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BRINCADEIRA DE GENTE GRANDE

3.1 A Cultura E A Materialidade

Quando os sujeitos encaram um produto cultural, são afetados tanto pela presença que se tem diante dele quanto pela mensagem que se interpreta a partir dos signos que ele possui. A complexidade que uma experiência cultural oferece, para Gumbrecht (2010), está na relação entre a presença e o sentido que se tem diante de “algo do mundo”. A presença, contudo, é a única a evocar o sentido quando se está diante de uma experiência, e nunca o contrário, isto porque o que valida uma experiência é compartilhar um espaço com um produto cultural ou alguma coisa do mundo. É a partir deste espaço compartilhado, que nos permite estar diante de algo, que os sujeitos podem evocar suas significações, que dinamizam a leitura deste algo.

É importante atentar que compartilhar um espaço com algo não necessariamente quer dizer estar no mesmo lugar físico. Dividir a presença física com uma produção cultural é o tipo mais primordial de entrar em contato com um produto da cultura, existe desde que há cultura. A nossa estrutura social, bem como o desenvolvimento da tecnologia eletroeletrônica, nos possibilita ambientar outros tipos de espaços que não são espaços físicos, o que é o caso dos Mediscape (DI FELICE apud APPADURAI, 2008), que são ambiências midiáticos (que, portanto, não se desenvolvem em um território físico) em que o espaço é compartilhado entre sujeitos, a cultura, a mídia e a produção cultural midiática.

Este tipo de espaço possibilita a transferência de cultura, de histórias, de informações, de linguagem, de comportamento e até

de valores entre seus habitantes. Quando um sujeito se depara com o exagero na animação, que Denis (2010) explica ser uma das características históricas que pode identificar as animações dentro do Cinema, se sente familiarizado com o exagero como característica de animações. Há algo de concreto dentro da concepção da animação, algo que a identifica, uma estrutura. Esta estrutura é algo que seu público já vivenciou tantas vezes no mediascape que já não é capaz de gerar estranheza e, pelo contrário, gera familiaridade. Isto porque, no espaço do mediascape, existe uma alfabetização cultural (MEYROWITZ, 1994) pela qual as pessoas têm que passar para se adequarem à mensagem proposta em sua produção. Ao assistir televisão pela primeira vez, uma criança identifica uma mensagem que não está em sintonia com a mensagem que a emissora propõe.

Isto porque é a criança não possui de antemão o conhecimento das estruturas dos programas de televisão. É necessário que ela seja educada tanto na gramática televisional, quanto na gramática cultural exibida para que se tenha um afinamento maior entre a proposta da mensagem e aquilo que a criança entende da produção cultural nela exibida.

Aquilo que é material, estrutural e concreto dentro de uma produção cultural é aquilo que ela divide com tantos outros títulos de seu gênero. Ver Bojack Horseman evoca no espectador uma série de materialidades estruturais de outras produções do mesmo gênero e que são, de fato, estruturantes para Bojack Horseman. Evocar esta materialidade em uma produção, para Gumbrecht (2010), é evocar a presença, ou seja, é a capacidade que um produto cultural tem de produzir presença, além da óbvia produção de sentido. É por isso que o autor afirma que “alguns ‘efeitos especiais’ produzidos hoje pelas tecnologias de comunicação mais avançadas podem revelar-se úteis no re-despertar do desejo de presença” (GUMBRECHT, 2010, p. 15).

O que propõe Gumbrecht (2010) é que dos elementos que geram interpretação, há elementos estruturantes na composição dos artefatos culturais que são interpretáveis por não ser este o tipo de atenção que se deve dar para eles. Para o autor, há uma dimensão de comunicação material dentro de toda produção cultural, que é aquilo que é resgatado de títulos outros de seu gênero e no contexto cultural do qual emerge.

Esta materialidade é o que se espera que os sujeitos identifiquem de imediato, pois faz parte do postulado do artefato cultural, é sua estrutura, o que é fixado sobre seu gênero, que garantiu - garante - sua repetição ao longo da história, e sua identificação enquanto produto cultural. Ou seja, há uma dimensão de comunicação que é material e,

por ser material, é concreta e objetiva dentro de qualquer produção cultural, ou “‘Materialidades da Comunicação’ [...] ‘são todos os fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido, sem serem, eles mesmos, sentido’” (GUMBRECHT, 2010, p. 28).

As estruturas culturais do cotidiano dos sujeitos inspiram a materialidade para produzir um produto midiático que tenha a capacidade de conversar com os sujeitos de fato. É este movimento, comunicacional, que atribui a produção de presença não apenas de técnicas de animação em Bojack Horseman, mas também, sendo uma animação para kidult, atribui à série a presença da cultura que é vivenciada pelo seu público-alvo e vai além, se inspira e contribui com esta cultura.

A produção de presença acontece em Bojack Horseman em dois momentos: quando a série propõe utilizar de características já cristalizadas na linguagem animação, o exagero, a nostalgia, a violência, o antropomorfismo e o nonsense, de acordo com os apontamentos de Denis (2010); e quando o viés cultural é evocado na série por meio da imagem do sujeito pós-moderno (HALL, 2005) e de retratos de seu cotidiano. Quem assiste à série recorrentemente é levado a presenciar novamente características que já presenciou em outros momentos, em outras animações, ou em situações de seu cotidiano. Isto instaura à série duas qualidades de gramática: uma de animações e outra de cultura.

O ato de produzir presença só é possível porque existem estas gramáticas. Como Meyrowitz (2001) bem nos recorda, para que a mensagem midiática seja captada, é necessário que o espectador seja alfabetizado em sua gramática. Só é possível entender a personagem de Bojack, que é um cavalo antropomorfizado, pois o antropomorfismo faz parte da história das animações (DENIS, 2010), portanto, de sua gramática. A linguagem de animação disposta em Bojack Horseman carrega consigo toda a herança de todas as animações já produzidas até então.

A gramática e a linguagem da série são fatores tão importantes que é por intermédio delas que se conecta a abordagem cultural à animação. Isto porque não são apenas as características históricas da animação que devem ser aprendidas por seus espectadores como premissa para acompanhar a série, mas também as características culturais. Como Bojack Horseman é um produto da abordagem pós-moderna de cultura, quem assiste à série deve estar íntimo com questões culturais envolvidas por esse paradigma, caso contrário há perdas no sentido captado na narrativa.

A utilização de conceitos como a propagação do lifestyle jovem, por exemplo, se destina a quem participa desta maneira de se viver em seu cotidiano, caso contrário não haveria produção de presença e, por conseguinte, familiarização com este aspecto da série. A produção de presença só é possível porque a série é destinada a um público que possui proximidade com as características do kidult, que quando diante da série, migra até uma presença que aconteceu em algum momento de seu passado e reforça a presença que está diante de si.

Nossa metodologia é fundamentada na concepção das materialidades culturais presentes em Bojack Horseman, uma vez que elas colocam o espectador em contato com o plano da presença, em que estão contidos os conceitos que consolidam a identidade cultural kidult e as características e técnicas que estão cristalizadas na linguagem de animação que abordadas pela série estudada. Para tanto, selecionamos recortes na série que nos ajudam a discutir os conceitos que abordamos neste trabalho, com a finalidade de procurar entender como são executados numa linguagem de animação. A partir destes recortes, que podem ser estruturais ou situacionais, refletimos como é que a série Bojack Horseman aproxima sua linguagem de animação do espectador kidult.