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3.4 A crise permanente

Já há muito, a crise deixou o lugar da eventualidade para se tornar uma presença constante, recorrente e persistente; relativamente contidas durante as primeiras décadas do pós-guerras, as crises passaram a ser parte do cotidiano mundial.

A década de 1970 acompanhou as crises do petróleo e foi também palco de uma crise na cidade de Nova York, que acabou por fornecer um laboratório para a estratégia neoliberal. Em 1980, foi a vez das dívidas do terceiro mundo, além da recessão norte-americana. Na década de 1990,

fizeram parte ainda os “tigres asiáticos”, a Rússia, o México, a Argentina – esta última profundamente abalada ao ingressar nos anos 2000. 2001 assiste aos fortes impactos da queda do índice Nasdaq, onde se negociam papéis das empresas de tecnologia. O final dos anos 2000 expõe a crise no centro da principal potência capitalista mundial, à qual se segue a crise da União Europeia, com as dívidas soberanas de seus Estados-membros, sucedida, por sua vez, pela crise de países exportadores de matérias- primas depois de um ciclo em que esses gêneros experimentaram uma alta de preços jamais vista.

A crise, portanto, não se encerra, mas é deslocada setorial e geograficamente, e irrompe a todo instante:

O capital, conclui, nunca resolve suas tendências a crises, simplesmente as contorna. Faz isso num duplo sentido, de uma parte do mundo para outra e de um tipo de problema para outro. Nesse sentido, a crise que eclodiu principalmente no mercado imobiliário do Sul e Sudoeste dos Estados Unidos (juntamente com os do Reino Unido, Irlanda e Espanha) teve impactos nos mercados financeiros de Nova York e Londres, antes de “tornar-se global” e ameaçar o comércio mundial em quase toda parte (depois de passar pelos bancos islandeses, Dubai World, a falência da Letônia, o desastre do orçamento da Califórnia e as crises de dívida grega e, em seguida, irlandesa). Embora alguns sistemas bancários nacionais, como os da Irlanda, Portugal e Espanha, que vão ou poderão necessitar de mais ajudas do Estado, dado o elevado volume de ativos tóxicos que restaram dos booms fictícios do mercado imobiliário que precederam a crise, o sistema financeiro global parece estabilizado por um conjunto de intervenções do governo. O efeito tem sido passar o peso da crise dos bancos para a divida estatal. Na América do Norte e Europa, a resposta a crescente dívida do Estado tem sido propor e implementar medidas draconianas de austeridade para reduzir a dívida, cortando os serviços estaduais e ameaçando o bem-estar publico. (HARVEY, 2011, p. 211)

Quando o mundo se depara com a grande crise de 2008, muitas de suas tentativas de explicação a partir dos defensores da ordem vigente atribuíam o colapso a elementos externos como a irresponsabilidade de agentes econômicos, erros de projeções matemáticas e fraudes contábeis. Outros, ainda, viram seu componente fundamental na desregulamentação excessiva do setor financeiro e no elevado grau de liderança que este assumiu nos processos econômicos mundiais, defendendo que uma nova

etapa virtuosa do capitalismo mundial poderia ser engendrada pelo retorno da primazia do capital produtivo e pela reconstituição dos compromissos keynesianos em torno de um Estado de bem-estar social.

Contudo, a crise atual, na qual as modalidades de capital fictício possuem centralidade, é a crise permanente do capital em suas desesperadas “fugas para a frente”. É, mais do que efeito de externalidades ou de abalo de liderança hegemônica da fração de classe do mundo das finanças, a forma de expressão e movimento de uma contradição estrutural.

Nesse sentido, István Mészáros, discípulo húngaro de György Lukács, que na virada para o século XXI publica Para além do capital, sustenta o caráter estrutural da crise que atinge o que chama “sistema sociometabólico do capital” – articulado entre capital, trabalho assalariado e Estado –, que ingressa num processo crescente de “produção destrutiva” (cf. MÉSZÁROS, 2007, p. 129-133).

Segundo Mészáros, o descolamento entre necessidades e produção da riqueza, inerente ao domínio do capital, não pode mais se sustentar indefinidamente, mesmo entre os países centrais, não se podendo afirmar que “em momento apropriado”, dar-se-ia conta da satisfação das necessidades elementares da grande maioria dos habitantes do planeta. Baseada numa teorização sobre a relação necessária entre ciência, produção e tecnologia – que desconsidera a importante temática dos processos de alienação –, as visões sobre a eternização do capital e seu “dinamismo” esbarram na constatação de que essa forma societal ocupa “apenas alguns poucos séculos na história humana, e estabelecer sua permanência absoluta requer muito mais do que as asserções, que se confundem com desejo, de seus defensores (Idem, p. 605).

É nesse contexto que Mészáros formula, partindo da teoria do valor de Marx, sua concepção da produção destrutiva, em que o capital, movimento contínuo de valorização do valor, passa a viver um estágio no qual a oferta se torna tendencialmente superior às demandas e os preços ganham viés de baixa, numa das expressões da lei marxiana da queda tendencial das taxas de lucro, provocando as crises de superprodução.

Assim, como comenta Sérgio Lessa, para que o circuito da reprodução do capital continue operando, vão-se criando complexos sociais que têm na perdulariedade sua principal característica: “Das guerras mundiais às guerras 'localizadas', da produção de alimentos ao mundo fashion, da produção de remédios aos produtos culturais [...]. Se a abundância não for convertida em carência pela destruição, o sistema do capital não poderá mais se reproduzir” (LESSA, 2009, p. 12).

Esta modalidade particular da reprodução social “transforma suas potencialidades positivas em realidades destrutivas” (MESZÁROS, 2005, p. 614).

O avanço representado pelo estágio capitalista de desenvolvimento produtivo é um “retrocesso real se considerado em relação ao seu impacto na dialética de necessidade e produtividade”, ao quebrar a relação previamente prevalecente, removendo não apenas as “determinações limitantes da produção orientada-para-a-necessidade, mas simultaneamente também a possibilidade de controlar as tendências destrutivas que emergem da dominação total da qualidade pelos imperativos da expansão quantitativa ilimitada do capital” (Idem, p. 615). Considerando que a forma capitalista da produção de riqueza tem fundamento na relação de extração do mais-valor, a crise atual já não pode ser resolvida pela expansão da riqueza, ao passo em que todo “o potencial libertador da produtividade crescente é dissipado e nulificado pelo crescimento cancerígeno dos 'falsos custos' de controle a serviço da dimensão exploradora” (Idem, p. 618).

Como Mészáros observava à época, o cenário em que mais de um bilhão de pessoas tinha que sobreviver com menos de um dólar por dia “não melhorou nem mesmo com as estratégias barulhentas, mas pateticamente inadequadas, de 'modernização' e 'ajuda econômica'” (Idem, p. 632).

O contexto de queda tendencial das taxas de lucro é enfrentado, pelo capital, de modo a transformar cada vez mais o “trabalho vivo” em supérfluo, alterando a chamada “composição orgânica do capital”, por meio de um investimento crescente em capital fixo (máquinas e equipamentos) em detrimento do capital variável (salários), expulsando grande contingentes do mercado formal de trabalho.

É nesse quadro que a “'ciência econômica' apologética subitamente descobre que a expulsão do trabalho é um problema estrutural, e começa a falar de 'desemprego estrutural'”, esquecendo-se, contudo, de que o “desemprego em massa é estrutural somente para o capital, e não para o avanço do processo de produção em si” (Idem, p. 674).

Um outro sintoma da crise reside na relação cada vez mais intensa entre as necessidades de realização do capital e o complexo industrial- militar, não somente pelas vultuosas quantias envolvidas nos orçamentos militares das potências mundiais – indissociável do processo global de acumulação –, mas também pela participação dos Estados como elementos organizadores das demandas em tais setores.

Dessa forma, mesmo nos países em que o peso do complexo militar-industrial local na economia nacional é pequeno, “a contínua

expansão produtiva das economias nacionais em questão não pode ser separada da importância global da produção militarista no que se refere à sua aparentemente incurável dependência da economia norte-americana e do preponderante complexo militar-industrial no seu interior” (Idem, p. 687).

Diante da peculiar relação observada entre produção e consumo, Mézsáros, muito antes do fatídico ano de 2008, já observava que as crises do capital, ainda que temporariamente debeladas internamente ao sistema, “não são radicalmente superadas em nenhum sentido, mas meramente 'estendidas', tanto no sentido temporal como em sua localização estrutural na ordenação geral”, exibindo “características de uma crise cumulativa, endêmica, mais ou menos permanente e crônica, com a perspectiva última de uma crise estrutural cada vez mais profunda e acentuada” (Idem, p. 697-698).

Desfaz-se, a partir daí, o argumento liberal segundo o qual o Estado se constitui como entrave aos processos de acumulação – que, de resto, não se observou sequer ao tempo em que Habermas e outros caracterizaram por “era do capitalismo liberal” –, para desvelar sua condição de centralidade:

Na época de Mandeville, a grande preocupação, no que se referia ao papel do Estado, como vimos, era usar seu poder, no interior do país, de modo que a “propriedade fosse bem assegurada” e que “o pobre fosse estritamente posto a trabalhar”; internacionalmente, a intenção era sustentar as forças do capital em seu empreendimento de expansão colonial, no interesse da riqueza crescente das “grandes nações ativas”. Hoje a situação é radicalmente diferente. Não com relação aos objetivos de “garantir a propriedade” e “pôr o pobre estritamente a trabalhar”: enquanto sobreviverem o modo de produção capitalista e seu Estado, eles têm de permanecer como propósitos permanentes do sistema. A diferença radical é visível no fato de que o Estado capitalista precisa agora assumir um papel intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo ativamente o consumo destrutivo e a dissipação da riqueza social em escala monumental. Sem esta intervenção direta no processo sociometabólico, que age não mais apenas em situações de emergência mas em base contínua, torna-se impossível manter em funcionamento a extrema perdulariedade do sistema capitalista contemporâneo. (MÉSZÁROS, 2005, p. 700)

Ainda nessa linha, a crise de 2008, sustenta Grespan (2009), não foi um fenômeno fortuito associado a escolhas ruins de agentes públicos e privados, devendo ser compreendida como processo sistêmico que deita raízes na década de 1970, quando se inicia um período de investimentos estagnados, recuo das taxas médias de lucro e desvalorização do capital.

Desde a década de 1980, com a dificuldade em restaurar a lucratividade haurida das esferas produtivas, as massas de capital excedente deslocam-se constantemente, fomentando a formação das chamadas bolhas especulativas, em um contexto no qual o processo característico de “valorização do valor” pelo capital se dá sobre bases cada vez mais estreitas. Assim,

A competição, antes restrita ao conjunto dos capitalistas envolvidos diretamente com a produção de mais-valia, ocorre agora incluindo os demais setores da economia: independentemente do setor e de empregar ou não trabalho produtivo, o capital investido receberá uma parte do todo de acordo com sua magnitude, multiplicada pela taxa média de lucro válida para toda a economia (no limite, mundial). (GRESPAN, 2009, p. 15)

Também para Reinaldo Caracanholo (2009), a expansão sem precedentes dos movimentos especulativos registrada desde o fim da década de 1970 não pode ser compreendida como desvio ou defeito do sistema como um todo, mas como uma tentativa de enfrentamento da tendência de queda das taxas de lucro.

Não basta, contudo, definir a crise em função da sobreacumulação. A atual etapa do capitalismo é presidida pela insuficiência do capital produtivo na geração dos excedentes capazes de satisfazer os processos de “valorização” financeira.

As baixas históricas de rentabilidade foram enfrentadas com a fuga para as dinâmicas do capital fictício, como se viu, em um processo especulativo crescente, favorecido pela quebra dos acordos de Bretton Woods, pelas políticas de endividamento externo e, posteriormente, pela “titulização” das dívidas dos Estados.

A partir da década de 1980, contudo, ocorre a recuperação das taxas de lucro nos principais países capitalistas. Como explicar tal fenômeno, pergunta-se Carcanholo, se a expansão do capital especulativo observou uma escala maior que a do capital produtivo?

A resposta reside em dois fenômenos:

Por um lado, com a política neoliberal já no início dos anos 80, cresceu em todo o mundo o grau de exploração do

trabalho, via mais-valia absoluta e relativa, além da superexploração tanto do trabalho assalariado quanto do que não o é. A política neoliberal e a menor expansão do capital produtivo foram fatores que determinaram uma elevação do desemprego formal, facilitando o aumento da exploração. Por outro, e como fenômeno fundamental para entender a presente crise, atuaram fortemente os lucros fictícios como fator contrarrestante da tendência decrescente da taxa de lucro. (CARCANHOLO, 2009, p. 53)

Os lucros fictícios mencionados correspondem a uma fonte de incremento do volume daquilo que Carcanholo chamou capital fictício do tipo II – conforme classificação exposta no segundo capítulo deste trabalho –, surgindo como efeito da especulação em torno do preço de ativos e do crescimento das dívidas públicas, principalmente daquelas contraídas em função da necessidade de refinanciamento das dívidas anteriores. Também os gastos militares, quando viabilizados por meio do crescimento do endividamento público, induzem a formação de capital fictício.

Desse modo, “a mais-valia transforma-se em lucros fictícios e, ao lado dessa criação de capital fictício novo, o restante do valor produzido converte-se também, como por mágica, em capital fictício de tipo II”. (Idem, p. 52-53).

A fuga para a esfera fictícia, contudo, não pode ser replicada eternamente, e a tendência de resultado das contradições desse processo, pela ótica de Carcanholo, é a de uma exploração ainda maior da força de trabalho e por todo o globo.

4 UMA ESPERANÇA EQUILIBRISTA: A CONSTITUIÇÃO