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A descontinuidade entre teoria e prática na formação continuada de professores

5 A PRÁTICA DA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES E SUA

5.2 Indícios e ausências da teoria do professor reflexivo na prática da formação

5.2.2 A descontinuidade entre teoria e prática na formação continuada de professores

Além da desconexão entre a prática e a reflexão sobre essa prática, há, também, descontinuidade entre a teoria e a prática na formação continuada de professores, mesmo com a teoria do Professor Reflexivo combatendo a oposição entre teoria e prática. Schön, na teoria mais geral sobre formação de profissionais, buscava que a teoria e a prática tivessem maior relação e que, assim, a formação fizesse mais sentido para os profissionais que estivessem sendo formados. Para Schön a reflexão sobre a prática envolve uma reflexão que se utiliza de conceitos teóricos. A reflexão sobre a prática é uma conexão entre teoria e prática, é parar para

pensar a prática através de conceitos teóricos, de constructos e dos pensamentos e teorias que cada um de nós temos (GHEDIN, 2012).

A epistemologia da prática envolve a ligação entre teoria e prática. Em um processo mecânico de aprendizagem, a teoria se encontra separada da prática. E a intenção da teoria do professor reflexivo foi, justamente, lutar contra esse processo mecânico que acontecia (e acontece) como, por exemplo, na graduação: primeiros anos de teoria e, depois, o último ano de estágio, de prática, para a formação de um profissional.

A inseparabilidade da teoria e da prática se expressa na prática refletida. Quando é possível ter uma prática reflexiva, ação e reflexão é possível ver a teoria e a prática unidas, como eles realmente devem ser (GHEDIN, 2012).

O professor, no processo de refletir na prática e sobre a prática, acaba criando seu próprio fazer, ele vira um especialista do fazer, como coloca Ghedin (2012), entretanto, se analisarmos a forma como acontecem a formação continuada de professores no local pesquisado, podemos dizer que os professores têm pouco espaço para se tornarem especialistas do fazer, pois têm poucos espaços de reflexão sobre sua prática dentro do ambiente de trabalho, também não têm tempo para fazer esse processo de reflexão sobre a prática em outro momento e, muitos, não têm uma boa formação de base para fazer o processo de reflexão de forma consistente.

Quanto ao pouco espaço de reflexão dentro do ambiente de trabalho, algumas situações, como, por exemplo, o fato de que as observações que os formadores fazem na sala de aula dos professores é analisada pelos formadores e não pelos professores. Os formadores já sabem o que querem dos professores e esperam a aplicação de oficinas, técnicas e do currículo, e, assim, o professor tem pouco momento de discutir tanto com os formadores quanto com outros professores, questões de sua prática, de como fazer, do que fazer. O fazer, a prática, já está definido e proposto.

Tanto que, uma das PCs quando relata sobre sua atuação na formação continuada, salienta que não abre espaço para os professores conversarem sobre as questões do dia-a-dia, da sala de aula nas ATPCs:

[os professores] têm aqui na nossa escola [a prática de refletir sobre seu trabalho], temos o planejamento, temos um momento que eles avaliam o que deu certo e o que que não deu, qual dificuldade que você está tendo. Uma coisa que a gente não faz é murmurar, ‘ai, a classe está desinteressada’,

‘Fulano de tal está desinteressado’, isso não tem mais aqui na nossa escola, até porque se o aluno está desinteressado, alguma coisa o professor não trouxe para ele para que ele tivesse esse retorno. Tem esse momento sim, da dificuldade do professor, da gestão de sala de aula, e com conteúdo, da dificuldade que você está tendo, para poder ajudar, com o apoio dos PCNPs e até da minha formação de ATPC. Eles têm esse momento, a maioria tem já claro o que eles têm que desenvolver, na teoria, mas quando eles enfrentam uma sala de aula é completamente diferente [...]. E aqueles alunos que estão com defasagem em sala de aula, o que fazer com eles? Tem que ter equilíbrio, ter paciência, ter a formação, estar preparado. Eles têm essa prática aqui, a reflexão. Eles têm esse momento, mas sem murmuração. ‘Eu ganho pouco, o Estado não sei o que, a culpa é do Estado’, isso aqui não, isso aí não tem no nosso vocabulário aqui. [...] quando eu era professora, nas ATPCs, ficava só na falação: ‘Hoje aconteceu isso’, ‘Fulano de tal está com um problema’. Agora nós temos o professor mediador, nós temos o momento de estudarmos aquele aluno, então não é no ATPC, ATPC é formação, tem que ser bem claro. Se deixar, vai ser só falação daquela série tal e aí você vai sair mais frustrado, ‘é assim mesmo, acontece em todo lugar’, não muda, você sai mais desanimado da sua profissão e eu não quero isso (Isabela, PC).

Ao mesmo tempo que a PC Isabela salienta que os professores na escola em que ela trabalha refletem sobre sua prática, ela também relata que esses professores não refletem no sentido do que a teoria do professor reflexivo veria como reflexão sobre a prática. Ocorre que esses professores, em momentos de planejamento e replanejamento, veem as dificuldades que tiveram e que não tiveram. Esses momentos são em início e fechamento de semestre, ou seja, acontecem com distância grande uma da outra. Os momentos semanais, de reunião, de formação, não são momentos em que o professor leva situações de sala de aula; o que eles trabalham na ATPC é como a PC responsável pelo momento formativo trabalhava em sala de aula. Provavelmente, para que os professores possam copiar a boa prática e reproduzir em sala de aula. A prática é o foco das formações e a teoria, que embasaria essa prática e essareflexão, some tanto do discurso, nessa entrevista, quanto da prática dessa formadora. O fato é que não há espaço para a teoria e para a reflexão sobre a prática.

Em uma das observações, de uma ATPC, é possível perceber a distância entre teoria e prática nas formações dos professores e perceber que a prática é o foco majoritário dos formadores em relação aos professores. Observamos um ATPC em uma escola da cidade pesquisada. Havia cerca de 20 professores e o tema que foi trabalhado no momento formativo durante uma boa parte do ATPC foi a interdisciplinaridade de Português e Matemática com as outras disciplinas. Na oficina relacionada a Português, os professores foram convidados a trabalhar gêneros textuais em grupos, e em cada um dos quatro grupos de trabalho havia um professor de Português. Após a atividade em que os professores tinham que enquadrar

diversos textos em seus respectivos gêneros textuais, os professores de Português foram convidados a explicar um pouco mais sobre os gêneros, sem nenhum aviso prévio, ou seja, somente com o conteúdo que já possuíam sobre o assunto, apresentando aos outros professores seu conhecimento já internalizado sobre o tema. Em momento algum houve uma ligação entre a oficina sobre gêneros textuais e autores que estudam esse tema, para aprofundar o conhecimento teórico sobre o assunto.

A desconexão entre teoria e prática também foi percebida na “Orientação Técnica” observada. Eram formadores diferentes da ATPC. Na ATPC eram PCs e na Orientação Técnica eram PCNPs, mas a forma de trabalhar com os professores foi similar em alguns pontos, como, por exemplo, focar na prática dos professores majoritariamente e não trazer elementos teóricos, conceituais para a formação. Há uma distância entre teoria e prática nas observações realizadas. Os formadores trabalham com temas teóricos, como, por exemplo, o citado pelo PCNP João:

Lembra que você me perguntou: ‘João, como que você prioriza o assunto? ’, eu chamei os professores do Ensino Médio, que são três séries, primeiro, segundo e terceiro, pois bem, o professor do terceiro dá aula só para o terceiro, mas ele tem que saber os conteúdos do primeiro e do segundo, para ele retomar de repente. O professor que dá aula no primeiro, muitas vezes dá aula no terceiro também, então ele já vai aproveitar, é assim: Magda fica com um tema do primeiro ano, PA e PG, eu fico com um tema do segundo ano, Geometria Espacial, Gustavo com um tema do terceiro ano, Geometria Analítica e nós fazemos uma oficina nessa sala aqui, no auditório e em outra sala lá do lado, aí a gente reveza para não ficar tão cansativo (João, PCNP).

Entretanto, na observação realizada de uma Orientação Técnica, essa parte da teoria, dos assuntos, fica muito mais em: como passar esse tema para os alunos (atividades diferentes, oficinas, jogos). Ou seja, os professores ouvem formas diferentes de trabalhar conteúdos, mas não discutem como trabalhar conteúdos, não participam, não falam sobre as suas práticas (a não ser no momento de “Boas práticas” em que professores escolhidos apresentam sua forma de trabalhar um determinado tema) e, também, não aprofundam conhecimento sobre aquele tema.

Assim, nas entrevistas e nas observações realizadas não foi possível identificar a relação prática-teoria e nem a articulação das dimensões micro e macrossocial, considerando os diferentes contextos em que esses formadores de professores estão inseridos. O que fica mais perceptível é a formação continuada vinculada à prática, em que se sobressaem atividades que têm potencial para serem aplicadas em sala de aula com os alunos. Percebemos um anseio por

parte dos formadores de professores em obterem, em curto prazo, resultados finais ligados à aprendizagem dos alunos. Provavelmente, essa ânsia dos formadores não seja algo deles, mas algo exigido pelo trabalho que realizam e que lhes é cobrado por órgãos maiores, como a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Essa necessidade por parte dos formadores em obter resultados rápidos quanto à aprendizagem dos alunos é cobrada, principalmente, através das avaliações externas (como SARESP e PROVA BRASIL), realizadas anualmente pelo governo estadual de São Paulo e pelo Governo Federal. Os resultados dessas avaliações mostram aos governantes como está a aprendizagem dos alunos e, mostram também, como está a formação dos professores, de modo indireto. E as metas de resultados aumentam anualmente, como aponta o PCNP João:

Nós temos aí uma avaliação do Estado, que é o Saresp, que tem lá: o aluno abaixo do básico, básico, adequado, avançado. Qual é nosso objetivo? Nós temos uma meta. A meta é que nossos alunos que temos abaixo do básico passem para o básico, do básico passem para o adequado, para que todo mundo chegue ao adequado. Se esse é nosso objetivo, nós vamos conseguir isso dando uma boa aula, fazendo com que os alunos realmente aprendam.

A lógica de mercado dentro da educação (FREITAS, 2012) leva a organizar a educação da forma como o mercado é regulado, através de metas, alcance de resultados objetivos e com foco na redução de custos. Esta lógica leva a educação a cobrar as metas dos professores que, muitas vezes, não podem ser tão facilmente medidos de forma objetiva, e, por isso, podem levar os formadores a focar ainda mais na prática do que na teoria. É como se o foco na prática fosse mais importante que na teoria, já que alterações na prática (na didática do professor, na gestão de sala de aula, na forma de passar o conteúdo) poderão trazer resultados mais rápidos para a aprendizagem dos alunos do que trabalhar a teoria e a prática em conjunto.

A prática é o foco maior do processo de formação continuada de professores e, apesar de alguns autores (CANDAU, 1996; PIMENTA, 2012; GHEDIN, 2012) colocarem que uma das grandes contribuições da teoria do professor reflexivo foi, exatamente, trazer a prática para a luz, ela não pode vir sozinha, desacompanhada da teoria. Ela não deve nem vir desacompanhada da teoria e nem devem ser desconsideradas as dimensões de contexto social, político, econômico e ideológico em que estão inseridas essa teoria, essa prática e esses profissionais da educação (CANDAU, 1996).

A prática desacompanhada da teoria e do contexto em que se insere, acaba não tendo a racionalidade da prática e, por isso, não altera o modelo de racionalidade técnica que Schön (1987) procurava combater. Esse modelo da racionalidade técnica, apesar das críticas, inclusive da teoria do Professor Reflexivo, ainda é predominante no cotidiano escolar, conforme evidenciamos a seguir.

5.2.3 O modelo de racionalidade técnica na formação continuada de professores: crítica e