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A crítica de Wittgenstein à introspecção

PARTE I – NOÇÕES PRELIMINARES: INSTROSPECÇÃO E O PLANO PARA

2. A crítica ao método introspeccionista de significação

2.2 A crítica de Wittgenstein à introspecção

De acordo com Marques (2007, p. 22), a via de uma metodologia introspectiva foi rejeitada por Wittgenstein desde os tempos do Tractatus. Nas Investigações Filosóficas, o filósofo

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Torna-se necessário um pequeno adendo relativo à filosofia tardia de Wittgenstein, sobretudo no que concerne à crítica do filósofo à introspecção. É importante destacar que a crítica de Wittgenstein à introspecção, i.e., que os significados possam ser elucidados por meio de um processo introspectivo do sujeito, não será aqui tomada como sendo a mesma crítica presente nos §§ 243-315; parte essa que tradicionalmente ficou conhecida como “argumento da linguagem privada”, na qual o filósofo critica a tese de que o significado de um termo é dado por meio de uma definição ostensiva privada. Esta última crítica, importante na filosofia tardia de Wittgenstein, será exposta mais adiante, especificamente na segunda parte da pesquisa.

pontua como um dos princípios norteadores de sua filosofia que “um ‘processo interior’ necessita de critérios exteriores” (IF, § 580). Conforme afirmado no capítulo anterior, Wittgenstein procura em seus escritos de psicologia obter uma visão panorâmica [übersehen] da linguagem a fim de solucionar problemas filosóficos tradicionais, tais como os problemas referentes à significação dos termos psicológicos. Por meio de tal visão seria possível conseguir uma análise dos diversos usos dos termos psicológicos e, assim, obter um parecer mais proveitoso de como os conceitos psicológicos adquirem sua significação.

Posto isso, alguém pode de antemão questionar a proposta de Wittgenstein (de obter uma visão panorâmica) do seguinte modo: a fim de facilitar a tarefa de evitar os equívocos provocados pelo variado uso dos termos mentais, seria a introspecção um método eficiente para se obter uma definição clara e correta dos conceitos psicológicos? De certo modo, caso seja a introspecção um método eficiente, não seria necessário ter uma visão panorâmica dos referidos conceitos; bastaria algum conceito ‘vir à mente’ e, em seguida, definir o que de fato tal termo ‘representa internamente’ para que então se tenha uma correta e única definição daquilo que o termo significa. Assim sendo, não existiriam variados usos para os termos psicológicos, mas sim um único - exclusivo e correto - que seria aquele representado e referenciado na mente do sujeito.

Entretanto, apesar de parecer à primeira vista ser uma boa alternativa à problemática dos termos psicológicos, tal visão possui suas limitações, o que fez com que Wittgenstein tecesse duras críticas em seus escritos ao método introspeccionista enquanto meio para definição dos termos na linguagem. Para o filósofo, a introspecção não pode oferecer definição alguma sobre nenhuma palavra, mas somente relatar algo sobre as vivências particulares (subjetivas) de alguém:

A introspecção nunca pode conduzir a uma definição. Ela pode apenas conduzir a uma declaração psicológica sobre aquele que realiza a introspecção. Se alguém diz, por exemplo, “Quando eu ouço uma palavra que entendo, creio que sempre sinto algo que não sinto quando não entendo a palavra” – esta é uma declaração sobre

suas vivências particulares. Um outro talvez vivencie algo totalmente diferente; e, se

ambos usam a palavra “entender” corretamente, é nesse uso que reside a essência do entender, não no que eles possam dizer sobre suas experiências (RPPI §212).

Nesse sentido, não seria a vivência particular proveniente da introspecção do sujeito que definiria o significado do conceito psicológico; o que definiria o significado seria o ‘como’ e ‘em quais circunstâncias’ as pessoas mencionam a vivência, i.e., em quais ocasiões as pessoas fazem uso do relato dessa experiência, falam sobre ela – mas nunca no sentido de definir o

que tal vivência realmente é internamente. Seria aí, no uso coletivo e ordinário da linguagem, que residiria a ‘essência’ do conceito psicológico.

“Que espécie de vivência é... ?” Não vamos perguntar “Como é quando VOCÊ a tem?” – pois uma pessoa poderia responder de um jeito, e outra de outro. Não se vai pedir a elas uma descrição da vivência, mas observar como e em quais circunstâncias as pessoas mencionam a vivência, falam sobre ela, sem que estejam querendo descrevê-la (RPPI §299).

Noutros termos, o que se pretende aqui dizer é que mesmo que o sujeito faça uso da introspecção para definir ou significar algum termo psicológico como, e.g., ‘saudade’, ele não vai conseguir mais do que relatar para ele mesmo uma vivência particular, algo que não poderá ganhar significado na linguagem unicamente pelo seu mero relato da vivência. O que importa na linguagem não é o que um sujeito ou outro sente ou compreende quando diz

saudade, mas sim o uso que o termo possui perante uma comunidade linguística específica.

Percebe-se que para Wittgenstein a introspecção nunca pode oferecer uma definição do termo para uma comunidade linguística e, por isso, não deve ser tomada como via de solução para os problemas referentes aos termos psicológicos.

Contudo, conforme salienta Budd (1993, p. 9), há ainda para Wittgenstein outro motivo pelo qual a introspecção não pode ser tomada como procedimento de abordagem viável para definição de, ao menos, alguns termos psicológicos. Tal impossibilidade se fundamentaria no fato de que nem todo termo psicológico possuiria uma referência somente a algum ‘estado da consciência’ (estado interno e/ou subjetivo), pois alguns termos referenciariam algo ‘a mais’ do que um estado da consciência como, por exemplo, uma relação entre estados de consciência e estados externos.

[...] There are many psychological predicates that do not designate a state of consciousness at all, or for which the intrinsic nature of what is before the mind is insufficient for the predicate to apply (as when the relation between the state of consciousness and something external to the state is relevant to whether the predicate applies) (Budd, 1993, p. 9).

Em outras palavras, o método introspeccionista necessitaria que a significação do termo psicológico mantivesse uma relação inseparável com a vivência particular que ocorre na mente do sujeito no exato momento em que o mesmo faz a introspecção. Porém, nem todos os termos psicológicos possuem essa relação inseparável e uniforme, o que por si só já invalidaria a introspecção enquanto método a ser utilizado, uma vez que o mesmo não seria capaz de dar uma visão panorâmica [übersehen] dos referidos termos e, consequentemente, uma representação panorâmica [übersichtliche Darstellung] do aparato linguístico que

envolve os termos psicológicos e os problemas filosóficos deles oriundos.

No entanto, é necessária aqui uma ressalva: de fato Wittgenstein possui uma atitude crítica perante a introspecção, contudo, conforme salienta Marques (2003, p. 22-23), deve-se entender aqui o conceito de introspecção como a atividade de representação de objetos existentes no interior do sujeito, objetos esses que poderiam ser designados privadamente,

i.e., objetos que ganhariam significado na linguagem de forma interna e privada.

[...] Mas o que pode significar: “dirigir minha atenção para minha consciência”? Não há nada mais estranho do que o fato de existir tal coisa!

(IF, § 412)

De acordo com Hacker (1990, p. 531-532), o §412 das Investigações Filosóficas revela uma posição extremamente negativa de Wittgenstein quanto à introspecção pois, para ele, a tentativa de descobrir a natureza da consciência por introspecção, por meio do “dirigir minha

atenção para minha consciência”, seria completamente irrelevante. Isso se dá uma vez que o

introspeccionista almejaria isolar a consciência em si mesma, o que seria impossível segundo Wittgenstein.

Questões sobre a natureza da consciência, tal como a natureza da representação mental [Vorstellung] (IF § 370), devem ser respondidas pela análise do uso da palavra ‘consciência’, pois a natureza do que seja consciência não pode ser mostrada ou definida ostensivamente. Isto se deve ao fato que o termo consciência, bem como representação e pensar, não são

fenômenos, mas sim conceitos: “Não analisamos um fenômeno (por exemplo, o pensar), mas

um conceito (por exemplo, o do pensar), e portanto o emprego de uma palavra” (IF, §383).27 O que parece estar claro é que o ato de analisar o que ocorre em nossas mentes enquanto pensamos em algo como, por exemplo, pensar, não nos torna mais claro o significado da mesma, mas tão só nos mostra o que ocorre enquanto pensamos algo.

Para tornar claro o significado da palavra “pensar’, observemo-nos ao pensar: o que observamos será aquilo que a palavra significa! – Mas este conceito não é usado desse modo. (Teríamos um caso semelhante se eu, sem conhecer o jogo de xadrez, quisesse, observando atentamente a última jogada de uma partida, descobrir o significado da palavra “xeque-mate”.) (IF, §316).

Conforme salienta Hacker (1990 p. 532), é ao tentar buscar a compreensão da palavra atentando para o que ocorre no cenário mental que o introspeccionista cometeria um grave

27 No original: “Wir analysieren nicht ein Phänomen (z. B. das Denken), sondern einen Begriff (z. B. den des

erro: ao atentar para a própria mente enquanto se introspecciona, faz com que o sujeito procure algo (um objeto) que na verdade não existe, dado que é um mero conceito.28

Hacker (1990, p. 532) diz que, por meio do processo instropectivo de significação, o que se procura é um pseudo-objeto. O erro aqui seria pensar que todas as palavras e conceitos possuem a mesma forma gramatical, i.e., possuem a mesma função na linguagem, conforme lembra Wittgenstein:

Não considere como evidente, mas sim como algo muito estranho o fato de que os verbos “acreditar”, “desejar”, “querer” apresentem as mesmas formas gramaticais que “cortar”, “mastigar”, “correr” (IF, ii, X).

Nos escritos posteriores ao Tractatus, principalmente naqueles que cercam e que foram escritos após as Investigações Filosóficas, nota-se que, para Wittgenstein, as palavras adquirem diversas funções na linguagem: a função das palavras não é somente designar objetos, referenciar algo, como afirmam as teorias referenciais do significado.29 É aqui que aquele que pretende dar uma definição por meio de uma introspecção também erra: ao pensar que a função da linguagem é referenciar um objeto, ele procura por meio do método introspectivo achar um objeto que corresponda ao conceito psicológico. 30

Ainda sobre a diversidade de funções das palavras na linguagem, tal como propõe Wittgenstein, deve-se salientar que, no que toca aos verbos e conceitos psicológicos, uma função adquire grande relevância: a função expressiva. É a função expressiva que está envolta dos conceitos psicológicos e que ganha, nos escritos sobre a filosofia da psicologia de Wittgenstein, um patamar notório, sobretudo quando o filósofo traça seu plano para o tratamento dos conceitos psicológicos, como será visto agora na seqüência.

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Esse ato de introspecção é semelhante ao trabalho proposto pelo filósofo William James (1842-1910) para definir a significação da palavra “si mesmo”. Em sua obra The Principles of Psychology [1890] William James propõe como tarefa fixar, por meio de um ato introspectivo, o modo como o núcleo central do ‘eu’ [the Self] pode ser sentido. Sobre isso, ele assinala: “In a sense, then, it may be truly said that, in one person, at least, the

‘Self of selves’, when carefully examined, is found to consist mainly of the collection of these peculiar motions in the head or between the head and throat. I do not for a moment say that this is all it consists of, for I fully realize how desperately hard is introspection in this field. But I fell quite sure that these cephalic motions are the portions of my innermost activity of which I am most distinctly aware” (JAMES, 2007, p. 301).

29 Sobre teorias referenciais do significado, vide nota 17. 30

Sobre isso, tem-se a analogia feita por Wittgenstein entre as funções das palavras e a caixa de ferramentas: “Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada:lá estão um martelo, um tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, cola, pregos e parafusos. – Assim como são diferentes as funções desses objetos, assim são diferentes as funções das palavras. (E há semelhanças aqui e ali) (IF, §11).

3. O PLANO PARA O TRATAMENTO DOS CONCEITOS