do fato que fronteiras podem influenciar direitos territoriais. Não há, por exemplo, nenhuma regra que afirme que as fronteiras territoriais de um Estado devem ser plenamente delimitadas e definidas e, geralmente, em vários lugares e por longos períodos, elas não são56.

52 Definição que consta em PELLET, Alain, QUOC DINH, Nguyen, DAILLIER, Patrick. Direito Internacional Público, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2003. p. 419.

53

Conforme ensina CRAVEN, Matthew. Statehood, Self-Determination,and Recognition. In: EVANS, Malcolm (Ed.). International Law, 3rd Ed. Oxford: Oxford University Press, 2010. pp. 221-222.

54 TOUSCOZ, Op. Cit., oferece uma definição de micro-Estados (ou Estados exíguos) como sendo “um conjunto de Estados que só têm em comum a sua pequenez; (…) estes micro-Estados têm por vezes competências reduzidas, a ponto de não se poder deixar de hesitar em lhes reconhecer a qualidade de Estado.” pp. 77-78. 55 PELLET, Op. Cit., p. 423.

56 North Sea Continental Shelf, ICJ Reports, 1969: “The appurtenance of a given area, considered as an entity, in no way governs the precise delimitation of its boundaries, any more than uncertainty as to boundaries can affect territorial rights. There is for instance no rule that the land frontiers of a State must be fully delimited and defined, and often in various places and for long periods they are not”. p. 3.

36 Por outro lado, fronteiras não são somente linhas traçadas no solo, ou maneiras de delimitar esferas de jurisdição. Elas servem também para delimitar a vigência de uma ordem política e a sua separação em relação a outras. Deste modo, a afirmação de que a falta de fronteiras estabelecidas não traz nenhuma consequência para o direito internacional é difícil de sustentar57.

O critério territorial assume, portanto, uma forma profundamente indeterminada na concepção jurídica da estatalidade, sendo um de seus requisitos indispensáveis, mas simultaneamente incapaz de ser articulado em uma forma concreta58.

O terceiro requisito imposto pela Convenção de Montevideo diz respeito à necessidade de que o Estado em questão possua um governo. Pelo termo, contudo, deve-se entender que um Estado, para que seja considerado como tal pelo direito internacional, deve ser dotado de um governo que apresente certa efetividade – ou autoridade – sobre o território e a população em tese.

Assim, a necessidade da existência de um governo deve ser compreendida pela sua capacidade real de exercer as funções estatais, especialmente a manutenção da ordem e da segurança em caráter interno. Este é o crivo pelo qual devem passar os novos Estados que vêm a surgir na comunidade internacional: a efetividade do controle político e administrativo de uma entidade em um determinado território de certa população é preceito fundamental para que um ente possa ser considerado um Estado, de acordo com a teoria clássica de Montevideo59.

A efetividade do governo é entendida como o seu poder para impor o monopólio do exercício da força dentro do território. O governo em questão deve ser capaz de demonstrar posse e controle inequívocos do poder público e, assim que essa autoridade se estabeleça com certa medida de permanência, uma entidade pode tornar-se um Estado60.

57 CRAVEN, Op. Cit., p. 224. 58

Ibidem.

59 PELLET, Op. Cit., pp. 428-429. 60 CRAVEN, Op. Cit., pp. 224-225

37 Alguns autores, reforçando esse argumento, defendem que a autoridade governamental de uma entidade é o critério mais importante para se definir o Estado, visto que todos os outros critérios dele dependem61.

O critério da efetividade governamental opera como um princípio internacional cujo efeito é condicionado por outros princípios relevantes, como o da autodeterminação dos povos, ou ainda a proibição do uso da força. Assim, mantém-se que em alguns contextos, entidades políticas relativamente efetivas – como a República Turca do Chipre Norte, ou a Rodésia do Sul – não vieram a ser reconhecidas como Estados independentes devido à violação de normas de direito internacional dotadas da condição de jus cogens na formação dessas entidades. Da mesma forma (surtindo o efeito contrário), o critério da efetividade governamental não possui tanta significância se a entidade em questão desfruta do direito à autodeterminação.

Compreende-se, assim, que a efetividade governamental age como princípio cujos parâmetros são determinados por outros institutos jurídicos e podem interagir com outros princípios fundamentais da ordem internacional, como a autodeterminação dos povos e a proibição do uso da força. É evidente, para não falar inevitável, que haja uma tensão entre princípios que permitam e que precluam a concessão do reconhecimento a novas entidades aspirantes ao status de Estado no direito internacional.

A necessidade de se demarcar objetivamente o momento no qual um Estado começa a existir juridicamente (por meio da aplicação do critério governamental) possui, atualmente, uma importância reduzida.

Por um lado, revela-se uma disposição cada vez maior de se reconhecer como Estados entidades que não são totalmente efetivas no seu âmbito governamental interno62.

O processo de descolonização indicou o momento em que a noção de soberania assumiu progressivamente um matiz negativo, levando ao reconhecimento de quase-Estados de acordo com os parâmetros clássicos. Esses Estados, ao invés de desenvolvidos

61

Ibidem.

62 Ibidem, p. 228. “(…) one may recall in in recent years for example, that both Bosnia-Herzegovina and Croatia were recognized by the EC as independent States in 1992 at a time at which the governments concerned had effective control over only a portion of the territory in question. (…) The most problematic cases are those of Bangladesh and Eritrea, the recognition of which could not easily be framed in terms of the standard understanding self-determination.”

38 anteriormente à independência, tiveram que se desenvolver a posteriori. O que se pôde notar foi a transformação da noção de independência de um conceito inerentemente material, baseado na autonomia governamental interna, no sentido de uma condição jurídica formal, atrelada fundamentalmente ao seu reconhecimento externo.

No seu Artigo 3º, nota-se uma importante contribuição para o estudo da matéria do reconhecimento de Estados:

Artigo 3. A existência política de um estado é independente de seu reconhecimento por parte dos outros estados. Mesmo antes do reconhecimento, o estado tem o direito de defender sua integridade e independência, de promover sua conservação e sua prosperidade, e consequentemente de se organizar à sua discrição, de legislar de acordo com seus interesses, administrar seus serviços e definir a jurisdição e competência das suas cortes. O exercício desses direitos não possui nenhuma outra limitação além do exercício dos direitos de outros estados de acordo com o direito internacional63.

Por fim, seu Artigo 6º reforça a posição apresentada pelo Artigo 3º, concluindo que o reconhecimento possui, de fato, caráter meramente declaratório:

Artigo 6. O reconhecimento de um estado meramente significa que o estado reconhecedor aceita a personalidade do outro estado junto de todos os direitos e deveres arrogados pelo direito internacional. O reconhecimento é incondicional e irrevogável64.

O Institut de Droit International, em resolução proferida em 1936 (ou seja, três anos após a conclusão da supracitada Convenção de Montevideo), confirma que o reconhecimento do Estado é um ato jurídico livre e discricionário:

Artigo 1: O reconhecimento de um novo Estado é o ato livre pelo qual um ou mais Estados admitem a existência, em um território definido, de uma sociedade humana organizada politicamente, independente de qualquer outro Estado pré-existente e capaz de respeitar as obrigações do direito internacional, e pelo qual estes Estados manifestam, portanto, sua intenção em considerá-lo um membro da Comunidade Internacional. O reconhecimento tem um efeito declaratório. A existência de um novo Estado, junto de todos

63 Montevideo Convention, Op. Cit., Art. 3.: The political existence of the state is independent of recognition by the other states. Even before recognition the state has the right to defend its integrity and independence, to provide for its conservation and prosperity, and consequently to organize itself as it sees fit, to legislate upon its interests, administer its services, and to define the jurisdiction and competence of its courts. The exercise of these rights has no other limitation than the exercise of the rights of other states according to international law.” 64

Ibidem, Art. 6.: “The recognition of a state merely signifies that the state which recognizes it accepts the personality of the other with all the rights and duties determined by international law. Recognition is unconditional and irrevocable.”

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os efeitos jurídicos ligados a essa existência, não é afetada pela recusa em reconhecê-lo por um ou mais Estados65.

A mera existência como Estado não oferece uma resposta conclusiva à questão da existência do Estado para o direito internacional, ou seja, como sujeito regular do sistema.