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A crítica feminista ao sistema de refúgio na década de 1980: o início de um grande

Isso porque, em sua visão, era pouco provável que futuras perseguições trouxessem uma interseccionalidade com o gênero.

Assim, se passaram três décadas sem que os problemas tocantes à perseguição relacionada ao gênero fossem endereçadas efetivamente, gerando, em certa medida, uma invisibilização da causa. A questão ressurge na década de 1980, e o que a leva à agenda de refúgio é fruto do trabalho árduo realizado por Organizações Não-Governamentais (ONGs)17 e acadêmicos que passaram a criticar a cegueira do sistema de refúgio para iniquidades oriundas da inexistência de mecanismos atinentes ao gênero e sexo. Para esses atores, essa cegueira se manifestava na prática e na doutrina legal da época – mesmo com a existência de diversos pedidos de refúgio baseados em questões específicas da mulher18, a temática seguia escanteada no plano internacional.

Feito esse recorte geral, este capítulo está dividido em três seções a fim de oferecer um panorama global e mais pormenorizado da temática. A primeira seção discute os estudos e as críticas acadêmicas à temática, oferecendo uma esquematização dos principais embates tratados neste âmbito. Em seguida, são postos em xeque os documentos internacionais sobre o tema e seu conteúdo é analisado. Por fim, são esquematizados diretrizes e dispositivos legais de distintos países a fim de ilustrar como o tema tem sido contemplado.

3.1 A crítica feminista ao sistema de refúgio na década de 1980: o início de um grande

Nessa esteira, será abordada a obra da antropóloga Doreen Indra, que vê o gênero como uma dimensão-chave ao refúgio. Um dos pontos principais levantados em suas obras está a criação da imagem popular do “refugiado”. Essa imagem, normalmente, não diferencia a experiência de homens e mulheres, o que invisibiliza o papel que o gênero tem nas experiências de refúgio. Para ela, o conceito de refugiado está longe de ser um conceito neutro: na realidade, é um conceito especificamente político (INDRA, 1989).

Além disso, homens e mulheres quase nunca estabelecem a mesma relação com os critérios determinantes do status de refúgio estabelecidos pela ONU – raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política. Normalmente essas categorias estão intimamente ligadas à vida na esfera pública e que culturalmente são tidas como atividades do homem. Quando nos referimos à esfera privada, a autora afirma que:

With regard to private sphere activities where women’s presence is more strongly felt, there is primarily silence – silence compounded by an unconscious calculus that assigns the critical quality “political” to many public activities but few private ones. Thus, state oppression of a religious minority is political, while gender oppression at home is not. In addition,

“oppression” itself has strong gender implications: physical violence, cultural, political, and religious intolerance all have their genderalized consequences. (INDRA, 1989,p.225).

Na visão de Indra (1989), a adição do termo “gênero” como base para uma solicitação de status de refúgio não seria o suficiente para a proteção dessas mulheres. Para isso, seria necessária uma redefinição do termo “perseguição” dentro da normativa para que fosse dado credibilidade à esfera privada e às experiências de mulheres.

Marika Meijer (1985) vai de acordo com a visão de Indra (1989) de que gênero deveria estar dentro da convenção. A autora ainda traz o ponto de vista de que não era impossível incluir a perseguição baseada no gênero dentro da categoria de grupo social.19 Em adição, a obra de Meijer (1985) ressalta uma forma específica de resistência a opressões, única de mulheres, e que não era reconhecida pela área de refúgio na época:

It should be realized that the resistance of women against their oppressed state is often not recognized and therefore is difficult to prove. Women’ s resistance is as a rule not organized. The position to which women are delegated (sic) does not give them the opportunity to organize. (MEIJER, 1985).

Spijkerboer (2000) retrata que as críticas iniciais tinham como objetivo também um ataque ao suposto posicionamento “neutro” da Convenção quanto à questão de gênero, isto é,

19 É preciso destacar ainda que naquele momento essa opção ainda não era reconhecida por parte do ACNUR. Porém, o Parlamento Europeu já havia expressado em uma resolução a possibilidade de se considerar mulheres que sofrem a perseguição relacionada ao gênero dentro desta mesma categoria.

havia na época a crença de que a Convenção de 1951 era neutra e que seu conteúdo era o suficiente para a proteção destas mulheres. A alegação era de que a própria lei seria o problema.

Essas autoras consideravam necessário travar uma luta para que a opressão contra mulheres na esfera privada se tornasse uma questão política. Além disso, essas críticas identificaram dois fatores importantes à experiência de mulheres refugiadas da época: (1) mulheres e homens têm relações diferentes com o Estado e a esfera pública no país de origem – as mulheres, ao contrário dos homens, são forçadas, segundo as autoras, a viver principalmente na esfera privada; e (2) um risco de perseguição pode surgir como consequência de uma violação dos valores morais ou éticos da sociedade, como não cumprir os códigos de vestimenta ou recusar um casamento arranjado. Outro fator que pode influenciar é uma mulher falhar em sua função de esposa ou mãe, ou até se está ativamente engajada na política. Acentua-se que as experiências de mulheres com a perseguição devem ser tão destacadas quanto a experiência de homens, ainda mais quando se leva em conta que suas experiências são invisibilizadas quando colocadas em xeque.

3.1.1. As teorias voltadas ao aspecto de direitos humanos: novas críticas a antigos debates

As teorias voltadas a um aspecto mais ligado aos direitos humanos são identificadas por Spijekerboer (2000) Gender and Refugee Status. Para o autor, essas teorias traziam críticas importantes às obras iniciais sobre a temática. A autora percursora de tal corrente foi Greatbach.

Para Greatbatch (1989), a visão de Indra (1989) e Meijer (1985) na verdade se refletia em uma versão errônea e bifurcada da sociedade que ignora a vida das mulheres fora da esfera privada, ou seja, estabelece que somente os homens agiriam na esfera pública. Diante disso, a autora destaca que:

This analysis founders on its ahistoric, acultural approach to women’s oppression, in addition to its inattention to key aspects of the Convention definition and its overarching limitations. The bifurcated version of society itself ignores the realms of women’s lives outside domesticity, and creates a rhetorical and theoretical wall between domestic and social culture. It roots women’s oppression in sexuality and private life, thereby disregarding oppression experienced in non-domestic circumstances, and the interconnections of the public and private spheres. (GREATBATCH, 1989, p. 520).

Outra importante observação da autora é a necessidade de explorar a normativa já existente e que esta contém uma flexibilidade importante para casos de perseguição relacionada ao gênero, já que pode acomodar uma visão diferente da dominante a respeito das problemáticas envolvidas em questões de gênero (GREATBATCH, 1989).

Motivados pelo texto de Greatbatch, outros autores se envolveram com esta frente teórica. Para esses autores, mulheres refugiadas fugiam de seus países devido a um fator cultural: uma suposta “misoginia institucionalizada” (SPIJKERBOER, 2000).

Uma das autoras que cunha o termo “misoginia institucionalizada” é Linda Cipriani, que acreditava, assim como Indra (1989) e Meijer (1985), que o gênero deveria ser sido coberto pelo significado de refúgio contido na Convenção, pois “[...] it would protect women from institutionalized misogyny in which the government carries out, sanctions or ignores oppression of or violence against women because they are women” (CIPRIANI, 1993, p. 513).

Outro ponto importante a essa corrente é a consideração de que a cultura, tradição e religião do país de origem influenciam na opressão de mulheres20 que sofrem com a perseguição relacionada ao gênero.21

Spijkerboer (2000) aponta que esses autores, concretamente, desenvolveram uma tipologia das motivações de mulheres para fugirem perseguições. Assim, definiu-se que existiam quatro tipos de perseguições relacionadas ao gênero sofridas por mulheres. Essas perseguições se caracterizavam da seguinte maneira:

(1) A perseguição de mulheres pode muitas vezes se materializar em virtude de crimes de abuso sexual. Quando isso acontece, muitas vezes essas mulheres se sentem relutantes em contar suas histórias, ou, até mesmo, torna-se difícil de obter provas de que aquele abuso ocorreu. Além disso, quando o agente que realizará a entrevista dessa mulher é homem, mais constrangida ela se sentirá de contar sua história.

(2) Muitas vezes, mulheres podem ser perseguidas por autoridades nacionais por atos cometidos por seus companheiros. Esses tipos de casos podem envolver a tentativa de extração de informações sobre as atividades políticas de seu companheiro. Esse tipo de perseguição é abordado na “Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”, de 1984.

(3) Outro caso retratado está na perseguição contra mulheres que infringiram regras morais ou éticas dentro de suas sociedades. O caso é que, em muitos países, estes costumes podem ser parte de suas leis.

(4) A discriminação a certos grupos de mulheres também é citada: por exemplo, Kelly (1993) menciona que grupos de mulheres sofrem abusos físicos, estupro, mutilação

20 Ver Kelly (1993).

21 Muitos destes autores ligavam esses fatores a países em desenvolvimento.

genital, assassinato, privação de cuidados médicos, falta de acesso a educação, empregos e comida.

Desta forma, a solução para as problemáticas envolvidas na concessão de refúgio para mulheres que sofrem perseguição relacionada ao gênero estaria em adotar uma perspectiva sensível ao gênero e aos direitos humanos. Além disso, a maioria dos autores acreditavam que mulheres devem ser abarcadas na categoria de grupo social (SPIJKERBOER, 2000). Kelly (1993) destaca que é necessária “[…] a reconceptualization of the presentation of women’s cases, including an examination of the political nature of seemingly private acts and the ways in which many states fail to accord protection to their female populations” (KELLY, 1993, p.

642 apud SPIJKERBOER, 2000).

3.1.2. As críticas anti-essencialistas e sua análise

Ao falarmos de algumas das teorias que emergiram nos anos 1990, as chamadas teorias anti-essencialistas por Spijkerboer (2000) se destacam. Um nome que se sobressai dessa abordagem teórica é o de Heaven Crawley. A autora argumenta que a opressão de mulheres é, por muitas vezes, culturalizada, e que os Estados muitas vezes rejeitam pedidos de refúgio baseados em opressões culturais devido a uma visão que as incluem exclusivamente sob a esfera privada (CRAWLEY, 2000).

A acadêmica ainda levanta que diretrizes são importantes por aumentarem a conscientização sobre as dificuldades enfrentadas por mulheres refugiadas e resultam em um guia importante aos problemas encontrados em processos de solicitação de refúgio. Além disso, as diretrizes têm um papel importante em motivar organizações e outros atores – como ONGs, coletivos de mulheres, acadêmicos, entre outros – a desafiarem as políticas existentes por meio de coleta de informações e formulação de reivindicações individuais tanto em fases iniciais dos processos como em fases de apelação (CRAWLEY, 2000).

Porém, reconhecer essas problemáticas não se faz suficiente. É necessário a observância de que essas não surgem somente pelo fato de suas vítimas serem mulheres, mas também do significado embutido em elementos chaves da Convenção e, principalmente, no âmbito político.

Para Crawley (2000), são o conceito de política e a tendência de tomadores de decisões em assumirem uma dicotomia público-privada durante processos de análise que, em realidade, se configuram enquanto problema. Estes aspectos, por sua vez, não seriam simplesmente solucionados pela implementação de diretrizes.

Spijkerboer (2000) afirma que houve críticas do movimento anti-essencialista à corrente voltada aos direitos humanos. A primeira crítica destacada pelo pesquisador se refere ao estereótipo criado pelos percursores desta corrente que localiza a opressão de gênero nas regiões em desenvolvimento e representa as regiões desenvolvidas do planeta como países receptores de refugiadas. Seria como se a visão voltada aos direitos humanos reforçasse uma prática legal onde “as reivindicações de mulheres tenham maior probabilidade de sucesso quando estas se apresentam como vítimas de culturas e Estados disfuncionais e excepcionalmente patriarcais”

(SPIJEKERBOER, 2000, p. 169, tradução livre).

Os anti-essencialistas são também críticos ao enquadramento das perseguições contra mulheres na categoria de “grupo social”. Para eles, a corrente dos direitos humanos tende a enquadrar toda e qualquer perseguição contra mulheres como uma perseguição baseada no gênero. Essa tendência é criticada já que este enquadramento acaba, por consequência, reforçando a imagem dos homens como os únicos refugiados “reais” (SPIJEKERBOER, 2000).

Macklin (1995) nos alerta dos perigos de interpretar a perseguição contra mulheres como perseguições relacionadas exclusivamente ao gênero. A autora nos fornece duas definições que ilustram seu argumento e nos remetem a uma reflexão: “perseguições por motivos de gênero” e “perseguições por causa do gênero”. A diferenciação entre os dois termos está no entendimento de que, certamente, o gênero pode ser o motivo relevante da perseguição contra mulheres configurando-se como uma “perseguição por motivos de gênero”, mas também pode ser determinante para a forma que uma perseguição é realizada e não o motivo da perseguição, enquadrando-se como uma “perseguição por causa do gênero”, ou seja, o gênero pode ser também um fator de risco para que mulheres sofram uma forma específica de perseguição que não ocorreria da mesma maneira se não fossem mulheres.

Assim, se faz necessário o entendimento de que mesmo que os dois fatores apresentados anteriormente estejam presentes em um mesmo caso, isso não significa que sejam sinônimos.

Um exemplo é oferecido pela autora:

For example, one may be persecuted as a woman (e.g., raped) for reasons unrelated to gender (e.g., membership in an opposition political party), not persecuted as a woman but still because of gender (e.g., flogged for refusing to wear a veil),185 and persecuted as and because one is a woman (e.g., genital mutilation). All three of these cases present examples of gender persecution, but it does not follow that each of them ought to be framed as persecution on grounds of gender, whether gender is propounded as a separate ground of persecution or as a particular social group. In particular, it is more apt to describe the first claimant as one who fears persecution on the basis of a political opinion, not gender. Recognizing rape as a type of torture permits the conclusion that what was done to the claimant was indeed persecution. (MACKLIN, 1995, p. 259).

Ainda, destaca-se em sua obra que a problemática em enquadrar todas as perseguições contra mulheres como “perseguições por causa do gênero” pode reforçar a marginalização de mulheres, sugerindo que apenas homens tenham opiniões políticas, sejam ativos religiosamente etc. Em outras palavras, implicaria em criar e sustentar um estereótipo no qual exclusivamente homens são perseguidos dentro das motivações previstas na Convenção. Ao mesmo tempo, ignorar o gênero como motivação para perseguição mascararia as especificidades da opressão contra mulheres (MACKLIN, 1995).

Na seção seguinte são apresentados os documentos criados pelo ACNUR como resposta às críticas feitas pela academia e organizações não-governamentais. Esses documentos são listados e explicitados de forma a introduzir o leitor aos principais mecanismos criados pelo ACNUR para ajudar na proteção de mulheres refugiadas que sofreram perseguições relacionadas ao gênero.