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A Cruzada contra a “má imprensa” e a leitura não orientada

4. CONTRA A “MÁ IMPRENSA” A “BOA IMPRENSA”: OS DISCURSOS

4.2. A imprensa e a leitura nas páginas da A Cruzada

4.2.1. A Cruzada contra a “má imprensa” e a leitura não orientada

O discurso da Igreja Católica sobre a leitura repousava na argumentação de que o estrito controle da escrita não era apenas um direito, mas o seu dever. A responsabilidade de escolher entre as publicações o que poderia ser lido pelos católicos, era do clero, constituído por eruditos que, por sua formação e pelo convívio mais direto com os dogmas religiosos, estavam aptos a guiar a leitura dos leigos, pois não se contaminavam com as más doutrinas, ou se deixavam levar pelos métodos e persuasão retóricas empregados nesses escritos. (CHARTIER; HÉBRARD, 1995) A preocupação esteve primeiramente ligada a circulação de concepções contrárias ao catolicismo e a moralidade cristã em livros.

O tema é frequente nos sermões das missões e capítulo obrigatório nas inumeráveis “instruções cristãs” impressas para os que vivem no mundo secular e para os alunos dos colégios. É bastante simples: muitos livros – a maior parte – são livros maus, porque contradizem os dogmas ou porque contrariam os bons costumes. Portanto, a leitura é sempre uma prática perigosa e, ao ler sem tomar certas precauções, os cristãos põem em perigo sua salvação. Entregues ao prazer cultural e social de partilhar o texto impresso, não percebem a estranha força da escrita (Fabre, 1985, p. 182–206) e acreditam poder escapar às armadilhas da sua argumentação e aos artifícios das suas figuras; pensam poder dissociar o prazer da leitura da influência do texto lido. (CHARTIER;HÉBRARD,1995,p.21)

Com o desenvolvimento das técnicas de impressão, maior acesso, e mais baratos em relação aos livros, jornais e as revistas passaram a figurar como objetos de denúcias da Igreja. (CHARTIER; HÉBRARD, 1995). A partir desse posicionamento, A Cruzada se lançou no combate contra a “má imprensa”, caracterizada pelos títulos declaradamente anticlericais, os que se posicionavam enquanto neutros e davam espaço para publicações que atacavam a presença da Igreja na sociedade brasileira e as publicações ligadas a outras religiões que lutavam pelo campo religioso do país. A definição de Rosário Farani Mansur Guérios publicada na edição bimestral agosto/setembro de 1930, qualificava periódicos que formavam a “má imprensa”:

Mau jornal é o que combate francamente a Jesus Cristo e a sua Igreja. Jornal neutro

é aquele que não fala de Jesus Cristo nem da sua Igreja. [...] O mau jornal e o jornal

neutro pertencem à má imprensa, pois que, o primeiro, por ser declaradamente mau,

é condenável, e o segundo, o que é neutro é virtualmente mau, pois Nosso Senhor Jesus Cristo assim o disse: - “Quem não é por mim é contra mim.” (GUÉRIOS, ago./set. 1930, p. 134)

Observamos que os artigos dedicados ao combate da imprensa anticlerical, eram estruturados a partir do discurso da necessidade de controle e alerta constantes por parte da Igreja Católica. Em vista disso, os enunciados das publicações eram marcados pela repetição dos argumentos construídos sobre o assunto. A cada nova edição os postulados que já haviam sido veiculados anteriormente eram reafirmados, como podemos verificar em outro texto:

A imprensa ímpia ataca nossas crenças, nossas leis mais sagradas, nossa moral, nossos brios... É pois peccado grave, favorece-la. A imprensa licenciosa, sob o fallaz pretexto de arte e literatura, adula e alimenta as mais vis paixões, os instinctos depravados, e zomba da delicadeza christã. É, pois, peccado favorece-la. A imprensa leviana, ao tratar tudo com dilettantismo, affectando o sceptecismo, vae habituando o leitor ao gosto do veneno dissimulado nas doses do espírito chistoso que toma as apparencias do galantismo. É, pois, peccado favorece-la. A imprensa neutra, que equipara a verdade e o erro, sob pretexto de imparcialidade nada diz a favor dos nosso direitos, liberdade e ideal, como se cala perante erros flagrantes. É, pois, peccado, favorece-la. (X, mar. 1929, p. 2)

Favorecer a imprensa irreligiosa com a compra e a assinatura de suas edições era um dos principais erros. Todos os leitores, mas principalmente os católicos, não deviam entrar em contato com essas publicações, pois existiam periódicos sadios, ligados à Igreja e que auxiliavam na edificação e salvação de suas almas, portanto, seu investimento financeiro devia ser voltado para a “boa imprensa”.

Em março de 1927, comemoração do primeiro aniversário da revista, os textos enfatizavam a importância do papel que A Cruzada estava exercendo no estado do Paraná. O

destaque era a instalação de uma tipografia própria, mas também apresentava as dificuldades que enfrentadas em seu ano inaugural. A matéria O nosso primeiro aniversario salientava as festividades e cerimônias religiosas ocorridas em louvor a data comemorativa, como a benção das novas máquinas tipográficas pelo arcebispo Dom João Francisco Braga e pelo Cônego Alcidino Pereira, do Centro da Boa Imprensa, sem esquecer de uma nota acerca da dualidade das versões sobre a imprensa enquanto veículo do mal e do bem. (O NOSSO PRIMEIRO ANIVERSARIO, mar. 1927)

Veiu a ser a imprensa, por consequência, o vehiculo do bem e do mal. Mais do mal que do bem – hão tanto abusado dessa sábia e vantajosa invenção [...] A machina de imprimir amolda-se a qualquer desejo de seu dono – se este é ruim, cousa ruim produz. Nunca se ouviu dizer que uma boa faca haja tornado bom um cozinheiro mau. (O NOSSO PRIMEIRO ANIVERSARIO, mar. 1927, p. 6)

Como apontado na citação acima, a concepção da revista era que a imprensa se moldava enquanto veículo do mal, quando os indivíduos que estavam em seu controle eram portadores de pensamentos considerados ruins. O vocabulário empregado na referência aos autores que publicavam naqueles veículos para disseminar más doutrinas era marcado pela agressividade:

Nessas revistas indecentes e gazetas perniciosas, os torpes mensageiros da luxúria

vomitam as fezes que lhes enchem os corações e o cérebro, - ora em forma de

quadrinhas ridículas, ora em contos detestáveis, já em figuras obscenas, já em traços maliciosos e dizeres dúbios, - e tudo isso vai devorado com sofreguidão por crianças e jóvens de ambos os sexos, e até por cavalheiros e matronas que passam por sisudos aos olhos da sociedade, ocultando na carranca ou entre as comissuras dos lábios a maldade insigne que lhes transborda do íntimo. (NUNES, ago. 1926, p. 101; grifos

nossos)

Há em algumas livrarias certas obras e revistas asquerosas, imundas, onde os olhos incautos do christão dão com feias caricaturas que infiltram na alma impurezas e baixos sentimentos. São seus autores individuos que se deleitam na lama, como suinos

sôfregos de imundicie. (DALLEGRAVE, abri. 1927, p. 36, grifos nossos)

Não se deve tratar no jornalismo somente de confraternidades; mas também de discussão, de luctas, de combates. Os que desejam que tudo na imprensa se resuma a cumprimentos e lisonjas, não nasceram para essa difficil e nobre esgrima [...]. (VEUILLOT, fev. 1929, p. 307)

O excerto acima foi escrito pelo francês Luiz Veuillot (1813-1888), um dos principais jornalistas da imprensa católica no mundo, e que “desde a sua conversão [...] forjara para si uma imagem de contendor incansável da modernidade sob todas as suas formas: política, moral, literária, religiosa [...].” (LAGRÉE, 2002, p. 46). O trecho da obra do autor transcrito pela A Cruzada, refletia a posição de que a luta contra a “má imprensa” não devia ser resumida em

palavras lisonjeiras, mas sim, baseada em uma escrita mais enérgica como contra-ataque às injúrias produzidas por seus oponentes em letra de forma.

Após o esclarecimento da presença e da circulação da “má imprensa”, vinha o tratamento das consequências que as “más leituras” acarretavam para a sociedade. Em nossa análise, conseguimos verificar que o problema da leitura não orientada pela Igreja, refletia na desmoralização de vários setores da sociedade, mas a ênfase dada era para a formação da mocidade, que resultava diretamente na desestruturação das famílias.

A Cruzada era um periódico dirigido e escrito, principalmente, por jovens e seu público leitor também estava dentro dessa faixa etária. Em vários artigos, os autores falavam diretamente para a mocidade e buscavam apresentar encaminhamentos para a sua formação religiosa, profissional e familiar. Compreendida como uma fase decisiva na constituição das consciências e das escolhas para o futuro, a revista entendia que era seu dever alertar sobre os perigos da sociedade moderna e dar direcionamentos a juventude católica.

Na edição de outubro de 1927 foi publicado um diálogo entre um médico e uma mãe, que estava aflita pela mudança de comportamento de seu filho:

- Que idade tem seu filho? - 16 annos Dr. De uns seis mezes para cá ficou tão nervoso, tão colérico que não supporta a mínima observação. Por qualquer contrariedade irrita- se e quebra tudo quanto lhe está no alcance... Pouco se alimenta e tem o somno agitadíssimo. As vezes nem dorme, fica lendo na cama. - Que lê elle? - Não sei Dr., pois meu filho já tem seus 16 annos; é um moço e não precisa mais, segundo diz, que se lhe escolha os livros e as revistas. – Gravíssimo erro minha senhora [...]. (DR FELICIO, out. 1928, p. 158)

A revista argumentava que os jovens ainda não possuíam maturidade suficiente para discernir dentre os livros e periódicos disponíveis no mercado, quais seriam as boas escolhas que não acarretariam em malefícios para sua formação. Por esse motivo, era necessário que os pais tutelassem seus filhos e, não permitissem em suas casas a entrada de impressos direcionados contra a religião, defendessem más doutrinas ou fossem leituras pornográficas.

José de Sá Nunes publicou, em janeiro de 1927, um artigo destinado a mocidade e que falava sobre a amizade. O autor destacava que os jovens deviam ficar atentos aos seus círculos de amigos, e que uma das primeiras perguntas ao se fazer a uma nova amizade, era se a pessoa professava a religião cristã/católica. Se a resposta fosse negativa, o contato com a pessoa devia findar-se. Também questionava: “Já prestaste atenção às suas conversas? Já vistes os livros, as revistas e os jornais que leem? Já descobriste os seus gostos e predilecções?” (NUNES, jan. 1927, p. 191; grifos nossos). Manter uma relação de amizade com leitores de maus livros, era considerado um passo para se deixar influenciar e passar a confabular contra a religião.

Como mencionamos anteriormente, os membros da Igreja haviam identificado que um dos principais desafios para o catolicismo no país era o da ignorância religiosa, que assolava a população em geral. Sem seguir corretamente a doutrina católica, os indivíduos haviam se deixado contaminar por manifestações de religiosidade popular, além de seguir práticas de outras religiões, como o espiritismo. Para alterar tal situação, era necessário esclarecer pontos dos dogmas católicos e a imprensa foi uma das principais armas para esse processo. (MARCHI, 2011)

Com relação à ignorância religiosa, Nemo com o artigo Virulenta enfermidade, discorreu sobre a chamada clerofobia, caracterizada como o horror que alguns indivíduos tinham quanto aos religiosos e a Igreja Católica. O artigo apontava os escritores que criticavam o catolicismo, como portadores daquela enfermidade, e sem conhecer realmente a religião, se dedicavam a combatê-la. Por esse motivo, alertava aos jovens que “Conhecer o catholicismo através de uma literatura nojenta e ímpia é conhecer um catholicismo irreal e phantastico, um catholicismo adulterado e deturpado.” (NEMO, mar. 1927, p. 16) Para Nemo, era necessário conhecer a religião, mas era imprescindível que os católicos atentassem para os títulos e as referências que recorriam para o seu estudo. Em vista disso, A Cruzada destinou algumas de suas páginas para a indicação de livros considerados de leitura sadia e que traziam ensinamentos religiosos.

Mas não era só a imprensa periódica e os livros ligados a concepções anticlericais, como o comunismo, o anarquismo, a maçonaria, que eram rechaçados pela Igreja Católica. A literatura de ficção também se configurava como perigosa, principalmente os romances. A leitura dos livros desse gênero era considerada prejudicial, uma vez que suas histórias, geralmente, exaltavam as paixões, sentimentos exacerbados e, em alguns casos, chegavam a ser pornográficos. (CHARTIER; HÉBRARD, 1995). Sobre essa questão A Cruzada publicou o seguinte:

E romances? Não lhes demos importância pois os melhores só têm a vantagem de impedir que leiamos os peiores. Quanto mais não vale a vida de qualquer Santo? Basta-nos recordar que as vidas dos Santos ensinam sempre o bem, e os romances ainda os mais inoffensivos, têm quase como elemento essencial certos enredos, que ao menos para pessoas innocentes têm os gravíssimos inconvenientes de lhes ensinar o mal, e de as acostumar a leituras levianas. (E ROMANCES? ago. 1929, p. 183)

Ao analisarmos A Cruzada como um manual de civilidade (CHARTIER, 1994), compreendemos que seus artigos, para além de informar sobre eventos religiosos, também buscavam formar o leitor a partir da moralidade católica, daí o cuidado de indicar as formas

consideradas corretas e seguras para a prática da leitura. Antes de apontar o que e como os católicos deviam ler, era necessário identificar quais leituras deveriam evitadas.

Frente ao discurso dos malefícios provocados por muitos periódicos e livros, a Igreja denunciava, como grave, a existência de leitores, geralmente fracos e com frequência ingênuos, que se deixavam influenciar facilmente pelo que liam. (CHARTIER; HÉBRARD, 1995). Por esse motivo, alguns clérigos se dedicaram a escrever manuais de leitura, com a listagem de livros recomendados ou condenados.

Diante do oceano de publicações presentes e futuras, que pode fazer o leitor católico? Os princípios propostos pela autoridade hierárquica o convenceram de que é preciso escolher, ou melhor, muitas vezes, abster-se. Mas como escolher? Para responder a essas perguntas legitimas o abade Bethléem se empenha em uma tarefa que parece a

priori sobre-humana: recensear tudo o que é ou já foi publicado, para fazer uma

avaliação “de um ponto de vista católico”, de modo a constituir um guia útil para as famílias, para os educadores ou para os simples leitores (e sobretudo leitoras). Com esse objetivo, o abade funda em 1908 Romans-Revue, mensário que teria uma longa vida. (CHARTIER; HÉBRARD, 1995, p. 62)

No Brasil também circularam publicações com essa finalidade e a de maior destaque foi a obra Através dos romances: guia para as consciências um livro de censura aos romances, do Frei Pedro Sinzig, um dos fundadores do Centro da Boa Imprensa. O guia foi publicado pela Editora Vozes, em 1915. Na edição de 1923, o manual foi formado por pequenos verbetes com comentários sobre 21.553 livros de 6.657 escritores brasileiros e estrangeiros. Tendo como critério a moralidade católica, Sinzig dividia os livros analisados em:

1) livros recomendados, bons, de leitura sã, que obedecem perfeitamente a esses preceitos; 2) livros recomendados, mas com ressalvas, “que não prejudicam o leitor adulto sensato que o lesse por algum justo motivo”, embora ofereçam perigo, se lidos indiscriminalmente; 3) os livros perigosos, cuja leitura é veneno para as almas de seus leitores [...]. (PAIVA, 1997, p. 65)

Na A Cruzada, o foco estava nas recomendações de livros de temática católica, mas em alguns momentos a revista nomeou títulos que não deviam ser lidos por seus assinantes. Como foram os casos de La Garçonne, de Victor Margueritte, apresentado como uma obra “artificial e imunda” (OS MAUS LIVROS E A SUA INFLUENCIA, abri. 1927), e Cruz de Caravaca, que em 1927 estava em sua sétima edição e era vendida em várias livrarias. O autor desse livro não é mencionado em nenhum momento, apenas a natureza da obra, que misturava orações do cristianismo com “superstições e mandingas do paganismo.” (PESCADOR, jun. 1930).

É um volume de orações! e que orações! ridículas a toda a prova! Para amostra tomemos sómente este tópico, de uma dellas, para provar o que dizemos. Lemos á página 38: “São Marcos me marque, São Manso me amanse.” Além de ser ridícula pela forma e da oração, o é ainda mais, por ser supersticiosa. (PESCADOR, jun. 1930, p. 89)

Os jornais, revistas, folhetos, livros, enfim, todas as produções impressas deviam louvar, ou pelo menos, respeitar a religião, e o uso apologético da escrita era considerado o “[...] único legítimo, pois convém tudo relacionar a Deus.” (CHARTIER; HÉBRARD, 1995, p. 21). Segundo o discurso da Igreja, a qualquer momento, o uso da imprensa podia ser desviado dessa função edificante e tornar-se parte da “má imprensa”.

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