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3 CARACTERIZAÇÃO DA FEDERAÇÃO

3.3 A CORTE CONSTITUCIONAL

É característica dos ordenamentos jurídicos modernos a existência de uma Constituição, a qual se encontra no topo da hierarquia normativa, face o princípio da supremacia daquela.

Conforme a melhor técnica legislativa, é na Constituição que se determina a separação dos poderes, a repartição de competências, enfim, a organização do Estado. Neste azo, é ela que fixa ou não a forma federal, tornando-se extremamente relevante o modo como implementa as leis da autonomia e da participação.

Logo, faz-se imprescindível a existência de um órgão que tenha por função precípua tratar da questões concernentes à Constituição, ocasião em que atuará mesmo na interpretação da federação por ela estabelecida. Embora tratando da concisa e genérica Constituição norte-americana, são bastante atuais e universalmente aplicáveis as palavras do Chefe de Justiça Hughes, de que “estamos sob a Constituição, mas a Constituição é o que os juizes dizem que ela é”33. Analogamente, o que se mostrou bastante acertado na história dos

Estados Unidos, a Constituição determina o federalismo, mas este é o que os juizes dizem ser.

32 BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques. 11 ed. Paris: Librairie générale de

droit et de jurisprudence, 1965. p. 53: “Dans ce processus, la loi de participation a été beaucoup mieux protégée. On pourrait même dire qu´elle en sort renforcée, car la population des Etats membres reporte sur les autorités fédérales l´influence devenue inutile sur le gouvernement local. C´est ainsi qu´aux Etats-Unis, le Sénat, organe fédéral composé par les délégués des Etats ne cesse de voir s´accroître son prestige précisément parce que les particularismes locaux, les grandes options politiques que la géographie américaine détermine, peuvent s´y faire valoir.”

33 Apud FERGUSON, John H., MCHENRY, Dean E. Ob. cit. p. 59: ”We are under the Constitution, but the

O federalismo é verdadeiramente o ponto de origem do controle concentrado de constitucionalidade. Com o seu peculiar apuro, tratou Hans Kelsen do tema, afirmando que “é certamente no Estado Federal que a justiça constitucional adquire a mais considerável importância. Não há nenhum exagero em asseverar que a idéia política do Estado Federal só se realiza plenamente com a instituição de um tribunal constitucional”34. Na mesma linha,

prega Hauriou que:

Nesses Estados, o poder judicial desempenha um papel federal que aumenta muito sua importância. Com efeito, os conflitos postos entre Estados particulares, ou bem entre estes e o Estado central, não podem se regulamentar por via diplomática, já que se trata de questões de Direito público interno; não pode ser resolvidas por via administrativas, si o federalismo é autêntico35, porque os Estados particulares não

estão subordinados hierarquicamente ao Estado central; devem ser regulamentados por via judicial; assim é como o Tribunal Supremo dos Estados Unidos, verificando se os tribunais dos Estados procuram impedir leis locais que contradigam a Constituição federal, exerce sobre as ‘legislaturas’ dos Estados-membros um controle do federalismo.36

Sinteticamente, ao discorrer sobre o respeito à repartição de competências estatuída pela Constituição dos Estados Unidos, o referido autor ensina que “a Constituição não prevê nem este controle do federalismo nem o controle de constitucionalidade propriamente dito, que se deriva daquele”37, do que se nota a suma importância da Corte

Constitucional à Federação. Prossegue o jurista francês dizendo que o controle do federalismo “nasceu como conseqüência de uma iniciativa do juiz Marshall, em 1803, no caso Marbury v.

Madison. Trata-se, pois, de uma construção jurisprudencial, obra do Tribunal Supremo

federal”38. Diga-se apenas que o pleno acerto de suas afirmações se cinge ao controle judicial,

34 Hans Kelsen, apud BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Representativa: por um

direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 319.

35 Não quer parecer aqui que o autor esteja se referido à modalidade autêntica de federalismo, no qual cada

Estado conta com a mesma representação na Câmara Alta, e sim à autenticidade da forma federal.

36 HAURIOU, André. Derecho constitucional e instituciones políticas. Trad. castellana, adaptación y apéndice

sobre “el derecho constitucional y las instituciones políticas en España” de José Antonio González Casanova. Barcelona: Ariel, 1971. p. 181: “En estos Estados, el poder judicial desempeña un papel federal que aumenta mucho su importancia. En efecto, los conflictos planteados entre Estados particulares, o bien entre éstos y el Estado central, no pueden reglamentarse por vía diplomática, ya que se trata de cuestiones de Derecho público interno; no pueden ser resueltos por vía administrativa, si el federalismo es auténtico, pórque los Estados particulares no están subordinados jerárquicamente al Estado central; deben ser reglamentados por vía judicial; así es cómo el Tribunal Supremo de los Estados Unidos, verificando si los tribunales de los Estados procuran impedir leyes locales que contradigan la Constitución federal, ejerce sobre ‘legislaturas’ de los Estados miembros un control de federalismo.”

37 HAURIOU, André. Ob. cit. p. 469: “La Constitución no prevé ni este control del federalismo ni el control de

la constitucionalid propriamente dicho, que se deriva de aquél.”

38 HAURIOU, André. Ob. cit. p. 469: “Nació como consecuencia de una iniciativa del juez Marshall, en 1803, en

el asunto Marbury v. Madison. Se trata, pues, de una construcción jurisprudencial, obra del Tribunal Supremo federal.”

já que se vislumbra na Constituição norte-americana o mecanismo da intervenção, o que se verá mais adiante, em tópico próprio.

Para Bonavides, “as Constituições republicanas que adotam a organização federativa dos entes constitutivos do corpo político, o princípio da separação de poderes e a forma presidencial de governo, via de regra tendem, de necessidade, em razão de sua rigidez, a estabelecer um sistema de controle de constitucionalidade”39. Na realidade, sempre que se

consagrar a Constituição como lei suprema, deve haver algum mecanismo de controle, ainda que não expresso, sob pena de se admitir a plena eficácia de leis inconstitucionais. Afigura-se o sistema misto – concentrado e difuso, concomitantemente – adotado atualmente pelo Brasil como o mais adequado, por permitir tanto os controles in abstrato quanto in concreto.

Conforme leciona Gérson Marques40, com base em Canotilho, os Tribunais Constitucionais são aqueles criados para apreciar a julgar especificamente os litígios interorgânicos, entre órgãos e autoridades estatais, e entre unidades políticas, e o controle abstrato de constitucionalidade de atos normativos, do que avulta sua importância ao sistema federal.

Retomando o exemplo norte-americano, a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao longo da história, atuou por vezes no sentido de ampliar a esfera de atuação da União, e por outras, dos Estados-membros. No caso McCulloch versus Maryland, em que se consagrou a teoria dos poderes implícitos, entendeu o judiciário, ao contrário do que pretendia o estado de Maryland, ser possível à União instituir um banco e vedada sua taxação pelo Estado-membro. Sob a batuta de Marshall, portanto, a Suprema Corte pendeu para o fortalecimento da União. Com Taney, tem-se a idéia do dual federalism, em que União e Estados comporiam dois governos separados, independentes. De forma geral, no período pós-Marshall até 1937, a Corte se caracteriza por uma jurisprudência de caráter conservador, com diminuição do poder central, intercalado com momentos de expansão da União, destacando-se os “Civil Right

39 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Representativa: por um direito constitucional

de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 320.

40 LIMA, Francisco Gérson Marques. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira (Estudo

Cases, quando o poder nacional retrocede, sofrendo uma das maiores compressões da história norte-americana”41.

Após 1937, com o New Deal e o forte intervencionismo na economia, fortaleceram-se os poderes da União norte-americana, encerrando a concepção do dual

federalism, tendência aquela que se manteve ante os desafios externos dos Estados Unidos,

melhor enfrentados por um poder central fortalecido. A doutrina antiterrorista da presidência Bush aliada às indicações por ele feitas para a Corte Suprema devem colaborar para a manutenção desse status.

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal do Brasil foi instituído em 1890, por decreto, substituindo o Supremo Tribunal de Justiça da época imperial, alçando posição constitucional com o texto de 1891, tendo sido desde então essa a sua denominação, exceto sob a Constituição de 1934, quando foi designado de Corte Suprema.

A primeira ordem constitucional republicana previa o controle de constitucionalidade apenas do tipo difuso, sendo o Supremo o órgão de última instância para tanto42. Com a carta de 1934 passou-se a demandar o voto da maioria absoluta dos membros dos tribunais para declarar a inconstitucionalidade de lei e deu-se ao Senado a competência de conferir efeitos erga omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal quanto à inconstitucionalidade, suspendendo no todo ou em parte a lei, ato, deliberação ou regulamento declarado inconstitucional.

Atualmente, o STF exerce tanto o controle concentrado de constitucionalidade quanto o difuso. A respeito do controle concentrado, Fernando Ximenes diz que:

“O controle de constitucionalidade pela via direta da ação, na verdade, foi introduzido no Brasil pela Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965, que deu nova redação à alínea k do art. 101, inciso I, da Constituição de 1946, acrescentando às competências originárias do Supremo Tribunal Federal a de processar e julgar ‘a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República’”43.

41 RUSSOMANO, Rosah. Ob. cit. p. 149.

42 Lembrando-se que no Império a proteção da Constituição cabia ao Legislativo.

43 ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. Controle de constitucionalidade das leis municipais. Dissertação de

A competência do Supremo Tribunal é estatuída pelos Arts. 102 e 103-A da Constituição. Interessa de forma direta ao princípio federal, quer pela sua preservação, quer pelos contornos que lhe confere a atividade do Supremo Tribunal, a competência deste para processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual; a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; as causas e os conflitos entre a União e os Estados-membros ou Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta; os conflitos de competência entre os Tribunais de Justiça e o Superior Tribunal de Justiça ou demais Tribunais superiores; para julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância cuja decisão haja contrariado dispositivo da Constituição, declarado a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgado válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição, ou julgado válida lei local contestada em face de lei federal.

Cabe-lhe também, na conservação da federação, a teor dos Arts. 34, VI e VII e 36, II e III, solicitar a intervenção federal nos Estados-membros em razão de descumprimento de ordem ou decisão judicial, e decidir quanto à intervenção quando requerida pelo Procurador- Geral da República em face de ofensa a princípios constitucionais especialmente protegidos ou recusa à execução de lei federal.

Verifica-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal é positivamente o encarregado da solução dos conflitos federativos no Brasil, quer por meio de sua competência originária, quer através de sua competência recursal.

Ocorre na prática que o STF acaba por não atuar a contento no seu papel de guardião da Constituição – e assim, dos princípios nela insertos, inclusive o federal –, não sendo concretamente uma Corte Constitucional, embora órgão constitucional, vez que instituído pela Constituição, que prevê sua competência, compartilhando de forma decisiva da formação política global do Estado44.

44LIMA, Francisco Gérson Marques de. Ob. cit. p. 56: “Luís Afonso Heck, recorrendo à doutrina alemã, aponta

ser preciso para a caracterização de órgão constitucional que: a) a sua instituição se dê por meio da própria Constituição; b) as suas competência estejam estabelecidas na Constituição; e c) compartilhe, em forma decisiva, da formação política global do Estado.”

O judiciário brasileiro é do tipo hierárquico, estruturando-se de forma piramidal, composto por profissionais de carreira, sendo fartos os recursos disponíveis às partes, inclusive para se alcançar a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, o qual, ao invés de cumprir a função para a qual efetivamente se destina, termina por ser mais uma instância recursal. Baseado em profundo estudo teórico e pesquisa de campo, Gérson Marques afirma que “as ações sobre controle de constitucionalidade (em tese), os conflitos interorgânicos, as questões federativas, o disciplinamento dos poderes, são em escala infinitamente inferior”45.

O Supremo Tribunal brasileiro se desvia da inclinação de seus congêneres norte- americano, europeus e mesmo latino-americanos, cingindo-se basicamente em suas atividades diárias a atuar na solução de lides individuais, conseqüência direta do excesso de competência que lhe foi atribuído pelo atual regime constitucional.

Não fosse isso o bastante, a sua atuação nos últimos tempos vem a demonstrar o reiterado conteúdo meramente político de suas decisões, atuando na defesa dos interesses do governo federal, uma vez que seus membros são escolhidos pelo Presidente da República, oportunidade em que nos conflitos federativos fica patente que sua orientação é pelo fortalecimento dos poderes centrais. Lamentavelmente, tal estado de coisas se verifica mesmo sendo o Senado dotado do poder de desaprovar previamente a escolha presidencial, pois no exercício dessa faculdade ele vêm agindo verificando apenas a aptidão do candidato, e não sua docilidade ao Executivo federal.

Essa falta de legitimidade decorrente da escolha pelo Presidente, que se repete na Suprema Corte dos Estados Unidos, da qual copiamos o modelo de escolha dos Ministros do Supremo, no entanto, não impediu aquela Corte de historicamente atuar em conformidade com seu papel, o que continua a fazer.

Saliente-se que as decisões de uma Corte Constitucional devem ser políticas, posto que referentes aos próprios fundamentos do Estado – ao que se lembra inexistir poder (isto é, função) estatal apolítico –, mas nunca meramente políticas, que são aquelas que o Judiciário não poderia conhecer, resolúveis por critérios de natureza não jurídica.

Peca, portanto, o Supremo Tribunal Federal em sua função do controle de constitucionalidade das leis e da solução dos conflitos interorgânicos e federativos por excesso de competências, bem como pela sua visceral aproximação ao Executivo federal, comprometendo, pois, o papel que lhe cabe desempenhar no federalismo brasileiro.

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