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Capítulo 2: Sentindo o corpo o doente: percursos e tecnologias

2.4 A dieta

Uma dos lugares de visibilidade da relação entre o corpo e a máquina é remetido a forma como a dieta é seguida pelo doente renal crônico. Entender como o corpo se comporta a cada dia de tratamento e como as limitações e superações podem ser relacionadas com a comida é uma condição peculiar dessa doença. Pois a cada dia que se está na máquina dialisando, o peso muda, em função da retirada de líquido

88 acumulado, sendo que a máquina leva também uma série de nutrientes que são benéficos ao organismos, e que sem eles pode haver algum efeito colateral pós-sessão, com isso, saber-se alimentar direito é fundamental para a manutenção de uma vida saudável para aqueles que realizam hemodiálise.

Como citado em outros momentos, durante a hemodiálise, o líquido que não pode ser expelido organicamente é processado e eliminado pela máquina, de forma que este peso é variável de acordo com o tempo de diálise, com a quantidade de sessões, com a alimentação e com a medicação. Com o tempo, os doentes vão entendendo de maneira mais sistemática as reações que podem acontecer e o que fazer para evitá-las ou provocá-las.

Como é recorrência nas falas dos meus interlocutores, o peso tirado em excesso pela máquina pode ocasionar uma série de mal-estares, desconfortos, sonolência, queda de pressão e outros sintomas que são sentidos por um bom tempo após a sessão do tratamento. Então, eles falam disso com muita naturalidade, pacientes que estão na sala há pouco tempo já aprenderam com aqueles que estão lá há mais tempo, como controlar esse peso e ter uma vida mais “normal” com a máquina. Esse convívio passa a ter outros significados. Álvaro, com seus 2 anos de hemodiálise mostra isso muito bem quando responde sobre o que era para ele ter a vida ligada à uma máquina, diz:

A gente realmente se torna dependente da máquina, a gente sabe que dia sim,dia não,temos que estar junto dela,junto com ela fazendo o que deve ser feito em termos de eliminação de líquido, e limpeza e filtragem das toxinas. Como o rim não filtra bem, a gente depende totalmente da máquina, então a gente tem realmente ela como uma aliada. É uma aliada que a gente as vezes não queria ter, mas realmente é preciso, tá entendendo?! Hoje eu to meio cansado, porque eu estou com excesso de líquido, eu bebi muita água ontem, e vim quase 5 quilos a mais, de peso. Vim pesadão. Vim pesado, então a gente tem o pulmão que fica não fica 100%, fica dividindo o oxigênio com o liquido, então o pulmão não fica a 100 por hora, fica mais ou menos a 60. O corpo muda um pouco realmente, principalmente pelo excesso de líquido. Como o pulmão fica inchado com o liquido, a gente já não tem a respiração... perde um pouco da respiração, e a gente vai perdendo um pouco do fôlego, a gente cansa mais rápido, a gente vai cansando. E acontece por ai as conseqüências no seu corpo começa por ai, a gente não fica...o corpo não é mais 100% em termos de normalidade, nós não somos mais um corpo normal, como uma pessoa que não faz diálise. Então é mais ou menos por ai, tem alguns efeitos. Em cima disso tudo também os próprios efeitos da hemodiálise, após diálise a gente fica muito fraco, muitas toxinas são

89 eliminadas, mas também muitas vitaminas do corpo são eliminadas pela máquina. Então a gente fica meio fraco, meio dependente de ter um suplemento alimentar, de ter uma vitamina após diálise. É mais ou menos por ai. (Álvaro, 54 anos, 2 anos de hemodiálise)

O que Álvaro fala é o reflexo da rotina de alguém que convive há bastante tempo com a DRC. Em algum momento, as limitações do corpo, como o citado, podem ser controladas e os efeitos colaterais do tratamento acabam se tornando possíveis de um cuidado, e o cuidado com o pese e a alimentação, algumas formas de controle muito presente no universo de um doente renal crônico.

A alimentação passa a ser regulada por indicações médicas, onde cada paciente é acompanhado por um nutricionista e recebe vários livretos sobre uma alimentação saudável para a DRC. Nessa perspectiva da doença, comer bem não significa comer um pouco de cada coisa, pois existem os vilões da hemodiálise, aquelas comidas que tem muito potássio32, por exemplo, são sempre comentadas nas conversas entre os pacientes.

Como de acordo com o que Dora fala, o equilíbrio entre o peso, a dieta e aprender a lidar com a máquina pode gerar uma melhor relação com o tratamento. Ela que está na diálise pela segunda vez conta:

Eu mesmo diminuo meu peso, eu mesmo aumento meu peso, peso seco quando tá, porque tem pessoas que ficam vomitando, passando mal estar, tendo dor de cabeça. Eu não tenho nada disso. Por que? Porque eu aprendi a ter o contato com a máquina. Então quando eu vejo que eles tão... ela tá... a médica tá baixando demais o meu peso, eu percebo. Eu sei o que é liquido, eu sei o que é massa no meu corpo, né? E daí, como bem graças a Deus assim, como direito. Porque essa nutricionista de lá quase que me mata, quase que me mata, quase que morro. Porque não era para mim fazer esse regime, esse regime, que ela passou para mim essa dieta que ela passou pra mim, não existia. Uma dieta que você não pode, eu praticamente não comia sal nenhum, eu não podia comer, se o rim já tá ruim. Não podia comer sal nenhum, não podia comer um pedacinho de queijo, não podia comer leite, não podia comer nada. E, meu Deus, nosso organismo, nosso corpo precisa de vitamina. Precisa de sódio, nosso corpo precisa de um pouco de água e nem água. (Dora, 42 anos, 6 meses de hemodiálise)

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A ingestão de potássio pode trazer complicações sérias, causando problemas musculares, fraqueza e, até mesmo, parada cardíaca. E é recomendado que ele sega ingerido em pequenas quantidades para aqueles que realizam hemodiálise, pois a máquina, como dizem os interlocutores, “não tira” o potássio, e esse fica acumulado no corpo.

90 Essa narrativa traz algo interessante para a compreensão do universo da DRC, durante todo o meu trabalho de campo, em todas as conversas e em momentos com os pacientes, a dieta era assunto constante e motivo de muita euforia. Por ser uma doença que exige muito fisicamente, em função da diálise, a dieta é essencial para que o corpo se adapte a ela. No entanto, de todos os meus interlocutores, nenhum afirmou seguir a dieta passada pelos médicos, isso, que parece ser controverso é constante no grupo que eu pesquisei. Os mais diversos motivos são oferecidos para justificar, mas o que é convergente entre eles é que, com a dieta passada pelos médicos, eles teriam que mudar completamente suas rotinas alimentares, e isso não era possível, fosse por motivos econômicos, fosse por costume, fosse por rejeição da família (que não aceitava aquele cardápio) e principalmente, porque eles diziam que o corpo ficava fraco, não tinham condições de agüentar o tratamento e ficavam muito debilitados. Com o tempo, descobriram que alterando uma coisa ou outra na alimentação voltavam a ter vigor e energia para agüentar o dia.

É fala comum também, o fato deles me contarem que sentem falta de comer muitas coisas, mas que muitas vezes evitam comê-las porque sabem que terão problemas futuros, que poderão passar mal. Mas, sempre existe que fuja da regra, e Valente, um dos interlocutores citados nesse trabalho, como aquele que gosta da vida e não tem medo de viver, ele me confessou que certa vez estava com muita vontade de comer uma jaca – uma fruta que ele gosta muito – mas que sabia que não faria bem e mesmo assim comeu, só que o seu desejo era tão grande que ele foi comendo e não se deu conta da quantidade, e acabou passando mal e tendo de ir para o hospital por conta disso.

Assim, a alimentação é mais uma forma onde o corpo está em sintonia com a experiência vivida da doença e a forma de lidar com a dieta acaba sendo uma tecnologia do corpo, por apresentar-se como uma forma de regulamentação, um aparelhamento para a manutenção do estado de bem-estar durante a hemodiálise. E as refeições e o modo como cada um come é determinado a partir da tolerância do corpo na máquina. Com isso a dieta não pode ser tida como padrão, cada um tem sua “fórmula mágica”, mas todos aconselham que a dieta seja seguida dentro das possibilidades do corpo e que a indicação médica seja revista a partir da relação corporal e dos efeitos do tratamento.

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