• Nenhum resultado encontrado

1 TEORIA POLÍTICA FEMINISTA, AUTONOMIA E CONSTRUÇÃO DE

2.2 A criação dos Juizados Especiais Criminais

direcionada para a ampliação das condições para que as mulheres denunciassem os agressores e expusessem a violência e os conflitos intrafamiliares.

noção de delito de menor potencial ofensivo ignora, também, a escalada da violência doméstica e seu grau de ofensividade.

No âmbito das delegacias, havia três posicionamentos contrastantes. As/os defensoras/es da Lei se baseavam na agilidade processual, não se preocupando com a satisfação da mulher ou com a coibição da violência. Aquelas/es que se contrapunham à aplicação da Lei aludiam à ineficácia da coibição da violência, ante a predominância da conciliação e da transação – que não importam reincidência, apenas impõem limitações com relação ao cumprimento da pena imposta e quanto ao impedimento de nova transação durante cinco anos –, à banalização da violência, representada pela “mercantilização das penas” de multa ou cestas básicas, ao benefício ao agressor, em prejuízo da satisfação das mulheres, que tinham a sensação de impunidade etc. Para as/os partidárias/os da posição intermediária, em que pese a agilidade do procedimento dos JECrims, a transação ou a conciliação seriam insuficientes para reprimir a violência (MACHADO, 2010, p. 53-55).

Já no campo do Judiciário, muitas/os juristas evidenciavam a ambiguidade entre a conciliação pelas partes, que afastava a interferência punitiva do Estado e autorizava a aplicação de penas alternativas à prisão, de um lado, e a natureza marcada por relações de poder da violência doméstica contra a mulher, de outro. Cerca de 70% dos casos conduzidos pelos JECrims referiam-se à violência doméstica contra a mulher. Desses, 90% eram arquivados após as audiências de conciliação (MATOS; CORTES, 2011; CAMPOS;

CARVALHO, 2006), de modo que o tratamento conferido pelos Juizados “acabava por estimular a desistência das mulheres em processar seus maridos ou companheiros agressores e, com isso, estimulava, também, a ideia de impunidade presente nos costumes e na prática que leva os homens a agredirem as mulheres” (BASTERD, 2011, p. 27-28).

Ainda que parte das mulheres não desejasse a punição dos agressores por meio do encarceramento23, mas “coibir a continuidade dos atos violentos, através da introdução de uma voz que fale ao agressor em nome do poder público” (MACHADO, 2010, p. 50), os JECrims provocavam uma insatisfação generalizada nas mulheres. Afinal, a conciliação era pensada predominantemente em termos de composição de danos materiais, não em medidas capazes de garantir a segurança das mulheres e diminuir a violência. Ainda, a renúncia à representação e o consequente arquivamento dos processos – proveniente ora da ausência de conciliação, ora da ausência de danos patrimoniais, ora da ausência de condições econômicas

                                                                                                               

23 Nas DEAMs, constatou-se que muitas mulheres denunciavam os agressores, mas, dificilmente mantinham a queixa. Para Pinto (2003, p. 82), as mulheres pretendiam que o órgão policial chamasse o agressor, para que ele se comprometesse a abandonar o comportamento violento.

do agressor de reparar o dano – era um fenômeno recorrente, que demonstrava a ineficácia da prestação jurisdicional em proteger as mulheres (CAMPOS, 2003).

As audiências da Lei 9.099/95, que previam a presença da/o Magistrada/o, do membro do Ministério Público, da defesa, da vítima e do agressor, pareciam restabelecer o equilíbrio rompido pela violência da relação conjugal e capacitar a vítima “em condições e potencialidades de fala” (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 415). Essa expectativa sofre uma quebra com a introdução da composição civil e da transação penal, conforme asseveram Campos e Carvalho (2006). Em relação ao primeiro instituto, isso se dá pela assimetria das relações de poder. A livre manifestação da vontade da vítima seria tolhida pela violência do agressor e, consequentemente, inexistiria a igualdade de condições necessária à composição civil. Sobre o segundo instituto, a vítima resta excluída da discussão, pois não tem a oportunidade de opinar sobre as condições aplicadas ao agressor.

Por conseguinte, “a forma de aplicação dos novos institutos acaba renovando a disputa conjugal em desfavor à vítima, devolvendo o poder ao autor de violência” (CAMPOS;

CARVALHO, 2006, p. 416). Essas considerações nos permitem afirmar que a presença das mulheres nas audiências dos JECrims não representou um reconhecimento institucional da sua competência autônoma, pois, na prática, os institutos despenalizadores suplantavam, em larga medida, a possibilidade de exercício da autonomia. Ademais, a insatisfação generalizada, representada pelo percentual elevado de arquivamentos, denotam a despreocupação do sistema judicial em oferecer respostas que se coadunassem com as expectativas específicas de cada mulher e, principalmente, assegurassem o seu direito à segurança.

As oportunidades demasiado restritas de manifestação das mulheres, bem como a desconsideração das suas aspirações, deixam os JECrims a meio caminho de uma perspectiva abstrata sobre a autonomia – que não apenas ignora as implicações da violência de gênero, mas presume erroneamente que os mecanismos existentes são suficientes e adequados para o exercício da autonomia das vítimas – e uma perspectiva que anula a autonomia das vítimas, pelos meios indiretos da composição civil e da transação penal. Ainda que a inserção dos conflitos conjugais no Poder Judiciário tenha um significado simbólico relevante para a mulher agredida (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 415), o desabono da perspectiva de gênero, em última análise, distancia os JECrims tanto da concepção substantiva de autonomia quanto da concepção neutra em relação ao conteúdo.

Portanto, a categorização dos crimes de lesões corporais leves e de ameaça como de

“menor potencial ofensivo”, assim como os mecanismos conciliadores típicos dos JECrims, se contrapõem à visão feminista que almeja o reconhecimento (social e institucional) da

gravidade da violência contra a mulher. O fato de o paradigma adotado pela Lei 9.099/95 não ser informado pela compreensão social sobre as relações entre os gêneros trouxe obstáculos intransponíveis na sua operacionalização. O que ocorria, na prática, era “o arquivamento massivo dos processos, a reprivatização do conflito doméstico e a redistribuição de poder ao homem, mantendo-se a hierarquia e a assimetria de gênero” (CAMPOS, 2003).

O primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), de 1996, ao incorporar o Programa Nacional de Combate à Violência Doméstica e Contra a Mulher, contribuiu para a consolidação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. Esse Programa estava organizado em torno de quatro eixos: “coordenação de ações ministeriais, reformulação legal, fortalecimento do aparelho jurídico-policial e campanhas de sensibilização da opinião pública” (BONETTI et. al., 2009, p. 228).

As ações levadas a cabo nesse período incluíram o auxílio para a construção e custeio de casas-abrigo para mulheres vítimas de violência em situação de risco; a capacitação de agentes de segurança pública; debates sobre o impacto dos JECrims no combate à violência contra a mulher; a realização de seminários e de campanhas de sensibilização (“Uma vida sem violência é um direito nosso”, “Sem as mulheres, os direitos não são humanos” etc.) (BONETTI et. al., 2009, p. 228). Houve, também, o repasse de recursos para ONGs que prestassem assistência à mulheres em situação de violência, capacitassem lideranças, promotoras legais populares e agentes multiplicadores de prevenção à violência.

A inserção do programa Combate à Violência contra as Mulheres no Plano Plurianual do governo federal para o quadriênio 2000-2003, sob responsabilidade do CNDM e, posteriormente, da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (Sedim), fundada em 2002, inaugurou a efetiva institucionalização das políticas de enfrentamento da violência do ponto de vista orçamentário. O foco desse programa foi a destinação de recursos para a implantação e manutenção de casas-abrigo para as vítimas de violência, articulada aos investimentos em políticas já existentes, como a ampliação e capacitação de agentes das DEAMs, incluindo profissionais da Defensoria Pública da União, do Ministério Público e dos IMLs, além da realização de pesquisas sobre as condições de funcionamento, os serviços prestados e o perfil das mulheres atendidas.

A Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) surgiu em 2003. Em 2004, a Secretaria lançou o Plano Nacional de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra as Mulheres, o qual tinha um novo recorte. Atendendo às demandas do movimento feminista, o foco deixou de ser a criação das casas-abrigo, para tornar-se a consolidação da política de fomento às redes de atendimento – que prestariam variados serviços – e da inauguração de

Centros de Referência em atendimento à mulher em situação de violência. No mesmo ano, após a realização da I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (CNPM), foi organizado o I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM).

Uma das conquistas do I PNPM foi a criação do serviço Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, entre fins de 2005 e o início de 2006. Somente no ano de 2007, foram registrados mais de duzentos mil atendimentos, dos quais mais da metade envolveram o encaminhamento a serviços da Rede (BONETTI et. al., 2009, p. 232).

A segunda e, talvez, principal conquista, foi a formulação do anteprojeto da Lei que seria promulgada em meados de 2006, a chamada Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que institui mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Essa Lei resultou de décadas de luta do movimento feminista brasileiro, que buscava ver incorporada na legislação a compreensão de que a violência doméstica contra a mulher não pode ser dissociada da hierarquia entre os gêneros.