• Nenhum resultado encontrado

As formas das superestruturas – em nosso caso, a democracia

- devem obrigatoriamente corresponder a seu ser social. É por

essa razão que tentamos analisar aqui a democracia (ou mais precisamente a democratização, pois se trata principalmente e

segundo seu próprio ser, de um processo e não de um estado).

George Lucaks

Se os efeitos urbanos da política econômica da ditadura nos anos 60 e 70 são as razões do ressurgimento e fortalecimento de movimentos populares relacionados com a cidade e a moradia, o longo processo da democratização do país é o contexto geral em que se inscreve a constituição do projeto da Reforma Urbana de cunho popular. Imaginado como o fim de um ciclo histórico nacional em que se combinaram repressão militar e controle da organização dos trabalhadores (SAES, 2001), superexploração do trabalho e expansão capitalista (ALVES, 1984), crescimento populacional e aumento das desigualdades sociais nas cidades (MARICATO, 1996a), a democratização acenava com liberdades ‘amplas, gerais e irrestritas’ e prometia dias melhores para toda a nação. Tudo indica que a crise econômica internacional, os conflitos internos nas Forças Armadas e o colapso da legitimidade política do regime militar (KINZO, 2001) contribuíram para reforçar o papel e a visibilidade dos movimentos sociais de contestação à ditadura, fazendo do final dos anos 70 um período decisivo para o esgotamento do regime militar no Brasil. Naquela época, a oposição ao governo parecia atingir todas as classes sociais, levando as Forças Armadas a programarem a longa distensão e a abertura políticas, comandadas pelos dois últimos ditadores, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Pelo final do período Geisel, portanto, o Estado sofrera acentuado declínio de sua legitimidade política, moral e legal, evidenciado na oposição declarada e cada vez mais enérgica do Congresso, da Igreja, da imprensa e dos advogados. Por outro lado, as crescentes dificuldades na aplicação do modelo econômico, a inflação descontrolada e a gigantesca dívida externa fizeram aderir a esta frente consideráveis setores da burguesia nacional, que passaram a exigir maior participação nas decisões econômicas. (ALVES, 1984, p. 318)

Movimentos particulares no sentido da democratização da vida nacional são iniciados por diferentes classes e frações de classe, que obedecem aos canais de expressão próprios e disponíveis para cada uma delas, e se estendem ao longo da primeira metade da década de 80. O movimento popular, que se faz presente nas fábricas, sindicatos, bairros e favelas, em um processo de construção coletiva de espaços e plataformas comuns, provoca articulações, alianças e conversões dentro e fora dos partidos políticos, com ações dirigidas para a reconstrução dos canais políticos de expressão e organização.

Penosamente, na brecha das próprias contradições da expansão capitalista poderosamente ajudada por esse quase fascismo, as classes sociais dominadas voltaram a reconstruir a política. Pondo por terra e inviabilizando a política salarial do governo e, com isso, sua capacidade de previsão e aglutinação do novo e poderoso bloco burguês, recuperando entidades antes sob intervenção e, engenhosamente, encontrando formas de, ao enfrentar diretamente os grandes grupos econômicos, obrigando-os a acordos salariais, evitando, assim, a tutela do Ministério do Trabalho que permanecia meramente formal. (OLIVEIRA, 1999, p. 64)

Ainda que tais movimentos sejam os mais visíveis no cenário daquele período, o grande capital é obrigado a acompanhar os novos tempos que se aproximam e, no sentido de defender seus interesses, tão privilegiados durante o regime militar, buscam aproximação ou reforçam identidades com seus representantes políticos que, para a oligarquia rural, vão se configurar na União Democrática Ruralista, UDR, e, para o empresariado urbano, sob a forma do Movimento Democrático Urbano, MDU, pois durante a ditadura, as burguesias “não apostaram em nenhum partido político, mesmo os de sustentação do regime autoritário”. (OLIVEIRA, 1990, p. 49)

Ultrapassando o sistema de partidos, as burguesias construíram um sistema paralelo, parapolítico, que aglutina mais que os partidos políticos; e a partir do qual estruturaram sua ação política. A organização mais conhecida desse sistema paralelo é a denominada União Democrática Ruralista – UDR, que aglutina os novos empresários agrícolas do complexo agroindustrial e conseguiu o apoio dos pequenos e médios proprietários, temerosos da reforma agrária anunciada desde os primeiros anos da Nova República. (OLIVEIRA, 1990, p. 50)

A democratização assume, assim, diferentes objetivos para cada uma das classes envolvidas e, com a gradativa normalização dos procedimentos democráticos, cada uma delas coloca nos ombros dos seus representantes políticos e nos canais de diálogo com o Estado a tarefa da defesa e negociação daquilo que manterá ou modificará suas condições de dominação e privilégio. Apesar do clima de otimismo que tomou conta do país e das esperanças renovadas com o anunciado fim do regime dos militares – que passam a encarnar simbolicamente a razão exclusiva de todos os males nacionais, passados e presentes, escamoteando-se neste ambiente seus parceiros do capital financeiro, industrial e agrário - e início de um longo e controlado processo de distensão política29, a democratização da vida nacional não foi um jogo de regras iguais para todas as classes sociais do país.

Como de resto tem ocorrido em outros momentos de nossa história, a democratização que se iniciou com a restauração do governo civil não foi o produto de uma ruptura com a antiga ordem. Isto implica que a reconstrução do sistema político deu-se através de acomodações e do entrelaçamento de práticas e estruturas novas e antigas, combinação esta que estruturou as opções e estratégias seguidas pelos principais atores do processo político (KINZO, 2001)

Na verdade, tal ambiente se configurava como “um aspecto fundamental da luta ideológica no Brasil” naquele período, na qual setores sociais formadores de opinião vinham “procurando convencer as diferentes classes sociais de que o Estado ditatorial estaria se transformando, pela via de um processo evolutivo, num Estado democrático” (SAES, 2001, p. 33). Deste ângulo, “no ponto de partida do processo”, haveria uma configuração de interesses que determinaria “múltiplos e heterogêneos objetivos políticos”:

A grande burguesia monopolista (nacional ou estrangeira) e o latifúndio apóiam a ditadura militar, bem como sua política, a classe média liberal luta pela redemocratização do Estado e do regime político, a média burguesia nacional espera que a própria ditadura reoriente a sua política econômica numa direção nacionalista e anti-monopolista, as classes trabalhadoras urbanas e rurais se chocam abertamente com a política social e salarial da ditadura militar e, indiretamente, com o caráter ditatorial militar da forma de Estado e do regime político. (SAES, 2001, p. 46)

Confundindo conjuntura com estrutura, muitos apostaram em mudanças que estavam comprometidas por questões que iam além de um regime de exceção e tinham sólidas raízes na própria essência do capitalismo “à brasileira” e que foram,

29

Muitos autores, como Alves (1984) se referem à ingerência das Forças Armadas, mantida sobre a democratização – “estreitamente controlada pelo regime militar” (FRANÇA, 2208) - como um “protetorado militar sobre governos civis” (SAES, 2001:69), “transição pelo alto” (BOSCHI, 1990) e “transição conservadora” (CHAUÍ, 1986, p. 54).

em última análise, aprofundadas pela gestão dos militares. As intensas e sólidas relações, firmadas durante os vinte anos da ditadura, com o capital monopolista internacional e seu papel no fortalecimento dos capitais nacionais se articulavam intimamente com uma burocracia estatal30 de perfil tecnocrático, mas que soube manter relações clientelísticas com lideranças regionais e locais, renovando os laços históricos do “moderno com o arcaico”, o que de certa maneira, representava uma atualização do “poder do atraso” (MARTINS, 1994), pois no “modelo brasileiro, ao contrário do ‘clássico’, sua progressão não requer a destruição completa do antigo modo de acumulação” (OLIVEIRA, 2003:65), o que lhe determina uma “especificidade particular” que

consistiria em reproduzir e criar uma larga “periferia” onde predominam padrões não-capitalistas de relações de produção, como forma e meio de sustentação e alimentação do crescimento de setores estratégicos nitidamente capitalistas, que são a longo prazo a garantia das estruturas de dominação e reprodução do sistema (OLIVEIRA, 2003, p. 69).

A conseqüência mais grave destas questões foi a pouca atenção dada às mudanças na forma do Estado que, a partir da ideologia da Segurança Nacional e do Desenvolvimento (ALVES, 1984), mas principalmente no próprio processo político e econômico real do período ditatorial, havia resultado em novas relações entre o aparelho burocrático estatal e as diversas classes sociais que compunham a sociedade civil, dentro daquele objetivo maior do Estado burguês de “organizar a hegemonia de uma fração da classe dominante no seio do bloco do poder e desorganizar os produtores diretos com vistas à luta contra a exploração do trabalho”. Embasada no tripé “segurança interna, geopolítica e modelo econômico de desenvolvimento” a ideologia da Segurança Nacional e do Desenvolvimento, foi construída durante 25 anos no interior da Escola Superior de Guerra sob inspiração

30

Como burocracia estatal, consideramos a “burguesia nacional de Estado: os agentes da cúpula da burocracia estatal que controlavam as empresas públicas dos setores de mineração, industrial, bancário, de serviços urbanos etc.” (BOITO Jr.,2003). Apesar da “coincidência entre os interesses da classe capitalista e os do aparelho do Estado”, para Martins (1985, p. 37), há um antagonismo nas relações do Capital com seu Estado, devido à autonomia política deste último, posição contrabalançada por ser vedado ao Estado “organizar a produção por critérios políticos próprios”, bem como por depender “indiretamente do volume de acumulação privada”, pois “dela variam os recursos materiais que o Estado dispõe”. Porém, na atualidade, “a ampliação da inserção do Estado no aparelho de produção e no setor financeiro, através de empresas e agencias financeiras estatais, dotou o Estado de uma base própria de acumulação”, condição que permite ao Estado ampliar o poder político da burocracia e fortalecer “seu embasamento social, sobretudo “em situações nas quais é precariamente estruturado o sistema de representação de interesses da sociedade civil” (MARTINS, 1985, p. 39-40).

norte-americana como uma das formas de enfrentamento da guerra fria (ALVES, 1984, p. 33-48). Ela representa um projeto de abandono das práticas do populismo – que “correspondeu, na América Latina, a uma fase histórica de transição para o capitalismo”, quando a mobilização das massas pelo Estado era necessária para “diminuir a instabilidade política decorrente....da crise crônica de hegemonia no seio do bloco do poder “ -, que perde validade histórica frente à preponderância política dos interesses monopolistas (SAES, 2001, p. 77-78). Entretanto, como veremos mais adiante, tal qual uma fênix, o populismo parece ressurgir das cinzas e, ainda recentemente, tem sido uma prática de sucesso nas relações do poder político com as camadas populares.

Desta forma, a reconstituição da hegemonia de uma fração de classe no interior do Estado e o regime de força, implantado em 64, levaram à celebração de novas formas de gestão e intervenção estatal, nas quais a tecnocracia passará a ter papel relevante como legitimação do autoritarismo, que se propõe colocar o Estado acima das classes, em nome do “interesse nacional”, mas que surge devido à relação entre capital monopolístico internacional, capitalismo de Estado e capitais nacionais e sua complexa rede de funcionamento e ampliação. Para Oliveira, na “utilização do fundo público”,31 “na sustentação da expansão do capital e na sua permanência” (OLIVEIRA, 1990, p. 63) e como, na prática, tais fundos se multiplicam em uma “multidão de particularismos”, o governo tem que constituir “quadros técnicos que estão no centro da criação e administração da relação especial de cada capital com o fundo público em geral” (OLIVEIRA, 1990, p. 63). No vazio da esfera pública e comparativamente com outras sociedades, as “associações de todos os tipos das classes médias, profissionais ou cientificas”, vão assumir “o número, a extensão e a importância que têm no Brasil” (OLIVEIRA, 1990, p. 64), fazendo com que o programa do candidato Franco Montoro ao governo de São Paulo tenha sido realizado “por estas associações, constituídas então no Movimento dos Profissionais Liberais Democráticos”. Como “um superego”, que procedia ao controle do desempenho de “medidas mensuradas pelo metro da competência técnica de

31

Fundo Público, “aquilo que é obtido pelo Estado sob a forma de tributos”, tendo que ser gerido “de acordo com aquilo que tanto a Constituição como a vontade dos representados exige”, fazendo com que a questão republicana e a questão democrática passam pelo modo como se define e se decide a direção que vai ser tomada pelo fundo público”, sendo no liberalismo “dirigido para os investimentos do capital”, ao invés de lhe ser dado “uma destinação social (CHAUÍ, 2008).

agentes técnicos da não-esfera pública, toda sua oposição ao regime se reduziu a menos ideológico e mais programático”. (OLIVEIRA, 1990, p. 64)

O verdadeiramente surpreendente no caso brasileiro é a ‘importância política’ das classes médias, quase sem paralelo não apenas no que diz respeito a qualquer outra sociedade do nível econômico do Brasil, mas sem paralelo também em relação às economias mais desenvolvidas do mundo capitalista. (OLIVEIRA, 1990, p. 62)

Como veremos mais adiante, este fenômeno da relevância política da pretensa neutralidade da capacidade técnica das classes médias, constituído e consolidado pela ditadura militar, terá influências sobre os movimentos populares urbanos, durante a democratização e o processo constituinte, da mesma maneira como contribuiu, tecnicamente, para reduzir o projeto da RU de 63 a uma operação financeira para o capital imobiliário, permitindo que sua política urbana se apresentasse como uma forma de legitimação do regime via discurso social (VILLAÇA, 1986, p. 65). Principalmente, vale atentar para o status adquirido pelos setores técnicos em uma relação privilegiada de diálogo com o executivo e o legislativo e que, consolidado pelo caráter do regime militar, se estenderá durante a transição. Diálogo que vai se pautar pelo domínio de conhecimentos técnicos e científicos específicos e que, mais do que orientar decisões racionais, irão justificar interesses políticos e econômicos com base no discurso tecnocrático. Neste sentido, vale rever a análise, verdadeira premonição, de Francisco de Oliveira, sobre o papel das classes médias no processo de democratização do país:

A posição das classes médias é, portanto, central no que concerne aos rumos da economia e à democratização. Se ficarem restritas ou intentarem transformar seus interesses materiais no leitmotiv da política econômica, funcionarão reforçando a internacionalização extrovertida no que ela tem de pior: a desigualitária distribuição de renda. Se fizerem de seu papel central de juiz das medidas da regulação “truncada” a expressão de sua presença na política, tenderão a uma democratização conservadora (OLIVEIRA, 1990, p. 65).

E do ponto de vista do urbano, especificamente, o que é possível constatar naquele período? Após dez anos da instauração do regime militar, já era possível identificar a profundidade das alterações negativas nas condições de trabalho e moradia das classes trabalhadoras brasileiras, comparativamente com aquele cenário em que surgiu e se embasou o SHRU do início dos anos 60. Um trabalho realizado para a Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, denominado “São Paulo 1975, Crescimento e Pobreza”, tomando como referência a mais dinâmica cidade do país – maior centro industrial e comercial,

capital do Estado que concentrava 35,6% da Renda Interna do Brasil em 1969 e 19% da população nacional, o rendimento por habitante era quase duas vezes maior que no restante do país (SÃO PAULO, s/d, p. 13) – o estudo demonstra que a “pujança econômica de São Paulo em relação a outras áreas do Brasil”, revelada “tanto na enormidade de sua infra-estrutura... como em qualquer dos indicadores habitualmente empregados para medir o crescimento econômico”, ficava demonstrado “o elevado e crescente desnível entre a opulência de uns poucos e as dificuldades de muitos”. (SÃO PAULO, s/d, p. 17)

É a distância entre a riqueza, representada nas moradias suntuosas dos ‘jardins’, e a pobreza dos bairros de trabalhadores, carentes dos serviços urbanos básicos – transporte, água, esgoto, habitação. É o contraste entre o crescimento do consumo de bens de luxo e a diminuição do salário mínimo real (SÃO PAULO, s/d, p. 17).

Na constituição desta realidade, a pesquisa já mostrava como eram determinantes “as condições em que se exerce o trabalho” e o papel da “remuneração que determina o acesso aos bens e serviços à disposição dos habitantes da cidade” (SÃO PAULO, s/d, p. 22), expondo claramente as conseqüências desta superexploração capitalista sobre o território urbano e a configuração, ainda não formalizada teoricamente, entre a cidade legal e a cidade ilegal:

O agravamento dos problemas que afetam a qualidade de vida da população de São Paulo não atinge a cidade em geral. Sobretudo a partir das últimas três ou quatro décadas, surgem e se expandem os bairros periféricos que, juntamente com os tradicionais cortiços e favelas, alojam a população trabalhadora. É nessas áreas que se concentram tanto a pobreza da cidade como a de seus habitantes (SÃO PAULO, s/d, p. 23).

Os dados são eloqüentes: na região metropolitana, apenas 30% dos domicílios são servidos pela rede de esgoto e 53% da rede de água, índices mais graves, porém, na capital, com 41,3% dos domicílios desprovidos de esgoto e 52,4% sem água. Quando concentrados na periferia, a proporção se torna alarmante, com apenas 20% das casas com rede de esgoto e 46% com água (SÃO PAULO, s/d, p.26). Os números relativos destes dados tornam clara a localização espacial da desigualdade, quando apresentados de forma absoluta: calculada em 130 mil pessoas, a população favelada apresenta um crescimento de 80% em apenas dois anos (1975, p. 37), quantidade que deve ser somada aos moradores de cortiços (615 mil) e de casas precárias em periferias (1,8 milhão), todos relativos apenas à cidade de São Paulo. Expulsos das áreas centrais pelas políticas de segregação,

justificadas por razões higienistas de princípio do século, e cada vez mais afastados de toda e qualquer região que fosse valorizada através dos investimentos públicos em serviços e infra-estrutura, os trabalhadores passam a enfrentar também o calvário das viagens urbanas, obrigando “os usuários que moram” na periferia a “permanecerem de 3 a 4 horas nos veículos que os levam ao trabalho e trazem de volta para casa” (SÃO PAULO, s/d, p. 33). A este desgaste físico e comprometimento do tempo livre dos trabalhadores, há que adicionar as condições físicas em que se dão aquelas viagens:

De um lado, o transporte individual: são os grupos abastados, possuidores de automóveis, cuja média de ocupação é de 1,2 pessoas por veiculo. De outro, o transporte de massa apoiado em 7 mil ônibus – mais os 1.500 de empresas inter-municipais – que transportam diariamente 6,8 milhoes de passageiros, carregando nos veículos, o dobro da lotação máxima prevista. O transporte ferroviário de subúrbio, por sua vez, conduz 900 mil passageiros por dia; é o cotidiano dos ‘pingentes’, ou seja, 700 usuarios que, duas vezes por dia, abarrotam uma composição que não deveria receber mais de 300 passageiros (SÃO PAULO, s/d, p. 33).

Ainda que apenas de passagem, o trabalho questiona a presença da ideologia tecnocrata que, por trás da declaração do então Prefeito da cidade, Figueiredo Ferraz – defendendo o slogan “São Paulo deve parar” -, anunciava ser possível resolver o déficit de serviços e obras públicas diminuindo o crescimento urbano:

O exercício de imaginação proposto, o de que o controle do crescimento da cidade tornaria possível disciplinar seus problemas, tendia a atribuir ao próprio desenvolvimento, ou à sua rapidez, os incômodos sofridos pela população (SÃO PAULO, s/d, p. 21).

Frente a esta realidade, que teimava em se fazer presente no espaço urbano e contestar a ideologia do Desenvolvimento e da Segurança Nacional, era inevitável a atração de setores da academia, motivados por diversas intenções. A proliferação de estudos sobre as cidades brasileiras – cerca de duzentos trabalhos listados por Valladares (1983), produzidos ao longo de 1970 e nos dois primeiros anos da década de 80 -, é um indício seguro do novo lugar que a questão urbana passa a ocupar nas preocupações da academia naquele período e parece apontar para a mudança de enfoque das análises sobre a realidade social e política do país, campo “onde o elitismo alcançou o êxito supremo de inibir a criação de uma história social e de escrever uma história política que teve sempre a ‘virtude’ de ‘esquecer’ os movimentos populares”. (WEFFORT, 1978, p. 11)

A mudança de direção é óbvia. A moradia dos mais pobres passa da prateleira dos assuntos policiais à da temática de interesse social. Os investigadores não são mais os homens do censo. São planejadores, que em lugar de supostos dados “objetivos”, declararam preferir sistematizar questões e dúvidas. Não se trata mais de estatísticas, mas de geração de informações vivas que ajudem a formular “políticas globais de desenvolvimento social e melhoria da qualidade de vida de comunidades carentes”. (SANTOS, 1984, p. 28)

Ainda que seja possível identificar, nos trabalhos produzidos, diferentes ideologias e suas correspondentes estratégias que, diversamente, buscam a assimilação ou a autonomia dos movimentos frente ao Estado, é importante assinalar, no processo que dá visibilidade e caráter político à questão urbana, o surgimento de um vínculo entre os intelectuais das classes médias e os movimentos populares e que vai influenciar, através de valores ideológicos dos intelectuais, a organização e as relações com o Estado por parte dos movimentos populares.

Documentos relacionados