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A dedução da lei moral na KpV e a interpretação de Beck

4 O FACTUM DA RAZÃO

4.1 A dedução da lei moral na KpV e a interpretação de Beck

Veremos a seguir a interpretação de Beck (1960), segundo a qual Kant realiza a dedução da lei moral na KpV, muito embora o mesmo negue isso. Ou seja, o que iremos expor a seguir diz respeito à posição de Beck (1960) segundo a qual na KpV nós teríamos o que formalmente poderia ser entendido enquanto sendo uma dedução da lei moral. Com efeito, o autor irá colocar que a lei moral na KpV ocupa (ou poderia ocupar) um lugar deixado “vazio” pela KrV tanto no que diz respeito ao problema teórico quanto prático (moral). Conforme coloca Kant na KrV, mais especificamente no capítulo II da Analítica Transcendental, primeira seção: Dos princípios de uma dedução transcendental em geral, que quando os jurisconsultos falam de direitos e usur- pações, distinguem num litígio a questão de direito (quid juris) da questão do facto (quid facti) e, ao exigir provas de ambas, dão o nome de dedução à primeira, que deverá demonstrar o direito ou a legitimidade de tal pretensão. Segundo Kant, nós nos servimos de uma porção de

200 KpV, AA 05: 45

201 In an effort to avoid this dilemma, Beck introduces a further distinction between a “fact for” and a “fact of” pure reason. By the former is to be understood a pregiven, transcendentally real value that is somehow apprerended by pure reason, that is, by a directe nonsensuous insight or intelectual intuition. Although Kant sometimes to construe the fact in this away and is frequently thought to have done so, such a reading stands in blatand contra- diction with Kant denial of a capacity for intelectual intuition (ALLISON, 1990, p.232).

conceitos empíricos sem que ninguém os conteste. Mesmo sem dedução nos julgaríamos auto- rizados a conferir a tais conceitos um sentido e uma significação imaginada, porque teríamos sempre à mão a experiência para demonstrar a sua realidade objetiva202.

Entre os diversos conceitos que constituem o tecido variado do conhecimento humano, há alguns, segundo Kant, que se destinam também a um uso puro a priori (totalmente indepen- dente de qualquer experiência). Contudo, o uso a priori de tais conceitos também exigiriam uma dedução, uma vez que não bastariam as provas da experiência para legitimar a sua aplicação. Seria preciso saber como tais conceitos podem se referir a objetos que não são extraídos de qualquer experiência. Kant denomina então de dedução transcendental a explicação do modo pelo qual esses conceitos podem ser referidos a priori a objetos, distinguindo-o do conceito de dedução empírica, que mostra como se adquire um conceito mediante a experiência e a reflexão sobre esta.

Dou o nome de dedução transcendental à explicação do modo pelo qual esses conceitos se podem referir a priori a estes objetos e distingo-a da dedução empírica, que mostra como se adquire um conceito mediante a experiência e a reflexão sobre esta, pelo que não se refere à legitimi- dade, mas só ao facto de onde resulta a sua posse.203

Um traço distintivo da natureza daquilo que está sujeito à dedução transcendental diz respeito a que, ao se referirem ao objeto, estão impedidos de buscar algo à experiência para a sua representação. Em concordância com isso temos, por exemplo, o conceito de espaço e tempo, como formas da sensibilidade, e as categorias, como conceitos puros do entendimento. No que diz respeito à tais conceitos, portanto, uma dedução empírica seria impossível. Assim, quando se fizer necessária uma dedução de tais conceitos, a mesma terá sempre que ser trans- cendental. Dessa maneira, se quisermos saber com que direito podemos nos valer de tais con- ceitos, os mesmos sempre dependerão de uma dedução204, no que se inclui também a lei moral.

Segundo Beck (1960), uma dedução legal (jurídica) é aquela em que um jurista faz um silogismo: “X é certo porque X é A, e a Constituição diz: “A é certo”. Mas, segundo o autor, a dedução transcendental Kantiana não tem essa estrutura pura. Não existiriam quaisquer princí- pios implantados nas mentes dos homens a partir do qual os princípios de causalidade e mora- lidade poderiam ser mostrados como consequências lógicas e, portanto, como admissíveis ou necessárias. Um tal princípio, se houvesse, não seria mais óbvio do que o conceito de causa e estaria sujeito ao mesmo desafio que Hume trouxe ao princípio de causalidade. Se tentarmos

202 Cf. KANT, KrV, A 84

203 KANT, KrV, A85 204 KANT, KrV, A 85

deduzir, segundo Beck (1960), a lei moral de algum outro fato da razão como o desejo humano pela felicidade, o resultado de tal dedução não poderia ser necessário205.

O processo de dedução transcendental, defende Beck (1960), não seria o da inferência linear de uma premissa à sua consequência lógica. A dedução transcendental consistiria em um processo de tomar algum “corpo” de suposto fato (matemática ou ciência) que tem sido contes- tado ou desafiado, expondo dois pontos, quais sejam, (a) quais são os pressupostos necessários e (b) quais são as consequências de negar esses pressupostos. Assim, por exemplo, a validade objetiva da matemática tinha sido desafiada por aqueles que sustentavam que suas proposições eram baseadas na experiência e, portanto, careciam de aplicação objetiva. A KrV, segundo o autor, tenta explicar que, se a matemática é empírica, não só ela é incerta, mas o espaço de que trata não pode ser finito nem infinito. Kant então, segundo Beck (1960), formula uma outra teoria sobre o que é o espaço, teoria esta em que a antinomia poderá ser evitada, mostrando depois que uma de suas consequências é a necessidade da matemática206. A dedução foi feita

para evitar que os matemáticos tirassem conclusões injustificadas acerca dos limites e da natu- reza da ciência da matemática.

Em seus grandes contornos, defende Beck (1960), o procedimento adotado por Kant na primeira Crítica, é comparável ao procedimento adotado pelo mesmo no que tange à segunda Crítica, muito embora o autor faça a observação de que Kant, no contexto da KpV, negue a possibilidade de tal dedução. O autor, portanto, reconstroi o argumento no sentido de demons- trar que tal dedução é possível na KpV. Iniciemos então com os argumentos de Beck (1960). No que respeita ao propósito de uma dedução devemos esperar que Kant introduza a experiên- cia moral como um reino a ser analisado, articulado e estabelecido. A justificativa da proposição sintética a priori correspondente à lei moral, não estaria na afirmação de que tais proposições estariam firmemente estabelecidas em si mesmas, mas pela prova de que são princípios sem os quais a experiência seria ininteligível, mas esse não pareceria, segundo o autor, ser o caminho seguido por Kant.

Segundo Beck (1960), para que possamos compreender a peculiaridade do método da KpV, devemos voltar por um momento à GMS. Neste último, o argumento de Kant toma um pouco a forma esperada, de acordo com o autor. Os conceitos de uma vontade absolutamente boa e de uma vontade universalmente legisladora são sinteticamente relacionados entre si. Am- bos os conceitos devem estar relacionados através do que o autor denomina por terceira cogni- ção pura. A terceira cognição seria proporcionada pelo conceito positivo de liberdade e é a ideia

205 Cf. BECK, 1960, p.170

de um mundo inteligível como arquétipo do mundo sensível na medida em que está sujeito à nossa vontade. O mundo suprassensível ou inteligível não é outra coisa que o mundo conside- rado sob a autonomia da razão pura prática.

Na KpV, segundo Beck (1960), por ter colocado que o princípio não precisa de dedução, Kant provavelmente tem em mente o argumento da GMS. Kant teria usado a lei moral, o fato da razão, como o “prius” para deduzir algo mais, ou seja, a liberdade, que é a ratio essendi da lei moral. O argumento, apesar da negativa de Kant com relação ao mesmo constituir alguma espécie de dedução, é, para Beck (1960), uma dedução da lei moral, e funcionaria formalmente como a dedução de qualquer outro princípio sintético a priori da primeira Crítica. O conceito de liberdade seria chamado a desempenhar um papel análogo ao da intuição. Se houvesse uma intuição da liberdade, segundo o autor, o paralelismo com os dois conceitos seria perfeito, mas não há. Dessa maneira, para mostrar que uma ideia da razão (a liberdade) pode ser um substituto para uma intuição em uma dedução, devemos recordar a estrutura abstrata da dedução na pri- meira Crítica.

Beck (1960) esclarece que a dedução das categorias na primeira Crítica exige que os objetos do conhecimento a que as categorias se aplicam sejam dadas em uma possível experi- ência. Em razão disso, no que diz respeito à primeira Crítica, foi necessário começar por um estudo da maneira pela qual tais objetos são dados na intuição, e depois seguir com um estudo dos conceitos e juízos pelos quais os objetos da intuição são pensados. Na segunda Crítica, no entanto, não podemos começar com intuições, mas devemos começar com princípios que são dados.

Como a proposição segundo a qual uma boa vontade, ou nas palavras de Beck (1960), uma razão pura prática207, pode ser confirmada? A mesma não poderá ser confirmada pelo re- curso a uma intuição, mas sim por meio do substituto de alguma intuição. Tal substituto, se- gundo a tese de Beck (1960), deve possuir três características em especial, quais sejam, deve ser puramente intelectual; deve ser a priori e deve possuir um mandado independente. Esse terceiro elemento ou esse substituto da intuição é a ideia da liberdade. Em outras palavras, para Beck (1960), enquanto a lei moral serve de base para a dedução da liberdade, o conceito de liberdade serve também como credencial para a lei moral.208 Tal credencial a qual, segundo

207 Cf. BECK, 1960, p.173

208 Here the argument takes a truly astonishing turn. Since the synthetic a priori Judgment that one expected to see Kant deduce needs no Deduction and can have none, it is used for the deduction of the Idea of freedom itself. Fortunately, however, the “deduction” is not a linear inference; and, while the moral law serves as a ground for the deduction of freedom, the concept of freedom is made to serve also as the “credential” of the moral law (BECK, 1960, p.173-174).

Beck (1960), a ideia de liberdade possui deve-se à independência do conceito de liberdade bem como do próprio conceito de lei moral. Ao que parece, se compreendi o autor de maneira ade- quada, o que confere a independência do mandado do conceito de liberdade é a necessidade que tal ideia demonstrou no contexto da crítica especulativa. Trata-se aqui, se é possível fazermos uma comparação, com a necessidade a qual O’Neill (1989) já havia demonstrado com relação à necessidade que a razão teórica tem de pressupor uma causalidade por liberdade. O mandado independente da lei moral que é a ratio cognoscendi da liberdade, é o facto da razão. No que se refere ainda à necessidade que a razão teórica possui de pressupor uma causalidade pela liber- dade, temos que Beck (1960) observa ainda que as antinomias209 precisam ser resolvidas para evitar uma contradição flagrante, tendo em vista que a razão teórica necessita pressupor não apenas a ligação necessária entre causa e efeito segundo leis naturais causais, mas necessita pressupor também uma totalidade das condições. Beck (1960) ainda observa um aspecto muito importante da liberdade que diz respeito não só à sua necessidade do ponto de vista teórico, mas também do ponto de vista prático. Dessa maneira, ao assegurarmos a realidade objetiva do conceito de liberdade, dada pela lei moral, estamos resolvendo não só o problema especulativo, mas também prático, ou seja, moral. Vejamos citação da KpV:

Ora, o conceito de liberdade na medida em que sua realidade é provada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui o fecho de abóbada de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão espe- culativa.210

Nesse sentido, os conceitos da razão prática pura, segundo Beck (1960), não seriam como meros adereços e contrafortes que geralmente têm que ser colocados atrás de um edifício erguido às pressas, mas seriam membros bastante verdadeiros que tornam o sistema claro.211

Segundo o autor, a liberdade antes da KpV era pensada apenas como sendo um conceito pro- blemático para a razão, deixando, portanto, uma espécie de lugar vazio. No entanto, com a KpV tal lugar vazio é ocupado pelo próprio facto da razão tendo em vista que o mesmo, enquanto não podendo ser ele próprio deduzido, oferece, por outro lado, o princípio de dedução da liber- dade, ganhando com isso uma “credencial” para si mesmo, uma vez que acrescenta à uma cau- salidade pensada só naturalmente, uma causalidade de tipo transcendental.

209 Sobre as antinomias da razão ver o ponto 4.4 deste trabalho. 210 KpV, AA 05: 3/4

4.2 O Factum da Razão e a interpretação de Allison: O factum enquanto factum da ra-