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3.1 A DIGNIDADE HUMANA NA PATRÍSTICA

3.1.1 A Didaqué

Um pouco antes do período da Patrística, surgiu a Didaqué, a primeira instrução, ou catequese, dos apóstolos para a evangelização dos novos membros da Igreja nascente. Este

384 BOGAZ, Antonio S; COUTO, Márcio A; HANSEN, João H. Patrística: caminhos da tradição cristã: textos, contextos e espiritualidade da tradição dos padres da Igreja antiga., nos caminhos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulus, 2008, p. 145.

385 In FOLCH GOMES, Cirilo. Antologia dos santos padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. São Paulo; Paulinas, 1979, p. 13.

386 ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina dos Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1988, 2ª ed. p. 20-21.

conjunto de doutrinas foi utilizado, de certa forma, paralelo aos escritos dos apóstolos, que mais tarde viriam a compor o Novo Testamento. A Didaqué surge por volta da última década do século I do cristianismo, quase na mesma época da redação do Evangelho segundo João e, por isso mesmo, é considerada como o marco inicial do período patrístico,387 embora alguns autores datem sua composição da primeira metade do século II.388 À parte de controvérsias de data, a Didaqué expressa a doutrina do Senhor ensinada ao povo por meio dos doze apóstolos e contém várias instruções sobre o modo de vida que deve ter o novo cristão, o recém convertido. Ela fala dos dois caminhos, o da vida e o da morte; da celebração da vida com o batismo, o jejum e a oração, a eucaristia e ação de graças; dá orientações sobre a vida comunitária, como receber e sustentar os profetas, sobre a celebração dominical, a vivência comunitária; e exorta a toda a comunidade a ser perseverante na fé até o fim. A Didaqué é, assim, uma espécie de constituição que regulamentava a vida da Igreja nascente e das primeiras comunidades cristãs.

Para nosso estudo, faremos um corte sobre as instruções que falam da convivência comunitária e social e que denotam um cuidado para com a dignidade humana, que é o objeto de nossa pesquisa:

a) “Dê a quem pede a você e não peça para devolver, pois o Pai quer que os bens sejam dados a todos” (Dq I,5).389 É Deus quem nos concede todas as coisas, para honrá-lo o cristão deve ter um coração capaz de partilhar com os necessitados: “oprimir o fraco é ultrajar seu Criador, honrá-lo é ter piedade do indigente” (Pv 14,31).

b) Em seguida, o texto nos remete a uma “segunda instrução”, que conforme MATTIOLI pode nos levar à conclusão de uma ligação com a regra de ouro de Jesus descrita por S. Mateus: “Tudo aquilo, portanto que queirais que os homens vos façam, fazei-o vós a eles (Mt 7,12).390

O segundo mandamento da instrução é este: Não mate, não cometa adultério, não corrompa os jovens, não fornique, não roube, não pratique magia, nem feitiçaria. Não mate a criança no seio de sua mãe, nem depois que ela tenha nascido. Não cobice os bens do próximo, não jure falso, nem preste falso testemunho. Não seja

387 Cf. BOGAZ, Antonio S; COUTO, Márcio A; HANSEN, João H. Patrística: caminhos da tradição cristã: textos, contextos e espiritualidade da tradição dos padres da Igreja antiga., nos caminhos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulus, 2008, p. 25.

388 Cf. ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina dos Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1988, 2ª ed. p. 91.

389 Didaqué. O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. São Paulo: Paulus, 1989, 10 ed. p. 9.

maledicente, nem vingativo [...] Não seja avarento, nem ladrão, nem fingido, nem malicioso, nem soberbo. Não planeje o mal contra o seu próximo. (Dq II 2-3.6)

Ainda, identificamos neste segundo mandamento da Didaqué uma referência ao Decálogo, pois o fruto da fidelidade aos mandamentos é a benção de Deus (cf Dt 15,5), o relacionamento com o outro requer integridade, verdade de pensamento e coerência de ações, os quais podem resumir em três direções as diversas instruções: a proteção à vida, o respeito aos bens e a fama do próximo. Tais normas exigem fraternidade e partilha, onde o plano principal não é a bondade, mas a prática da justiça,391 pois a “justiça faz prosperar uma nação, o pecado é a vergonha dos povos” (Pv 14,34).

Quanto à defesa da vida da criança, antes e depois de seu nascimento, é uma questão de princípios do povo israelita, para o qual a fecundidade é sempre uma benção de Deus, esta tradição advém de um profundo respeito pela vida e pela natureza, assim, o judaísmo reage positivamente à concepção de uma nova vida, e refuta a prática de abortos, infanticídios e exposição dos recém nascidos, o que no antigo Egito era uma prática comum.392

c) “Meu filho, não seja mentiroso, porque a mentira leva ao roubo. Não seja ávido de dinheiro, nem cobice a fama, porque os roubos nascem de todas essas coisas” (Dq III,5). A verdade é um direito do próximo, ocultá-la é roubar-lhe este direito. Muitas vezes esta prática está a serviço do interesse de alguém, geralmente do poder que quer dominar e roubar a liberdade. Dessa forma, à mentira e a cobiça são as responsáveis pelo afã da riqueza, onde a riqueza acumulada se traduz como roubo dos bens que todos têm direito naturalmente.393

d) “Não seja como os que estendem a mão na hora de receber e a retiram na hora de dar [...] não hesite em dar, nem dê reclamando” (Dq IV, 5.7). A mesma solicitude para receber deve ser vivenciada na hora de partilhar o que se tem com os que necessitam. Os pobres dependem da disposição da partilha daqueles que têm, é por isso que viver em comunidade implica a superação do apego às posses em benefício da necessidade do outro e da partilha com os irmãos.

e) “Não rejeite o necessitado. Divida tudo com o seu irmão, e não diga que são coisas suas. Se vocês estão unidos nas coisas que não morrem, tanto mais nas coisas perecíveis” (Dq IV 8). O fervor de dividir tudo com os necessitados – muitos cristãos assim o faziam –, era

391 Cf. comentário II,1-7 do texto. Didaqué. O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. São Paulo: Paulus, 1989, 10 ed. p. 10.

392 Cf. MATTIOLI, U. In Padri Apostolici: antologia. Roma: Edizioni Paoline, 1967, p. 42.

393 Cf. comentário II,1-7 do texto. Didaqué. O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. São Paulo: Paulus, 1989, 10 ed. p. 12.

animado pelo exemplo de Jesus, que de fato viveu economicamente uma vida em comum com seus discípulos (Jo 12,6; Lc 8,3). Ele muitas vezes exortava ao povo para que vendesse seus bens e dessem esmola (Lc 12,33). A idéia desta comunidade, que colocava tudo em comum, é viva em toda a tradição Patrística.394 A fraternidade é o projeto de Deus e desfaz toda e qualquer desigualdade entre as pessoas, isso não quer dizer que as pessoas devem ser iguais ou que se anulem umas nas outras, pois existem funções diferentes na sociedade, também não quer dizer que uma pessoa seja melhor que a outra, ou, ainda, que devido à sua função social deva ter mais privilégios ou direitos. Todas as pessoas são importantes à sociedade e têm direito de ter o necessário para viver dignamente.395

f) Aqueles que não olham para a vida comunitária e o bem comum andam pelo caminho da morte:

Por esse caminho andam os perseguidores dos bons, os inimigos da verdade, os amantes da mentira, os que ignoram a recompensa da justiça, os que não desejam o bem nem o julgamento justo, os que não ficam atentos para o bem, mas para o mal. Deles está longe a calma e a paciência; são amantes das coisas vãs, ávidos de recompensas, não se compadecem do pobre, não se importam com os atribulados, não conhecem o seu Criador. São ainda assassinos de crianças, corruptores da imagem de Deus, desprezam o necessitado, oprimem o aflito, defendem os ricos, são juízes injustos com os pobres e, por fim são pecadores consumados. Filhos, afastem- se de tudo isso.” (Dq V,2)

Enfim, a Didaqué, além de normas litúrgico-sacramentais e orientações eclesiológicas, do capítulo I ao VI, traz normas ético-morais de convivência, por meio dos quais o “cristão deve ser exemplo de partilha com os mais necessitados [...] evitar os pecados testemunhando a fé e seguir os ensinamentos morais que são conselhos para uma vida virtuosa em todos os seus sentidos”.396 A oração é apresentada, no cap. X, como um “encontro com Deus e com os irmãos e a Eucaristia se celebra como expressão desta convicção das primeiras comunidades cristãs. O apelo à solidariedade é uma exigência da iniciação cristã”.397

Este ideal de solidariedade, partilha e comunhão fraterna, das primeiras comunidades, é assumido, vivenciado e disseminado por inúmeros Padres apostólicos e os do período da

394 Cf. comentário 32 in MATTIOLI, U. In Padri Apostolici: antologia. Roma: Edizioni Paoline, 1967, p. 46. 395 Cf. comentário IV,10-11 do texto. Didaqué. O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje.

São Paulo: Paulus, 1989, 10 ed. p. 15-16.

396 BOGAZ, Antonio S; COUTO, Márcio A; HANSEN, João H. Patrística: caminhos da tradição cristã: textos, contextos e espiritualidade da tradição dos padres da Igreja antiga., nos caminhos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulus, 2008, p. 61.

Patrística, dentre os quais selecionamos alguns que ilustram bem estes ensinamentos. Não seguimos uma ordem de importância, mas observamos somente a cronologia por ordem de precedência de nascimento, também não esgotamos a Patrística por não ser, de todo, o foco principal deste trabalho, mas escolhemos alguns dos nomes mais significativos do princípio do séc. II – período em que a Igreja dos mártires tentava se organizar – até meados do século VI, quando o cristianismo já se consolidava como religião oficial do Império Romano, desde o Imperador Constantino, no ano 380. Estes nomes também foram importantes porque ajudaram, cada um à sua época, na fixação da doutrina, principalmente nos primeiros quatro grandes Concílios Ecumênicos da Igreja: Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451).