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A Constituição pátria de 1988 foi promulgada em um cenário de repulsa à ditadura militar e a toda a barbárie que ela representou, ao violar os mais preciosos direitos humanos, colocando-se por terra toda a construção da humanidade no sentido do enaltecimento da dignidade da pessoa humana.

Assim, a dignidade da pessoa humana não foi prevista como um direito fundamental na nossa Constituição, mas foi encartada em seu Título I (Dos Princípios Fundamentais), como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III).

Segundo André Ramos Tavares, isso significa que o princípio da dignidade humana é o “fundamento e fim da sociedade brasileira” 138. Ingo Sarlet vai ainda mais além: para ele, o

princípio da dignidade humana é o “núcleo essencial de nossa Constituição formal e material”139. Com efeito, a dignidade humana se mostra como um valor normativo superior;

um valor insuperável, acima, mesmo, de qualquer norma.

Para Sarlet, isso significa, também, que a Constituição Federal “reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.”140 É a

consagração da já mencionada teoria kantiana, que apregoa a não coisificação do ser humano, a servir de instrumento para a consecução das finalidades estatais. Muito ao contrário, o ser humano é o centro, é o sujeito a quem o Estado deve servir.

A dignidade da pessoa humana, portanto, é o “metaprincípio” que deve guiar todo o ordenamento jurídico. Com efeito, no dizer do douto Jorge Miranda:

Característica essencial da pessoa – como sujeito, e não como objecto, coisa ou instrumento – a dignidade é um princípio que coenvolve todos os princípios relativos aos direitos e também aos deveres das pessoas e à posição do Estado perante elas. Princípio axiológico fundamental e limite transcendente do poder constituinte, dir-se-ia mesmo um metaprincípio. 141

138 TAVARES, André Ramos. Op. cit. p. 552. 139 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. 2010. p. 71. 140 Ibidem, p. 75.

141 MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marcos Antonio Marques da (coordenação). Tratado luso-

Convém destacar que o princípio da dignidade humana encontra-se também presente em diversos outros artigos do texto constitucional, podendo-se afirmar que ele sobrepaira toda a Constituição. Assim, o artigo 170, caput, determina que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna; o art. 226, § 6º, fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade humana e paternidade responsável; o artigo 227, caput, consagrou o direito à dignidade à criança e ao adolescente, dentre outras previsões.

Ocorre que o princípio da dignidade humana, embora não previsto como um direito fundamental, relaciona-se diretamente com inúmeros direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, mormente com relação aqueles que devem ser respeitados pelo Estado no cumprimento do seu dever punitivo, conforme se verá a seguir. Sobre o tema, bem elucida Luiz Flávio Gomes e García-Pablos:

O princípio da dignidade constitui o denominador comum de todos os demais princípios limitadores do ius puniendi assim como do próprio modelo de Estado que adotamos (Estado constitucional e democrático de direito – CF, art. 1º, III). Consoante o princípio da dignidade da pessoa humana, que é o valor-síntese desse modelo de Estado, ao ser humano (só pelo fato de existir) é conferido uma série de direitos e garantias fundamentais, que não só permitem o desenvolvimento da sua personalidade, senão também a própria convivência com a autoridade do Estado (que é o titular único do ius puniendi). Não existe liberdade onde o ser humano deixa de ser pessoa e é transformado em coisa. O respeito à dignidade da pessoa humana implica para o Estado não só a abstenção da prática de atos lesivos, como também o cumprimento de pautas positivas de inclusão.142

A Constituição de 1988, em seu art. 5º, traz inúmeros direitos fundamentais e princípios, que devem ser observados pelo Estado no cumprimento de seu dever punitivo, diretamente ligados à noção de dignidade, conforme já explicitado no item 4.2.2 deste trabalho, tais como: vedação ao tratamento desumano ou degradante (inciso III); nenhuma pena passará da pessoa do condenado (inciso XLV – princípio da pessoalidade da pena); respeito à integridade física e moral do preso (inciso XLIX); separação dos presos de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (inciso XLVIII - princípio da individualização das penas); direito das presidiárias de permanecerem com seus filhos na fase da amamentação (inciso L – princípio da humanização das penas); julgamento por autoridade competente (inciso LIII – princípio do juiz natural); observância ao devido processo legal e

brasileiro da dignidade humana. 2ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 170.

ampla defesa (incisos LIV e LV); presunção de inocência (inciso LVIII); individualização das penas (também previsto no inciso XLVI) e a proibição de penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, banimento e cruéis (inciso XLVII – princípio da humanidade da pena).

Para Bianchini, García-Pablos e Luiz Flávio Gomes, tais incisos estão diretamente relacionados aos princípios constitucionais da proibição da pena indigna e da humanidade da pena,143 devidamente delineados alhures. Bem explicita Jorge Miranda que “o valor eminente

reconhecido a cada pessoa” explica a “garantia da integridade pessoal contra a tortura e os tratos e as penas cruéis, degradantes ou desumanas”. Ensina, ainda, que “a dignidade da pessoa permanece, independentemente dos seus comportamentos, mesmo quando ilícitos e sancionados pela ordem jurídica” 144.

Ensina José Afonso da Silva145 que a Constituição de 1988 foi mais além do que as

constituições nacionais anteriores, visto que não se limitou a abolir de seu texto as penas cruéis, como o fez a Constituição de 1824, mas vedou expressamente a prática de tortura ou tratamento desumano ou degradante, tendo ainda previsto várias garantias penais de modo a efetivar os seus comandos, a saber:

A fim de dotar essas normas de eficácia, além de cominação de penas, a atual Carta Magna preordena várias garantias penais apropriadas, como o dever de comunicar, imediatamente, ao juiz competente e à família ou pessoa indicada, a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre; o dever também da autoridade policial de informar ao preso seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, assegurada a assistência da família e de advogado; e o direito do preso à identificação dos responsáveis por sua prisão e interrogatório policial. 146

Com efeito, tais garantias processuais do preso tem o condão de inibir abusos e arbitrariedades no momento das prisões e dos interrogatórios, possibilitando a identificação e eventual responsabilização dos agentes que a executaram, seja por ação ou por omissão, o que representa grande avanço, nada obstante se saiba que tais medidas por si só não conseguiram abolir odiosas práticas, mas, sem dúvida, é um relevante fator de controle.

143 Ibidem, p. 387-393.

144 MIRANDA, Jorge. Op. cit. 2009. p. 171 e 174.

145 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 199.

Lembra Walter Nunes da Silva Júnior que tais garantias processuais penais previstas na Constituição de 1988 e noutras constituições são frutos do processo de resgate das origens do processo penal, sob a ótica dos direitos fundamentais, especificamente da visão de Beccaria a respeito das penas, com ênfase na reserva legal e na proporcionalidade entre o crime cometido e a pena aplicada, representando o limite do direito de punir do Estado:

A ideia central de Beccaria era a processualização do direito de punir como instrumento indispensável para limitar a persecução criminal, doutrina que influenciou a declaração dos direitos fundamentais na Constituição americana, enxertados mediante as primeiras emendas que lhe foram incorporadas. Ademais, o exame dos direitos fundamentais firmados nas Constituições alemã, italiana, espanhola e portuguesa mostra a influência da doutrina beccariana, assertiva que se aplica, igualmente, ao constitucionalismo brasileiro, como se percebe do estudo das Cartas Políticas promulgadas ao longo do tempo, notadamente da de 1988. O aspecto aqui assinalado da identidade das idéias de Beccaria com o conteúdo dos direitos fundamentais reconhecidos nos textos constitucionais é tão instigante que basta observar que princípios nunca antes consignados expressamente em nossas constituições, como o da presunção da não-culpabilidade ou de inocência, do direito ao silêncio, da publicidade e, até mesmo, mais recentes, como o da duração razoável do processo, inserido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, fizeram parte de suas idéias.147

Quanto à proibição de trabalhos forçados, o que se veda é o trabalho vexatório, humilhante, posto que o trabalho é incentivado na Lei de Execuções Penais, podendo inclusive levar à remissão de dias da pena, conforme se verá mais adiante.

Relativamente à proibição da prisão perpétua, expressamente proibida pela Constituição de 1988, há que se mencionar que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, aprovada pelo Brasil, juntamente com seu Protocolo Facultativo, pelo Decreto- Legislativo 272, de 04.10.2007, ratificada em 12.11.2007, e promulgada pelo Decreto 6.340, de 03.01.2008, previu, em seu artigo 77, 1, “b”, a pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem.

Assim, diante desse conflito aparente de normas, há que se analisar a questão, cuja solução é indicada pela própria Constituição Federal. Ora, o artigo 4º, inciso II, da Carta Federal explicita que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. No caso em debate, como a norma da Constituição Federal de 1988 é mais favorável aos direitos humanos, então deve prevalecer. Nesse sentido, convém 147 SILVA Júnior, Walter Nunes da Silva da. Reforma tópica do processo penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principais modificações do júri. Contém a Lei 11.900, de 8.01.2009, que disciplina o interrogatório por videoconferência. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 14.

observar as lições de Carolina Alves de Souza Lima e Oswaldo Henrique Duek Marques: Diante desse princípio que rege o Direito Internacional dos Direitos Humanos, verifica-se que a Constituição brasileira prevê a regra não só mais benéfica, mas também a que está em consonância com a temática dos Direitos Humanos, e que, por isso, não admite penas cruéis, desumanas ou degradantes. Ademais, vários tratados internacionais, igualmente ratificados pelo Brasil, e que estão no mesmo plano hierárquico (não há hierarquia entre os tratados internacionais de direitos humanos), proíbem, expressamente, toda forma de tratamento cruel, desumano ou degradante, categoria na qual se encontra toda pena de caráter perpétuo. A prisão perpétua é, em essência, uma pena cruel, desumana e degradante, uma vez que priva o ser humano de qualquer perspectiva de transcendência. 148

Sobre o princípio da prevalência dos direitos humanos, doutrina Celso Lafer que esse princípio “afirma uma visão do mundo – que permeia a Constituição de 1988 – na qual o exercício do poder não pode se limitar à perspectiva dos governantes, mas deve incorporar a perspectiva da cidadania” 149. Mazzuoli bem coloca que o princípio da prevalência dos direitos

humanos, também chamado de princípio internacional pro homine, deve ser o guia do intérprete, quando se esteja diante de um conflito aparente de normas, inclusive diante de um conflito entre normas de direito interno e de direito internacional. Convém transcrever suas lições:

[...] Essa primazia se consolida como um princípio do direito internacional público pós-moderno, já nominado de princípio internacional pro homine. Por meio dele, não há que se falar na primazia absoluta de uma norma em rechaço a outras, tampouco no estabelecimento de fórmulas ou critérios fechados de soluções de antinomias, incapazes de levar ao diálogo das fontes e de sopesar o ‘melhor direito’ para o ser humano no caso concreto.150

Portanto, o intérprete há que buscar a interpretação que assegure o “melhor direito” para o ser humano no caso concreto, de modo a efetivar o comando previsto no art. 4º, inciso II, da CF/88.

Os dispositivos constitucionais que tratam sobre execução penal são normas de aplicabilidade imediata, posto que, em geral, contêm vedações e proibições de violação ao princípio da dignidade do apenado, deixando bem claro qual a conduta positiva ou negativa 148 LIMA, Carolina Alves de Souza e MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. O princípio da humanidade das penas. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marcos Antonio Marques da (coordenação). Tratado luso-brasileiro

da dignidade humana. 2ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 445-446.

149 LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. São Paulo: Manole, 2005. p. 14.

150 MAZUOLLI, Valério de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 227.

que o Estado brasileiro deve seguir, ao executar as sanções penais. E o cumprimento dessas normas deveria estar sendo exigido, mormente, pelos atores responsáveis, como Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, e sociedade civil organizada, mas o que se vê, no mais das vezes, é o vazio do silêncio e da omissão.

Feitas tais considerações, convém analisar a temática da dignidade do apenado sob as lentes do ordenamento infraconstitucional interno, conforme se verá no tópico a seguir.