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2.2 A SOCIEDADE MULTIDIMENSIONAL DE ALBERTO

2.2.1 A crítica à sociedade mercadocêntrica

As considerações do autor a respeito da análise e planejamento de sistemas sociais se inspira nos estudos de Karl Polanyi, em especial na sua principal obra, A grande transformação, de 1944. Nela, Polanyi defende a concepção da economia como um processo social e rastreia a

construção histórica e o avanço da economia de mercado como um processo que não obedeceu às características da natureza humana (SANCHÉZ, 1999). Conforme suas ideias:

Nem nas condições de vida tribal, ou feudal, ou mercantil houve...um sistema econômico separado na sociedade. A sociedade do século XIX, na qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma razão econômica inconfundível, representou, de fato, um desvio singular...semelhante padrão institucional não podia funcionar, a menos que a sociedade ficasse, de alguma forma, submetida às suas exigências. Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado (POLANYI, 1971 apud GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 124).

Assim, nas sociedades pré-modernas a economia existia no sentido substantivo, encontrava-se incrustada no tecido social, e ocupava um espaço limitado na vida dos sujeitos. Dessa forma, “a maior parte do espaço vital humano mantinha-se disponível sobretudo para a interação social, livre das repressões da organização formal” (GUERREIRO RAMOS, 1989). Tudo se altera quando falamos do período caracterizado pelo advento da sociedade de mercado, que desenvolve uma lógica própria de atuação, a fim de garantir sua autossustentação.

Fruto de uma sociedade centrada no mercado – ou mercadocêntrica, como denomina o autor – o critério econômico, de ethos instrumental e utilitarista invade os demais espaços sociais e se torna padrão da existência humana. Citando Marcel Mauss, Guerreiro Ramos (1989, p. 123) afirma que “somente as nossas sociedades ocidentais é que, bastante recentemente, transformaram o homem em um animal econômico”, uma vez que age a partir da racionalidade do sistema social hegemônico.

É dessa forma que, a teoria das organizações, por se prender quase unicamente a análise de organizações inseridas nesse sistema e se abster da análise acurada da variedade de sistemas sociais presentes no espaço macrossocial, corrobora uma abordagem reducionista dos sistemas sociais. (PAES DE PAULA, 2008)

A razão perde a perspectiva substantiva de sentido aristotélico, conectada aos valores e a ética e passa a atuar com uma conotação de cálculo e conhecimento absoluto das consequências. Em consonância com a versão do economista Herbert Simon:

O homem racional não se preocupa com a natureza ética dos fins per se. É um ser que calcula, decidido apenas a encontrar, com precisão, meios adequados para atingir metas, indiferente ao respectivo conteúdo de valor (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 122)

Fruto de um processo de “deformação” dos indivíduos por uma racionalidade que, ao eliminar a substantividade dos espaços sociais (e em consequência da vida humana), legitima o domínio exercido pelo mercado. Estes espaços são caracterizados pela presença de organizações no sentido formal ou burocracias – assim definidas por Max Weber – que, por conta de sua vinculação ao sistema social hegemônico, se tornaram padrão social fundamental, operando como perpetuadoras do mesmo. Elas são também responsáveis:

[...] pela insegurança psicológica, pela degradação da qualidade de vida, pela poluição e pelo desperdício dos recursos naturais do planeta, além de produzir uma teoria organizacional incapaz de ensejar espaços sociais gratificantes aos indivíduos (SERVA, 1997, p. 111).

Logo, seguindo a lógica unicamente instrumental como padrão de existência, as atuações das organizações formais devem estar pautadas em normas funcionais e racionais de conduta e comunicação, afim de garantir a impessoalidade. Nessa “máquina” organização, os indivíduos que a operam são engrenagens, facilmente substituídas (MORGAN, 1996). Dessa forma, as ações simbólicas relacionadas a significação das experiências e laços entre os indivíduos são descredibilizadas. Conforme o autor explana, “pontos como amor, confiança, a honestidade a verdade e a auto realização não deveriam estar incluídos no campo de ação da organização econômica” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 129).

Ainda de acordo com a racionalidade hegemônica operante nessas organizações, o autor reflete sobre a relação destas com os indivíduos. Ele parte da conceituação das atividades humanas baseadas na classificação existencial – ou nível de realização do indivíduo – diferenciando os conceitos de trabalho e ocupação:

O trabalho é a pratica de um esforço subordinada às necessidades objetivas independentes ao processo de produção em si. A ocupação é a prática de esnforços livremente produzidos pelo indivíduo em busca de sua atualização pessoal. (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.130)

O autor sustenta que, na consolidação do sistema de mercado, o trabalho – extremamente necessário ao mesmo – precisou ser resignificado na tentativa de se aliviar a tensão psicológica advindas do conflito entre as racionalidades. Uma reflexão mais detalhada se faz necessária para esclarecermos tal afirmação. No fim do século XVIII, durante a revolução industrial, a indústria surge como um novo componente do sistema de mercado. O ritmo de produção, antes artesanal, torna-se extremamente dinâmico e ditado pelo ritmo das máquinas. O artesão, passa agora a operário, sem o controle do processo de produção e refém de um trabalho mecânico e fragmentado.

[...] em tais circunstâncias espera-se do homem não que se ocupe adequadamente nem que se exprima livremente, em relação a tarefa que lhe foi designada; espera-se que ele trabalhe O homem é, portanto, essencialmente considerado apenas como componente de uma força de trabalho (GUERREIRO RAMOS, 1989, p. 133)

Com o decorrer do tempo o processo se elaborou e complexificou, mas ainda continua a serviço de uma racionalidade puramente instrumental. Os indivíduos passam a ser conhecidos e avaliados “em função de seu status e da sua performance na esfera do trabalho burocraticamente valorizado” (SERVA, 1997, p. 109).

Assim, segundo a lógica do sistema de preços, ou seja, na “contabilidade da produção” o trabalhador é classificado como um custo: o custo de mão de obra. Guerreiro Ramos (1989) destaca a importância do processo de socialização como forma de suavizar a tensão existente pelo domínio da racionalidade instrumental sobre os indivíduos. A transmutação da concepção de trabalho, agora vinculada a valores e a dignidade humana, passou a ser legitimada por filósofos e reformadores religiosos, adquirindo assim status de atividade superior.

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