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A Desconstrução do Poder de Género Hitchcockiano

Capítulo 2. Alfred Hitchcock

2.3 Análise do Estereótipo Feminino nas Narrativas de Hitchcock

2.2.4 A Desconstrução do Poder de Género Hitchcockiano

Modleski (1988), no seu livro The Women Who Knew Too Much (um jogo de palavras que subverte para o feminino o título do filme de Hitchcock com o título The Man Who Knew Too Much), analisa os filmes do realizador e demonstra que as mulheres, nos filmes de Hitchcock, têm mais poder do que é aparente. Como a autora diz na introdução do livro, a necessidade de Hitchcock em insistir e exercer controlo

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pode ser relacionada com o facto de os seus filmes, muitas vezes, estarem sempre em perigo de serem subvertidos por mulheres cujo poder é fascinante e aparentemente sem limites. Por exemplo, personagens que exercem influência mesmo depois da morte (um tipo de personagem favorito de Hitchcock) são quase sempre mulheres, e estas têm um grande impacto na narrativa, tais como, Rebecca, no filme com o mesmo nome, Carlotta e Madeleine, em Vertigo (1958), a Sra. Bates, em Psycho (1960) etc. Enquanto muitos críticos rejeitam o apelo dos filmes ao atribui-lo apenas ao desejo das audiências por violência sensacional, geralmente dirigida às mulheres, e excitação “barata e erótica”, é interessante refletir como teóricas feministas se têm sentido intrigadas, enfurecidas e inspiradas pelos filmes de Hichcock. Os filmes de Hitchcock foram e têm sido centrais para a formulação e prática de teoria e crítica fílmica feminista (Modleski, 1988: 1).

Enquanto muitas críticas usam o trabalho de Hitchcock como um meio de elucidar assuntos e problemas relevantes para mulheres na patriarquia, assim considerando o trabalho do realizador como uma expressão de atitudes e práticas culturais que existem até certo ponto para além do controlo do realizador, o trabalho de Modleski (1988) é no irreverente espírito desse tipo de criticismo, mas mais explicitamente “desconstrucionista” do que esse criticismo tem tendência a ser. Assim, a autora teoriza que muitas vezes em filmes de Hitchcock, a forte fascinação e identificação com o feminino que estes revelam, subverte as reivindicações ao domínio e autoridade, não só das personagens masculinas, mas também do próprio realizador. Modleski (1988: 3) argumenta que Hitchcock não é completamente misógino, nem amplamente empático para com as mulheres e a sua situação na patriarquia, mas sim que o seu trabalho é caracterizado por uma ambivalência quanto ao feminino. Modleski (1988) refere o que Molly Haskell (1974) diz sobre a questão que continuamente (e às vezes implicitamente) ocorre sobre o trabalho de Hitchcock – se ele é empático para com as mulheres ou misógino. Haskell (1974: 32) afirma que esta questão é fundamentalmente irrespondível, porque ele é ambos. A misoginia e a simpatia envolvem-se uma à outra, tal como a relação próxima de Norman Bates com a sua mãe provoca a sua agressão mortal contra outras mulheres. Modleski (1988: 6) também refere Julia Lesage (1978: 87) que insiste que apesar da sexualidade das mulheres ter sido formada pela cultura dominante patriarcal, as mulheres não respondem a mulheres em filmes e ao elemento erótico da mesma forma que os homens, pois o filme patriarcal tem a estrutura de uma fantasia masculina.

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Como os filmes de Hitchcock demonstram repetidamente, o sujeito masculino sente-se extremamente ameaçado pela identificação com o feminino, apesar de ao mesmo tempo se sentir fascinado pelo feminino, e é a mulher que paga por esta ambivalência, muitas vezes com a sua vida (Modleski, 1988: 10). A identificação e receio do espetador masculino em relação ao feminino é fundamentalmente uma reação contra as mulheres que não só sabem demais, mas que saibam seja o que for, e que causa neles paranoia. A resposta do homem em relação a uma mulher que saiba tem consistentemente sido uma fonte de paranoia nos filmes de Hitchcock. “Eu sei um segredo sobre si, tio Charlie”, diz a sobrinha ao seu tio, em Shadow of a Doubt (1943), despertando assim a sua fúria assassina. Mulheres que mostram possuir um conhecimento especial e incriminatório sobre os homens é um tema recorrente nos filmes de Hitchcock (Modleski, 1988: 13).

Em Rear Window (1954), o filme termina com uma tracking shot em que a câmara volta para mostrar Jeff (James Stewart) a dormir, como antes, só que desta vez ambas as suas pernas estão engessadas. O movimento da câmara acaba num plano médio de Lisa Fremont (Grace Kelly) na cama de Jeff, em calças e camisa, a ler um livro com o título Beyond the High Himalayas (figura 18).

Esta olha para Jeff rapidamente, para se certificar que ele ainda está a dormir, põe o livro para baixo e pega numa cópia da revista Harper’s Bazaar (Modleski, 1988: 75). Tão importante como este momento, ou ainda mais importante, é o facto de o filme dar a Lisa o último olhar. Esta é, apesar de tudo, a conclusão de um filme que todos os críticos concordam ser sobre o poder que o homem tenta exercer através do exercício do olhar. Ficamos com a suspeita que, enquanto os homens dormem e sonham os seus sonhos de omnipotência sobre um mundo seguramente reduzido, as mulheres não estão onde parecem estar, trancadas em perspetivas masculinas sobre elas (Modleski, 1988: 85).

Figura 18 Lisa tem o último olhar em

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Em Rear Window (1954), a mulher é mostrada continuamente como fisicamente superior ao herói, não só nos seus movimentos físicos, mas também na sua dominância dentro da frame. Ela ergue-se acima de Jeff em quase todos os planos em que ambos aparecem (ver figuras 19 e 20). Modleski (1988) afirma que alguns teóricos criticam Lisa, porque ela parece obcecada com roupas e estilo, exibindo-se visualmente para Jeff para que ele lhe dê mais atenção que a que dá aos vizinhos. Para a autora, é importante não dispensar o envolvimento profissional e pessoal de Lisa com o mundo da moda, mas considerar as formas como este envolvimento funciona na narrativa. Se, por um lado, o interesse das mulheres pela moda serve os interesses patriarcais, por outro, este mesmo interesse é muitas vezes rebaixado e ridicularizado pelos homens, colocando assim as mulheres num dilema familiar em que são atribuídas a um lugar restrito na patriarquia e depois condenadas por ocuparem esse mesmo lugar (Modleski, 1988: 77).

Modleski (1988: 92) tem uma interpretação interessante sobre a cena em que Scottie espia Madeleine rodeada de flores, uma das cenas que consta no nosso trabalho fotográfico de recriação. Quando Scottie segue Madeleine, ela vai de carro até um beco onde entra num edifício. Seguindo-a, ele caminha pelo corredor do edifício e, devagar, abre a porta ligeiramente para um plano impressionante do seu ponto-de-vista, o som do tema musical amoroso subindo, e um plano longo mostra Madeleine de costas para a câmara no meio de uma abundância de flores e iluminada por luz suave. Madeleine vira-se e caminha em direção à câmara (e Scottie), e com o corte espera-se ver o plano inverso para mostrar que, como de costume, no cinema clássico, o homem tem posse visual da mulher. Mas afinal, a porta tem um espelho, e assim o plano mostra Scottie, enquanto ele olha para Madeleine fixamente, e também o reflexo de Madeleine no espelho (Modleski, 1988: 92). A autora considera que o

Figura 20 Lisa domina a frame (exemplo 2) Figura 19 Lisa domina a frame (exemplo 1)

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plano é de certa forma profético, pois apesar de todas as tentativas de Scottie em ganhar controlo sobre Madeleine, ele nunca é capaz de atingir dominância total sobre a sua imagem.

2.4 Influências Diversas de Hitchcock (A Cultura Hitchcockiana ao Longo