• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II OS ANOS DO GOVERNO DO BRASIL: 1557-1572

2. O GOVERNO

2.3. A dialéctica entre o poder temporal e espiritual

Garante da unidade política, institucional e religiosa, o poder temporal e espiritual estavam finalmente de acordo e prontos para garantir a estabilidade governativa necessária à consolidação do poder português que faltou durante o governo de D. Duarte da Costa. A aliança entre o poder político do Governador e o espiritual representado pelos provinciais da Companhia de Jesus, tendo sido Manuel da Nóbrega um elemento importante na consolidação do poder do Rei e da colonização605 e pelo Bispo do Salvador, constituiu um dos esteios do governo de Mem de Sá que perdurou até à sua morte a 2 de Março de 1572. Juntos e apesar de “conduzidos por parâmetros institucionais e sendo personalidades distintas entre si, Nóbrega, Leitão e Mem de Sá, tendo Salvador da Baía como centro geográfico irradiador, retratam um modus operandi da colonização portuguesa no Brasil”.606 Aliados, o poder temporal e espiritual apoiaram-se e reforçaram-se mutuamente. Da dialéctica entre os dois, estavam lançadas as bases necessárias à criação das estruturas de poder efectivas sobre o território e sobre a sua população conjunta de colonos e de tribos ameríndias.

A chegada de D. Pedro Leitão607 à cidade de São Salvador da Baía de Todos os Santos608 acentuou a estabilização eclesiástica advinda da criação da diocese da Baía609 por ter posto fim ao vazio no bispado que se verificou entre 1556610 e 1559 e ao conflito que

605Arno Wehling, Maria José C. de M. Wehling, “Processo e procedimentos de institucionalização do Estado

Português no Brasil de D. João III, 1548-1557”, op. cit., p. 51.

606Caio César Boschi, “As missões no Brasil”, HEP, vol. 2, Lisboa, 1998, p. 392.

607D. Pedro Leitão foi conselheiro de D. Sebastião (cf. Chanc. D. Sebastião e D. Henrique, Liv. 29, fl. 90 v.) antes

de ser nomeado Bispo do Brasil, cargo que exerceu entre 1558 e 1573, com o salário anual de 200.000 reais e a autorização de comprar, resgatar na Baía e nas outras capitanias “aquelas coisas de que tem necessidade para uso e maneio da sua casa e mantença de seus escravos e servidores” – Lisboa, 16-9-1559 (cf. DH, vol. XXXVI, pp. 85-86).

608A 9 de Dezembro de 1559, cf. José Gonçalves Salvador, Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição (aspectos de sua

actuação nas capitanias do sul, 1530-1680), São Paulo, 1969.

609

Maria Madalena Pessoa Jorge Oudinot Larcher, “D. João III e as matrizes canónicas do Brasil”, D. João III e o Império, Lisboa, 2002, p. 108.

610D. Pedro Fernandes Sardinha acabou vítima dos índios Caeté a 16 de Junho de 1556 depois de naufragar na

costa de Alagoas na viagem que o trazia de volta ao Reino, ao lado do provedor-mor, António Cardoso de Barros, dos escrivães Rodrigo de Freitas, Francisco Mendes da Costa, Brás Fernandes e do médico Jorge da Costa, entre outros.

caracterizou a acção do seu antecessor, D. Pedro Fernandes Sardinha611 com o governador D. Duarte da Costa, com alguns capitães612 e com os padres jesuítas. Separavam-nos a atitude a ter com os índios e os métodos de evangelização a seguir com os mesmos, os quais, na opinião de D. Pedro Sardinha deviam ser os mesmos dos empregues na Índia.613

A unidade entre o poder temporal e espiritual simbolizado pelo Governador e pelo Bispo saiu reforçada pela unidade entre o Bispo e os padres da Companhia de Jesus, por conceder-lhes o que precisavam para o ofício divino, por hospedar-se nas suas casas,614mas sobretudo por fortalecer a sua posição junto dos moradores ao repreender-lhes durante os seus sermões o modo como resgatavam e tratavam os índios. O Bispo proibia a confissão aos colonos do resgate.615 Aos colonos infractores os Padres da Companhia de Jesus liam nos púlpitos durante os seus sermões as penas estabelecidas pelo Direito, recusavam-lhes os sacramentos e admoestavam ao “ouvidor-geral que atentasse por isso”.616

O bom entendimento entre Mem de Sá e D. Pedro Leitão ficou expresso na reconfirmação do seu salário anual de 200.000 reais617 e nas confirmações das cartas de apresentação feitas pelo primeiro618 como Governador e administrador do Mestrado e

611

D. Pedro Fernandes Sardinha foi nomeado Bispo da Baía por carta de 4-12-1551 (cf. Chanc. D. João III, Liv. 66, fl. 262). Criado na igreja episcopal do Salvador da capitania da Baía de Todos os Santos, eximia-se a partir de então o Bispado do Brasil da jurisdição eclesiástica do bispado do Funchal, sujeitando-o ao arcebispo de Lisboa, com a renda anual de quinhentos cruzados retirados dos rendimentos da Ordem de Cristo, ou da fazenda régia.

612 Vasco Fernandes Coutinho, por exemplo, excomungado pelo Bispo “de mistura com homens baixos por

beber fumo”, cf. TT, CC, I, 95, 70.

613 António da Silva Rego, Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente,

Lisboa, 1947-1958.

614CJ, vol. II, Carta do Padre António Blasquez do Colégio da Baia de Todos os Santos do Brasil para Portugal,

13-9-1564, pp. 444-448. Mesmo que estas não fossem aposentos “para Bispos, porque são uns pobres casórios de palma”.

615MB, vol. III, Carta do Padre Leonardo do Vale aos Padres e irmãos de S. Roque, Baía, 26-6-1562, pp. 469-507. 616

CJ, vol. I, Carta do Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Mestre Simão Rodrigues de Azevedo, p. 81.

617 Pela provisão de 2-9-1561, até à de 22-10-1566, desobrigando-se então toda a fazenda “pessoa, bens

móveis e de raiz havidos e por haver” apresentada pelos seus fiadores, Fernão Vaz Meirinho, meirinho eclesiástico na Baía e Garcia de Ávila, conforme o solicitado por Mem de Sá, cf. DH, vol. XXXVI, pp. 108-112.

618Atribuição que até então pertencia ao provedor-mor pela provisão régia de 7-12-1551. A partir de 25-7-1559

temos a carta pela qual o Rei dá comissão e poder ao Governador para apresentar em seu nome as dignidades, conezias e benefícios, criados pela primeira vez como naqueles que estivessem vagos. Tal teria lugar somente nos benefícios que estivessem no Brasil, porque se nomeados pelo Rei no Reino, teriam de ser primeiro examinados pela Mesa da Consciência e Ordens. Lisboa, 10-9-1559. Cf. DH, vol. XXXVI, pp. 42-44.

Ordem de Cristo de clérigos para conezias, meias conezias e vigários para a Sé e igrejas do Salvador Baía e Olinda. Constatamo-lo no quadro que se segue:619

Quadro Nº 8 – Cartas de apresentação de clérigos confirmadas pelo bispo da

Baía

pp. Data Nome e cargo

eclesiástico Igreja a que se destinava Renúncia

183- 185

?2? Silvestre Lourenço, clérigo de ordens de missa

Vigário da igreja de Olinda

183- 185

?2? Pedro Barbosa, clérigo de ordens sacras

Vigário da igreja de Olinda

70 14-12-1559 Bartolomeu Garcia, clérigo de ordens de missa

Vigararia de uma das conezias da Sá da Baía

74 14-12-1559 Pedro Gonçalves, clérigo de ordens menores

Recebeu uma capelania na cidade do Salvador

88 24-12-1559 Francisco de Argolo, clérigo de ordens menores

Recebeu meia conezia na cidade do Salvador

84 14-2-1560 Francisco de Paiva, clérigo de ordens menores

Recebeu uma meia conezia na Sé da cidade do Salvador. Já clérigo de ordens sacras foi confirmado para uma conezia na Sé do Salvador dada a renúncia de Rui Pimenta a 23-10-1560

Renunciou a esta meia conezia meses mais tarde, a 20-6- 1560 em Marçal Rodrigues, clérigo de ordens menores. Este, por sua vez, renunciou à mesma em Miguel Martins a 3-9-1560

148- 150

3-9-1560 Rui Pimenta, clérigo de ordens sacras

Chantre na Sé da Baía dada a renúncia de João Lopes 130- 132 18-9-1560 Diogo Rodrigues, clérigo de ordens menores

Recebeu uma capelania na Sé da cidade do Salvador dada a renúncia de Henrique Nunes 140-

142

4-10-1560 Manuel Afonso, clérigo de ordens menores

Recebeu uma capelania na Sé da cidade do Salvador dada a renúncia de Jacobus Rodrigues 135-

137

9-10-1560 Vicente Rolão, clérigo de ordens menores

Recebeu uma capelania na Sé da cidade do Salvador dada a renúncia de Diogo Almeida 176-

178

20-2-1562 Pedro da Fonseca, clérigo de ordens de missa

Vigararia na povoação da Vila Velha

185- 187

12-3-1562 Vicente Rolão, clérigo de ordens de missa

Vigararia na povoação da Vila Velha

pp. Data Nome e cargo

eclesiástico Igreja a que se destinava Renúncia

172- 175

20-3-1562 Henrique Rodrigues, clérigo de ordens sacras

Recebeu uma capelania na Sé da Baía dada a renúncia de Vicente Rolão

122 30-4-1565 João Barantes, clérigo de ordens de missa

Vigararia da igreja da Vila Velha dada a renúncia de Pedro Fonseca

As resoluções que assinaram na Baía a 30 de Julho de 1566 foram no sentido de defenderem a liberdade dos índios e de darem maior apoio aos aldeamentos instaurados pelos padres jesuítas. A partir de então os colonos só podiam tirar os índios das aldeias depois de provarem que os tinham resgatado de um modo lícito.

Os Padres não podiam entregar os índios aldeados aos colonos que pretendessem ter direitos sobre eles sem mostrarem autorização para tal do Governador ou do ouvidor-geral, o qual devia visitar as aldeias de quatro em quatro meses e fazer nelas o que considerasse necessário à justiça.620Mem de Sá mandou “que qualquer escravo que se fosse de casa do senhor para as igrejas dos Padres se não desse sem sua licença; isto fazia para saber, se os tais escravos eram das ditas igrejas, ou dos que os portugueses tinham mal havidos para os pôr em liberdade”.621Os escravos só podiam ser comprados depois de se verificar se a venda era justa ou não. Todos os escravos adquiridos contra essa lei eram obrigados a ser restituídos à liberdade, a pagar-se-lhes o seu serviço e a não serem absolvidos em caso de confissão.

Os padres podiam entregar os índios forros aos colonos que não vivessem nas aldeias se estes quisessem trabalhar para eles, não consentindo que os levassem à força.622 O Bispo devia tomar conhecimento dos casamentos dos índios repreendendo os colonos e os padres que os haviam celebrado caso os repetissem.

620

Resoluções da Junta da Baía sobre as aldeias dos Padres e os índios, Baía, 30-7-1566, MB, vol. IV, pp. 354- 357.

621Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), op. cit., p. 366. 622

Os colonos que resgatassem índios “litigiosos” que se acolhessem às aldeias dos padres e seus limites perdiam o direito sobre eles. Cf. Resoluções da Junta da Baía sobre as aldeias dos Padres e os índios, Baía, 30- 7-1566, MB, vol. IV, pp. 354-357.

Para evitar que os índios fugissem aos seus senhores e voltassem às suas aldeias, e na esteira do protector-mor dos catecúmenos criado por D. Duarte da Costa em 1553, instituiu- se um procurador remunerado dos índios.623 Escolhido pelos padres e aprovado pelo Governador, os índios catecúmenos deviam viver debaixo da obediência de um pai que os regesse, castigasse ou defendesse sempre que necessário, o qual devia ainda acompanhar os padres pelas aldeias.624

Concordaram na escolha de Diogo Álvares, o Caramuru,625 pelo crédito que tinha junto dos índios e por ter sido como João Ramalho em São Vicente,626 fundamental pelas relações familiares que estabeleceram com os principais da terra pelos muitos filhos tiveram.627

Enviados para um território que não desejavam por equivaler “a uma sentença de morte”628pela pouca esperança de regressar a Portugal, estes antigos degredados tornaram- se “veículos essenciais de fixação e de colonização”.629 Simultaneamente línguas e intérpretes foi graças à sua intervenção que a presença portuguesa se conseguiu implantar

623

CJ, vol. I., Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil, carta a D. João III (1552), pp. 135-136.

624 CJ, vol. I., Carta do Ir. António Blasquez por comissão do Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Inácio de

Loiola, Baía, 10-6-1557, pp. 389-390.

625

Náufrago na região do Rio Vermelho, foi acolhido pelos tupinambás, acabando por casar com a filha do chefe (Taparica), Paraguaçu.

626Náufrago na região de São Vicente, João Ramalho foi encontrado pelos guaianases. Casou com Bartira, filha

do chefe Tibiriçá. Nomeado guarda-mor das terras altas de Piratininga por Martim Afonso de Sousa, foi capitão, alcaide e vereador da vila de Santo André da Borda do Campo a por carta de 1-6-1553, o que não implica que fossem fáceis as relações entre ambos, mas pautadas pela conveniência “necessária ante a hostilidade de algumas tribos indígenas”. Cf. Arno Wehling; Maria José C. de M. Wehling, “Processo e procedimentos de institucionalização do Estado Português no Brasil de D. João III, 1548-1557”, op. cit., cita Mário Neme, Notas de Revisão da História de São Paulo, Século XVI, São Paulo, 1959, p. 190 e John M. Monteiro, Negros da Terra, São Paulo, 1995, p. 37.

Foi como o seu sogro, Tibiriçá, um dos responsáveis pela expulsão da vila de São Paulo dos Tamoios confederados em 1562. O filho mais velho de João Ramalho, André Ramalho serviu de guia a Nóbrega na sua primeira excursão pelas terras do planalto de Piratininga, ajudando-o a conhecer o sertão, a credibilizar o seu ministério, a escolher o melhor sítio para construir o Colégio. Cf. Tito Lívio, Nóbrega e Anchieta em São Paulo de Piratininga, São Paulo, 1954, p. 43.

627Joaquim Romero de Magalhães, A Construção do Brasil, 1500-1825, Lisboa, 2000, p. 19. 628

A. J. R. Russel-Wood, Um Mundo em Movimento, Os Portugueses na África, Ásia e América (1415-1808), Algés, 1998, p. 161.

com sucesso em São Vicente e na Baía, sendo o seu prestígio decisivo “na definição de alianças e dos apoios indígenas aos portugueses”.630

Em conformidade com as determinações da Junta da Baía e porque Fernão Cabral não entregou a Mem de Sá os escravos que mantinha nas suas roças e engenhos,631 este “cercou-lhe a casa de soldados, chegou a dar ordem que fosse batida e lançada por terra; e se executara sem dúvida, se convertido a melhor parecer não obedecera”.632 Fernão Cabral não só se recusava a entregar os índios que tinha na sua fazenda como aprisionou seis índios da aldeia e igreja de São João “dizendo que não tinha que ver com Padres nem com governador, que maior era seu poder que todas as justiças”.633Argumentando ainda que os Padres participaram com ele no primeiro salto que tinha feito, não mandava “os ditos índios, até lhe não mandarem a sua”,634 uma índia que mantinha como sua escrava e que tinha fugido para a igreja de Santo António, a qual, de acordo com as determinações da Junta da Baía só lhe podia ser entregue depois de se determinar por justiça o modo como tinha sido resgatada e depois de enviada a petição ao ouvidor.

Mem de Sá mandou prendê-la e ficou à espera que Fernão Cabral entregasse as provas necessárias para que lhe fosse entregue como pedia. O ouvidor-geral manteve-a “na cadeia até a dita quinta-feira e mais oito dias sem o dito Fernão Cabral vir a requerimento do alcaide Diogo Zorilha.”635 Por não ter quem a alimentasse e porque Fernão Cabral não entregou as provas requeridas, a índia regressou à igreja de Santo António.

630Ângela Domingues, “D. João III e o Brasil”, op. cit., p. 63.

631Já o seu antecessor, D. Duarte da Costa lamentava não poder castigar convenientemente os moradores por

saltearem as tribos ameríndias, comportamento que colocava em risco as tréguas que tinha alcançado junto dos chefes tribais. Cf. Carta de D. Duarte da Costa de 10-6-1555, HCPB, vol. III, p. 378.

632José de Anchieta, op. cit., p. 131. Já em 1560 ao regressar do Rio de Janeiro e depois de se inteirar do que se

tinha passado na sua ausência e de saber que aqueles que o tinham ficado a substituir no governo não seguiram o “estilo e ordem que tinha dado acerca de como se havia de proceder com os índios” repô-lo “com tanta diligência que logo tornou a pôr tudo na ordem em que o deixou”, Carta do Padre Rui Pereira aos Padres e Irmãos de Portugal; Baía, 15-9-1560, in MB, vol. III, p. 290.

633

Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), op. cit., p. 371.

634Id., Ib.

635Foi alcaide depois de apresentar uma petição nesse sentido ao Governador e do despacho deste a provê-lo

de 8 ou (18?) de Janeiro de 1571, Id., Ib. Diogo Zorilha era moço da câmara de D. Maria, filha de D. Manuel, e estava no Brasil desde o tempo de D. Duarte da Costa, participou nas guerras contra os indígenas e serviu de feitor e cura dos índios, pediu a mercê do cargo de alcaide da cidade do Salvador, para o qual foi nomeado

Relativamente aos índios da aldeia de São João, os quais ”estavam muito escandalizados de não verem a restituição da tomada de seus parentes, que Fernão Cabral tinha tomado”,636Mem de Sá mandou fazer a devassa, assegurando que lhes faria justiça e que mandaria para casa as suas mulheres e filhos. Apenas lamentava o facto de não poder resolver o caso tão celeremente como desejava porque Fernão Cabral estava na sua fazenda, a qual distava cinco léguas da cidade do Salvador, e as testemunhas estavam ausentes. Remeteu em seguida o auto ao ouvidor, o qual mandou chamar as testemunhas. Deliberou- se que os índios, por terem sido salteados injustamente, deviam regressar à sua povoação para que sossegassem os demais.637

Esta decisão de Mem de Sá valeu-lhe a inimizade dos colonos e em concreto dos oficiais da câmara da Baia, à semelhança do que tinha acontecido com D. Duarte da Costa, cujo governo apelidaram de três governadores, por lhe estar associado o seu filho, D. Álvaro da Costa e o ouvidor-geral, o Dr. Pedro Borges.638 Opunham-se ao aldeamento indígena por defenderem a adopção do sistema dos repartimientos como se fazia nas Antilhas e no Peru.639 Pela voz dos vereadores Gaspar de Barros Magalhães640 e de Sebastião Álvares,641 na carta que escreveram a D. Sebastião a 24 de Julho de 1562, manifestaram ainda o desejo de separação dos cargos de ouvidor-geral e de provedor-mor. Para tal, basearam os seus argumentos no facto de que durante as ausências do ouvidor não se podiam resolver os negócios da cidade do Salvador, os livros que António Cardoso de Barros tinha por regimento mandar fazer nas capitanias, já estavam feitos, e as alfândegas já tinham oficiais.

por despacho de Mem de Sá a 8-1-1571 e provisão pelo mesmo de 4-5-1571 (cf. DH, vol. XXXVI, p. 197). Em 1571 reclamou contra a extensão dos engenhos e a invasão das terras dos índios ao exercer o cargo de seu procurador, cargo que passaria para o seu filho, Francisco Zorilha, cavaleiro e fidalgo da casa real por carta de 4-1-1603 (cf. Chanc. D. Filipe II, Liv. 6, fl. 378 v.).

636Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre José de Anchieta (1554-1594), op. cit. 637

Id., Ib.

638Cf. DH, vol. XXXVI, pp. 132-133.

639Mem de Sá opôs-se a esta vontade expressa pelos oficiais da Câmara da Baía, “por não lhe parecer bem por

não haver causa para isso justa, porque os mais deles nunca fizeram por onde merecessem isso”. Cf. MB, vol. III, Carta do Padre Manuel da Nóbrega a Tomé de Sousa, Baía, 5-7-1559, p. 93.

640Ao qual havia atribuído o cargo de contador do Brasil, Salvador, 3-1-1560 com o ordenado anual de 70.000

reais. Cf. DH, vol. XXXVI, pp. 53-54.

641

Cavaleiro da Casa Real foi nomeado escrivão do tesouro a 4-10-1560 pela renúncia de Rodrigo de Freitas por ter entrado para a Companhia de Jesus. Id., Ib., pp. 132-133.

O provedor-mor podia ser escusado na Baía porque só tinha alçada junto dos juízes da fazenda, pelo que podia ser substituído pelo ouvidor, mais estando aí o governador devia ser este a exercer funções de vedor da fazenda. Em caso de não haver provedor-mor, o escrivão da fazenda podia servir na provedoria. Poupavam-se assim dois salários, à semelhança do de tesoureiro, porque este podia ser almoxarife e o escrivão do tesouro podia ser o seu escrivão.642

Os oficiais da câmara da Baía invocaram ainda as demasiadas “ocupações na judicatura”, que impediam o ouvidor de entender e resolver as da fazenda. Por considerarem que este por si só tinha uma grande alçada, pediam que esta não excedesse a dos capitães, se excedesse, o desembargo devia ser feito pelo governador, juízes ordinários e vedor mais velho do Salvador. Se os feitos excedessem 10.000 reais, deviam ser tratados no desembargo do Salvador, de acordo com o estabelecido no regimento do provedor-mor. Deste modo, qualquer letrado poderia exercer funções de ouvidor-geral, com um salário menor, a Coroa só tinha benefícios, porque poupava dinheiro e ficava tranquila sobre a resolução das matérias judiciais “porque estamos cá muito longe e tudo o que se faz passa e não sabemos a que conta”.643

Além destes desejos, pediram ainda que Mem de Sá fosse substituido, usando como argumento principal o modo como este exercia o seu poder em termos públicos como governador, e privado como mercador e senhor de engenhos. Acusaram-no de extrema ambição e desejo de enriquecimento, que o levaram a resgatar escravos e âmbar, uma injustiça no seu entender, porque, e ao contrário dos moradores, não o tinha ganho nem