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A dialética da imagem

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CAPÍTULO II A IMAGEM CORPORAL E O PROJETO

2.1 A dialética da imagem

Acredita-se ser pertinente discorrer acerca da imagem e pensá-la em sua multiplicidade de pontos de partida e entendimentos; entretanto, é preciso abordar a tensão entre objetividade e subjetividade, construída na relação entre os homens e destes com o mundo. Assim, “a última imagem de um indivíduo é a sua própria história” (KRACAUER, 2009, p. 68). O autor concebe essa afirmação em um comparativo da fotografia, como uma representação do tempo, com as imagens da memória, e “que não engloba nem a totalidade de um fenômeno espacial nem a totalidade do percurso temporal de um fato” (idem), mas conserva o que as imagens querem lhe dizer; logo, ele aproxima seu texto da definição de “imagem última de memória”, como aquela que “omite todos os signos e determinações que não estão em relação significativa com a verdade designada pela consciência liberta” (idem). Em contrapartida, a imagem de memória possui uma ambiguidade, pois pode se apresentar “fosca” para impedir a passagem da luz e se descolar da verdade.

Já do ponto de vista do espectador, Mondzain (2015) se atenta para a distinção entre visão e imagem. A autora professa que, conforme as perguntas sequenciais “o que é ver?”, “o que é ver algo?” e “o que é ver uma imagem?”, ter olhos parece ser o primeiro requisito para reconhecer a imagem como objetos visíveis ou o que não está visível, dependendo dos olhos para estabelecer com o objeto uma relação de espectador.

Para discutir ou definir a imagem sob o viés estético, Gardies (2015, p. 200) recorre ao cinema, que entende a estética como “uma coleção de posturas, de atitudes e procedimentos de uma variedade sem paralelo”, que não para de evoluir. Encontra-se em seus escritos a indicação de três abordagens a serem consideradas na discussão da imagem: a sua composição e relação com a história que conta; a “atribuição da marca artística” com possibilidades de elevar o

homem ou fazer parte de um “maquinismo comercial”; e a “rubrica subjetiva, de que fazem parte as impressões sentidas, o juízo de gosto ou ainda de compreender algo sem o explicar racionalmente” (idem). Nesse prisma, anuncia-se que

para muitas pessoas, é insuportável ouvirem sugerir que uma certa lógica de adequação liga os filmes que adoram e o seu próprio itinerário social, tal como lhes é penoso imaginarem que o seu corpo reage por vezes de forma pavloviana a determinadas imagens. É mais agradável continuar a acreditar que os coelhos brancos saem da cartola dos ilusionistas, ou seja, que o filme nos agradou graças a uma espécie de pequeno milagre ou de operação alquímica encantadora e irracional, um imprevisível “porque era ele, porque era eu”, devido ao maior dos acasos e que já não se reproduzirá [...]. No entanto, esse recesso de caráter místico é muito compreensível: nas sociedades tecnocráticas, já não há muitos domínios ao abrigo da triste “razão experimental”, cujo poder de alienação foi criticado por Max Weber, Theodor Adorno e Charles Taylor (GARDIES, 2015, p. 214-215).

Com base nos estudos benjaminianos, Agostini (2019, p. 177) discute a confluência entre memória e história para versar sobre a imagem, em que “a memória se encontra em primeiro plano e ocupa o papel de guia em toda produção, interligando a história individual e coletiva”. Entende-se, pois, que na memória se entrelaçam o inconsciente humano e a história; é nela que “são tecidas as imagens da história: corpos, coisas, mercadorias, monumentos, topografia. É na dialética corpo e essas imagens que nos é possibilitado acessar o passado tornando-o cognoscível no presente” (idem).

No texto intitulado A imagem entre proveniência e destinação, de Mondzain (2017), pode-se inferir que “interrogar a proveniência da imagem é interrogar a origem, quer dizer, a causa” (p. 39) e, a partir daí, responder o que é a imagem de fato. Reconhece-se, assim, que a ciência das imagens vai além de uma cronologia de estilos, representações e formas produzidas, pois “a proveniência das operações imaginantes está na origem do problema político que coloca sua destinação” (ibidem, p. 41). Em continuidade, assevera-se que

aquilo que constitui o sujeito na sua liberdade de iniciativa constitui um perigo para aqueles cujo poder é assentado sobre a negação dessa liberdade. Dito de outra forma, é porque a capacidade do sujeito de produzir imagens faz parte de uma economia constituinte do desejo que as instituições que constituíram seu poder tomaram o cuidado tanto de interditar as imagens quanto de controlar a produção de seus efeitos (MONDZAIN, 2017, p. 41).

Ao se referirem às imagens, Santaella e Nöth (2017, p. 15) recorrem a uma discussão do “mundo das imagens” que não contempla apenas o domínio dos objetos materiais que “representam o nosso meio ambiente visual”, como fotografias, imagens do cinema, da televisão, entre outras, mas também dizem respeito a um domínio “imaterial das imagens na

nossa mente”, como “visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais”. Há uma preocupação dos autores em destacar a impossibilidade de dissociar os dois domínios, assentida pela defesa de que tanto as imagens como o signo surgem das imagens mentais – estas se originam no mundo dos objetos materiais, o que leva ao campo da semiótica alinhada com a ciência cognitiva.

Na conclusão de seus estudos, Santaella e Nöth (2017) explicitam que mentir ou dizer a verdade não compõe necessariamente a informação pictorial, mas as imagens podem ser utilizadas para enganar ou não acerca dos significados, da combinação dos signos entre si ou do contexto da linguagem. Entende-se que os meios de comunicação manipulam as formas de transmissão de significados, mas é refutada a afirmação de que as imagens veiculadas sejam “falsificações diretas da realidade expressas de maneira assertiva” (ibidem, p. 215), o que pode ser contrastado com as produções de Benjamin (1984) acerca da reprodutibilidade técnica e a aparelhagem da indústria cultural em Adorno (2017).

Embora a imagem não seja diretamente esmiuçada por sociólogos como Adorno e Horkheimer, em nota do tradutor de Dialética do Esclarecimento (1985, p. 195), o significado de imagem, trazido da psicanálise, indica “o protótipo inconsciente de personagens determinando a maneira como o indivíduo apreende o outro”. Notadamente, a relação entre subjetividade e objetividade e dessa analogia com as imagens são tratadas de maneiras distintas pela ciência cognitiva e pelo materialismo – os estudos benjaminianos indicam caminhos para compreendê-las nesse contexto.

Benjamin (2018b, p. 1500) anuncia que “as imagens dialéticas são símbolos de desejo. Nelas torna-se presente simultaneamente à própria coisa a sua origem e seu declínio”. Indubitavelmente, seus escritos apontam para a experiência humana na história, o que se confirma na continuidade do manuscrito n. 1134, compilado na mesma obra: “o [x] das forças produtivas de uma sociedade não é determinado somente por suas matérias-primas e instrumentos, mas também, por seu meio ambiente e pelas experiências que faz aí” (idem). Ao reconhecer essa possibilidade, coloca-se em seguida sua negação ante as determinações do século XIX, quando são apontadas, em Questões fundamentais, a “fronteira entre a realidade e a aparência” e a

relação entre a falsa consciência e consciência onírica. O reflexo realiza-se na consciência onírica. Consciência onírica e superestrutura. A dialética produz uma imagem na imobilidade. A aparência é essencial a esta última. O agora da cognoscibilidade é o instante do despertar. No despertar, o sonho se imobiliza. O movimento histórico é um movimento dialético. Mas o movimento da falsa

consciência não o é. Esta se torna dialética também no despertar (BENJAMIN, 2018b, p. 1500).

Em Magia e técnica, arte e política, Benjamin (1994, p. 194) trata do processo em “que a reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas” e o vincula ao desenvolvimento das técnicas de reprodução e registro, além de seu uso pelo fascismo para organizar as massas proletárias, mantendo “as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir” (idem). Arrazoa-se que, embora o homem possa perceber as imagens por si, é pela objetiva que se captam melhor os “movimentos de massas”, seja pela “perspectiva de voo de pássaro” ou na ampliação das imagens possível apenas ao aparelho, “nos grandes desfiles, nos comícios gigantescos, nos espetáculos esportivos e guerreiros, todos captados pelos aparelhos de filmagem e gravação, a massa vê o seu próprio rosto” (ibidem, p. 194-195).

Em se tratando da reprodução ideológica por meio das imagens e no tocante ao cinema da década de 1914, Mondzain (2015, p. 95) o instaura como

parte do material de combate, quer para fazer propaganda, quer para produzir informação um meio assombroso de tornar imediatamente sensíveis e visíveis as ideias que querem propagar, as emoções que querem provocar, as realidades em que devemos acreditar.

Para a autora, as imagens produzidas no cinema documentam a humanidade, mas a afastam do conhecimento dos fatos em direção à produção de saber. Antes

dão a ver e a sentir com o objetivo explícito ou não, de produzir crenças e de suscitar um julgamento. Tal como na Antiguidade, o espectador é mais do que nunca um sujeito político, mas doravante ameaçado nessa própria posição pelo nascimento dos fenómenos de massas que o reificam, recuperando a sua carne para canhão para dela fazer a matéria de um público (MONDZAIN, 2015, p. 96).

Impactados pelo fenômeno da reificação, os “personagens” que se apresentam inconscientemente aos homens para a construção das imagens que fazem dos outros e de si, na relação com os outros, chegam a esses indivíduos depois de percorrido o caminho da administração. Tal afirmativa se baseia em Adorno e Horkheimer (1985), para quem o pensamento submetido a ela impede que o sujeito ouça com os próprios ouvidos, toque com as próprias mãos (e, acrescenta-se aqui, veja com os próprios olhos). Nesse limiar teórico, descreve-se a “regressão das massas”, na qual a fantasia se mostra atrofiada e a imagem se reduz à cópia. A “irrefreável regressão” promovida pelo progresso:

não se limita à experiência do mundo sensível, que está ligada à proximidade das coisas mesmas, mas afeta ao mesmo tempo o intelecto autocrático, que se separa da experiência sensível para submetê-la. A unificação da função intelectual, graças à qual se efetua a dominação dos sentidos, a resignação do pensamento em vista da produção da unanimidade, significa o empobrecimento do pensamento, bem como da experiência: a separação dos dois domínios prejudica a ambos (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 41).

Críticas de Adorno a Benjamim constam no Anexo IV – Carta de Adorno para Benjamim: crítica ao texto A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 2019). Nelas, Adorno destaca que a autonomia da obra de arte lhe remete ao entrecruzamento do mágico e do “signo da liberdade” pertencente ao conceito da “autonomia estética” da filosofia burguesa. Abriga-se nesse movimento a asserção de que a obra de arte autônoma carrega em si “leis tecnológicas” que a aproximam dessa filosofia, ao afirmá-la como possibilidade de uma arte “conscientemente confeccionável, realizável” em estado de liberdade. No exercício da própria dialética, a publicação benjaminiana traz as proposições de Adorno que, tomadas em sua escrita, inferem

o senhor subestima a tecnicidade da arte autônoma e superestima a da arte dependente; essa seria talvez a forma sucinta de minha principal objeção. Ela, porém, poderia ser realizada somente com uma dialética entre os extremos que o senhor mantém separados (BENJAMIN, 2019, p. 163).

Colocar a imagem como autônoma seria negar sua origem e destinação. Imagens mentais ou materializadas surgem ou são construídas em contextos; por conseguinte, considerar qualquer uma delas impermeável à técnica, à política, aos fundamentos e propósitos da sociedade da qual faz parte é negar a constituição social humana. Adorno compreende a imagem na contemporaneidade segundo o indivíduo em sua relação com o mundo e suas determinações concretas sobre a subjetividade. Assim como é prevista a impossibilidade de uma arte autônoma, a pretensa imagem subjetiva carrega em si os traços da objetividade.

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