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2.4. Circuito de investigação

3.1.1. A cultura que se fez tradicional

Diante deste contexto apontar uma cultura tradicional em Rondônia só é possível em contraste com outras bases culturais que se fixaram na região após a constituição das primeiras populações. É sob esta perspectiva que se busca mostrar aqui as práticas de ribeirinhos e seringueiros, principalmente, mas também de uma variada gama de grupos que se fixaram em Rondônia desde o século XIX, predominantemente. A característica primeira desses grupos é a forma de se relacionar com o ambiente em que se viram colocados por contingências sócio-históricas bastante específicas, como já explorado.

Na região onde está Rondônia não há uma população nativa – com exceção dos povos indígenas, o que será tratado adiante – ou mesmo cabocla ali constituída. O que houve foi a transposição de população nordestina, e de outras como no caso daqueles pertencentes às diversas nacionalidades que participaram da construção da Estrada de Ferro Madeira- Mamoré, para um novo ambiente onde suas próprias bases culturais precisaram ser

reorganizadas para garantir a sobrevivência. São estes grupos que passam a constituir, a partir do olhar lançado por imigrantes ainda mais recentes, a população tradicional de Rondônia.

O nordestino feito ribeirinho, agora habituado ao corte da seringa, com a caça e a pesca, quase que exclusivamente para subsistência, apropria-se de novas práticas, estas por sua vez aprendidas no contato com habitantes da Amazônia chegados antes, e com a população indígena. E neste novo ambiente, pleno de novas práticas cotidianas, a floresta se impõe como o principal elemento a ser apreendido. A proximidade inevitável com a mata e com os rios, e a distância de qualquer núcleo urbano, fazem o homem amazônico depender da natureza, e isso leva ao surgimento de representações míticas dos elementos com os quais convive em tamanha intimidade.

Diante da floresta e dos rios o homem percebe-se apenas mais um elemento, um dos menores deles, e por isso deve respeitar os ciclos impostos pela natureza. É esta a postura do ribeirinho quando das cheias e vazantes, e frente à selva. O seringueiro, por exemplo, tem sua casa numa clareira aberta à margem do rio, e este passa a constituir o seu domínio. O limite entre o seu terreiro e a mata é claro, pois lá é território dos seres da floresta, que têm suas próprias leis. Entrar na mata significa entrar neste outro mundo, maior que ele, e que apenas parcialmente entende, e por isso deve submeter-se. Há uma relação de reciprocidade, pois se de um lado tira algo da mata, o faz com respeito e observando as regras por ela impostas. A floresta representa para o ribeirinho, e para todos aqueles que dela dependem, vida e morte, num ciclo interminável. A floresta que morre transforma-se em nova floresta, e tudo o que está ali faz parte de um todo que deve ser mantido em equilíbrio (YAMAGUCHI, 1969).

É esta também a percepção de Paes Loureiro (2001) ao dizer que ao depender do rio e da floresta o homem usufrui esses bens, mas também os transfigura nas trocas e traduções que se mostram na cultura.

Há, no mundo amazônico, a produção de uma verdadeira teogonia cotidiana. Revelando uma afetividade cósmica, o homem promove a conversão estetizante da realidade em signos, por meio dos labores do dia-a-dia, do diálogo com as marés, do companheirismo com as estrelas, da solidariedade dos ventos que impulsionam as velas, da paciente amizade dos rios (PAES LOUREIRO, 2001, p. 73).

Os seres míticos que surgem numa verdadeira miríade de entidades fantásticas são o melhor exemplo da proximidade e da influência que a natureza tem sobre a vida das populações tradicionais, e daquelas feitas tradicionais, na Amazônia. Em Rondônia há relatos sobre entidades como o Curupira, o Mapinguari, Iara, o Pai da Mata e a Mãe da Seringa (THIEBLÓT, 1977; TEIXEIRA, 1996). São seres da mata e das águas que surgem em outras regiões da Amazônia, mas passam por releituras, como ocorre em Rondônia. Há, por exemplo, na tradição oral relatos que indicam ser o Curupira, entidade protetora das matas, um homem. Há ainda, em função da origem nordestina da maior parte da população tradicional, a presença do Bumba-meu-boi, como mostra Thieblót (1977), que verificou na década de 1970 diversos grupos organizados para disputas em Porto Velho, capital do estado, mas já com modificações relacionadas às tradições amazônicas, o que difere a prática daquela verificada no Nordeste. O que importa notar são as alterações que ocorrem nas representações surgidas a partir do ambiente amazônico e fixadas em Rondônia, mas que mostram a clara ligação com a população tradicional amazônida.

A cultura do mundo rural de predominância ribeirinha constitui-se na expressão aceita como a mais representativa da cultura amazônica, seja quanto aos seus traços de originalidade, seja como produto de acumulação de experiências social e de criatividade de seus habitantes. Aquela em que podem ser percebidas, mais fortemente, as raízes indígenas e caboclas tipificadoras de sua originalidade, florescentes ainda em nossos dias (PAES LOUREIRO, 2001, p. 65).

A cultura do homem da Amazônia se formou em um meio peculiar, onde as particularidades do ambiente foram determinantes para o estabelecimento das relações com o meio e, por conseqüência, das práticas ali fixadas. O tempo dos rios, com intermináveis curvas, as distâncias medidas em dias, e as imposições da floresta para a sobrevivência, fizeram surgir práticas próprias de produção, circulação e consumo, que foram e são transmitidas sobretudo na forma oral. Este homem não se encontrava integrado às modernas

práticas presentes na sociedade com que se deparou em Rondônia a partir de 1970. Supria suas necessidades cotidianas com o que rios e a mata ofereciam, numa relação de reciprocidade e respeito, e viu-se diante de outras práticas, de acumulação e consumo que exigiam a subversão do ambiente para que fossem impostas.