2. OS DIREITOS SOCIAIS E A GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL
2.1. A dignidade humana e sua origem histórica
Para se adentrar no estudo da dignidade humana, é preciso, inicialmente,
tecer algumas considerações sobre o conceito de pessoa.
É certo que a concepção moderna de pessoa, difere daquela desenvolvida
pela filosofia grega. Segundo Aristóteles
83,
A cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza uma animal social, e que é por natureza e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade [...] Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal
83 Política, I, 1253b, 15. Disponível em http://projetophronesis.com/2009/01/10/o-homem-e-um-
gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza não faz nada sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer, os outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e externá-las entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto; a característica especifica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.
O homem era visto como um animal político pertencente ao Estado e estava
em íntima conexão com o cosmos, com a natureza. Não se falava em
personalidade.
O conceito de pessoa, como ser espiritual, surgiu com o Cristianismo, quando
o homem passou a ser valorizado individualmente, “despertando os sentimentos de
solidariedade e piedade para com a situação miserável do próximo, que estarão na
base das considerações acerca dos direitos sociais e do direito a condições mínimas
de existência (mínimo existencial).”
84Muito tempo depois, já no século XVIII, o movimento iluminista, focado na
razão humana, afastou a religiosidade e colocou o homem como centro do sistema
de pensamento
85. Houve ainda um "deslocamento do Direito do plano do Estado
para o plano do indivíduo, em busca do necessário equilíbrio entre a liberdade e a
autoridade."
86Contudo, foi Immanuel Kant quem desenvolveu a ideia de que o homem é um
fim em si mesmo. Defendia a separação de poderes e o princípio da legalidade
como forma de assegurar aos homens a liberdade para perseguirem seus
objetivos.
87"Só o homem não existe em função de outro e por isso pode levantar a
pretensão de ser respeitado como algo que tem sentido em si mesmo"
88.
84 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da
dignidade da pessoa humana. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p.. 127.
85 Ibidem, p. 128.
86 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 4. 87 BARCELLOS, op. cit., p. 128.
Segundo Ana Paula de Barcellos, nas primeiras décadas do século XX, a
concepção humanista já estava difundida, e algumas Constituições já consagravam
direitos individuais e alguma separação de poderes. Porém, destaca que
O último momento especialmente marcante no percurso histórico da noção de dignidade da pessoa humana é também o mais chocante. A revelação dos horrores da Segunda Guerra Mundial transtornou as convicções que até ali se tinham como pacíficas e “universais”.
[...]
A reação à barbárie do nazismo e do fascismo em geral levou, no pós- guerra, à consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos internacionais. Diversos países cuidaram de introduzir em suas Constituições a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado que se criava ou recriava (Alemanha, Portugal e Espanha, e.g., em suas novas Cartas; a Bélgica tratou do tema através de emenda à Constituição), juridicizando, como estrutura constitucional, o tema89.
Mas, apesar de ter se tornado um axioma da civilização ocidental, a dignidade
humana, ainda possui um “território muito amplo de indeterminação”
90, o que dificulta
a elaboração de um conceito fechado sobre o instituto.
Ao tratar do tema, Vidal Serrano Nunes Junior
91frisa a importância da
chamada autodeterminação como inerente à noção de dignidade humana, pois, com
base no pensamento kantiano, o Estado deve servir ao ser humano e não
instrumentalizá-lo:
Como valor absoluto, a noção de dignidade há de integrar o núcleo irredutível de qualquer direito predisposto à proteção do ser humano. Desse modo, a noção de dignidade não pode ficar adstrita à autodeterminação, pois por ser valor absoluto, que não deve ser mitigado frente a outros interesses, a dignidade deve ser preservada também por ação positiva, quer frente ao Estado, quer frente a particulares.
Nesse sentido, conclui-se que os seres humanos, além de serem dotados de
autodeterminação, devem também ter uma vida comunitária que lhes possibilite a
participação política e a obtenção dos meios materiais necessários à sua
sobrevivência.
89 BARCELLOS, op. cit., p. 129-130.
90 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988. São Paulo: Verbatim,
2009, p. 111.
Ao discorrer a respeito da dignidade humana como expressão da ideia de
“comunidade constitucional inclusiva”, Canotilho
92explica que,
Por último, a dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à ideia de comunidade constitucional inclusiva pactuada pelo multiculturalismo mundividencial, religioso ou filosófico. O expresso conhecimento da dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da República significará, assim, o contrário de “verdades” ou “fixismox” políticos, religiosos ou filosóficos. O republicanismo clássico exprimira esta ideia através dos princípios da não identificação e da neutralidade, pois a república só poderia conceber-se como ordem livre na medida em que não se identificasse como qualquer “tese”, “dogma”, “religião” ou “verdade” de compreensão do mundo e da vida. O republicanismo pressupõe qualquer doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente (J. Rawls).
Vidal Serrano Nunes Junior igualmente entende que todo ser humano,
suposto como incluído na sociedade, possui o direito a ter direitos, não apenas os de
autodeterminação, mas também os necessários à preservação de sua necessidade
material, ou seja, os direitos fundamentais sociais
93.
Verifica-se, assim, a existência de uma abertura e de um caráter
multidimensional da dignidade humana, fato que dificulta a sua conceituação. Ingo
Wolfgang Sarlet
94diz ser preciso conceituar o instituto e o faz da seguinte forma:
Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
92 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988. São Paulo: Verbatim,
2009, p. 225-226.
93 Ibidem, p. 113.
Para Alexandre de Moraes
95:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. [...] A ideia de dignidade da pessoa humana encontra no novo texto constitucional total aplicabilidade [...] e apresenta-se uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece-se verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever-ser configura-se pela existência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria.
Por sua vez, Vidal Serrano Nunes Junior
96, em explicação sobre o tema, traz
um conceito de dignidade humana que abarca as funções positiva e negativa do
instituto:
O postulado ético que, incorporado ao ordenamento jurídico, consubstancia o princípio segundo o qual o ser humano, quer nas suas relações com seus semelhantes, quer nas suas relações com o Estado, deve ser tomado como um fim em si mesmo, e não como um meio, o que o faz dignitário de um valor absoluto, donde exsurge um regime jurídico que apresenta uma feição negativa e uma positiva. A primeira impõe aos demais e ao estado o dever de respeito à incolumidade física, psíquica e social (entendida aqui como liberdade para se autodeterminar e para, com os demais, participar da autodeterminação da comunidade na qual se integra). A segunda consubstancia a exigência de prestações do Estado que afiancem os pressupostos materiais mínimos para a preservação da vida e a inclusão na sociedade, bem como a proteção em relações privadas, em que se saliente sua situação de vulnerabilidade (por ex., relações de trabalho, consumo etc).
Por fim, o autor conclui que a interpretação de todo e qualquer direito social
deve ser feita à luz do princípio da dignidade humana, pois ele indicará um mínimo
95 MORAES. Alexandre. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º ao 5º
da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 60-61.
96 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988. São Paulo: Verbatim,