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Capítulo III: Traços cristológicos das Memórias

3.4 A dimensão cordial de Jesus

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, derivada da tradição teológica do séc. XVII e centrada na mística da reparação e da consolação, estava ligada ao culto eucarístico, mais concretamente, à adoração eucarística268. Esse movimento de renovação espiritual iniciou-se entre o povo cristão, precisamente, com a prática da adoração eucarística. A adoração era feita nas igrejas e tinha como propósito a consolação e reparação em Cristo das ingratidões causadas pela sociedade269.

Também nas Aparições angélicas aos videntes a devoção ao ‘Coração de Jesus’ teve um grande relevo. Sendo a mesma estrutura devocional dos séculos anteriores, ela contribuiu significativamente para a espiritualidade da reparação assumida e vivida pelos videntes. Assim, a análise da cristologia nominal do ‘Coração de Jesus’ nas Memórias é muito significativa por esta ser a fonte inspiradora da mensagem de conversão transversal a toda a Mensagem de Fátima.

3.4.1. O ‘Coração de Jesus’ no ciclo angélico

A referência ao ‘Coração de Jesus’ surge na primeira Aparição associada à oração “Meu Deus eu creio” ensinada pelo Anjo aos videntes. Apesar da oração ser explicitamente de cariz teocêntrico, ela é igualmente cristocêntrica, por ser atendida pelo ‘Coração de Jesus’ e, em consequência, pode-se depreender que se dirige ao Deus Uno e Trino da fé cristã. Esta fórmula de adoração ensinada aos videntes pretende criar uma vida interior e de união com Deus por meio do ‘Coração de Jesus’270.Esta angelofania foca-se no mistério do

Filho de Deus: enviado pelo Pai para estabelecer a Nova Aliança, na Sua entrega na cruz realiza a redenção dos homens e intercede pelos homens junto do Pai271.

Na segunda Aparição angélica, o ‘Coração de Jesus’ assume uma acentuação profundamente soteriológica, como se nota pela exortação do Anjo: “Orai! Orai muito! Os

268 Cf. J. FARIAS, «A espiritualidade dos Pastorinhos, à luz da teologia da reparação», pág.301. 269 Cf. J. FARIAS, “Adoração eucarística”, in Enciclopédia de Fátima, pág. 16.

270 Cf. P. COELHO, «Ciclo Angélico: a pedagogia da adoração reparadora», págs.215-216. 271 Cf. P. COELHO, «Ciclo Angélico: a pedagogia da adoração reparadora», págs.215-216.

Corações de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente ao Altíssimo orações e sacrifícios”272. A mensagem angélica mostra o rosto do ‘Coração de Jesus’ ligada à reparação pedida aos videntes, cujo significado soteriológico está relacionado com o sacrifício de Cristo na cruz oferecido ao Pai por toda a humanidade273. Este ato salvífico de Cristo constitui o princípio eficaz da participação dos videntes na obra de reparação e desperta (ou promove) neles a solidariedade para com os pecadores. Esta solidariedade em Cristo é fruto da pedagogia divina que une os corações dos três videntes à figura do ‘Coração de Jesus’. Nesta união os videntes oferecem-se juntamente com o Senhor ao Pai pelos pecadores274.

Na terceira Aparição, o mensageiro celeste faz a menção da referência cristológica ao ‘Coração de Jesus’ na oração de adoração eucarística: “pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração”275. Esta expressão liga a devoção ao ‘Coração de Jesus’ à sua história na Igreja, porque mostra a continuidade da união desta espiritualidade com a adoração reparadora ligada ao sacramento eucarístico. Esta nomenclatura situa a figura do ‘Coração de Jesus’ no âmago da espiritualidade eucarística, através da qual se descobre que é na Eucaristia que se concentram a adoração e a reparação. Deste modo, o memorial eucarístico – oferecido pelo Anjo na comunhão reparadora276 – acentua que a obra de reparação assenta nos merecimentos do ‘Coração de Jesus’, sendo uma dádiva do amor divino aos videntes para que se tornem participantes dela277.

3.4.2. A unidade dos “Corações de Jesus e de Maria”

O estudo da figura do ‘Coração de Jesus’ no ciclo angélico é indissociável da figura de Maria. De facto, desde a primeira Aparição do Anjo que a figura do ‘Coração de Maria’ surge ligado ao ‘Coração de Jesus’: “Orai assim, os Corações de Jesus e Maria estão atentos á

272 Cit. 2ª, fl. 9v, pg. 152

273 Cf. P. COELHO, «Ciclo Angélico: a pedagogia da adoração reparadora», págs.221-222. 274 Cf. P. COELHO, «Ciclo Angélico: a pedagogia da adoração reparadora», págs.222-223. 275 Cit. 2ª, fl.10v, p.153

276 “Tomai e bebei o Corpo e Sangue de Jesus Cristo, orrivelmente ultrajado pelos homens ingratos;

reparai os seus crimes e conçulai o vosso Deus”. Cit. 2ª, fl.10v, pág.153.

vós das vossas suplicas”278. Na terceira memória, Lúcia explica como Jacinta interpretava na sua espiritualidade esta íntima união, bem como o que lhe parecia ser o pedido de Deus para a sua oração: “o Coração de Jesus quer, que a seu lado se venere o Coração Imaculado de Maria”279. Na sua vivência deste amor ardente por Deus, Jacinta entende que é da vontade de Cristo que com Cristo se venere o Coração de Maria. O significado desta união dos ‘Corações de Jesus e de Maria’ apresenta-se teologicamente com dois sentidos: o primeiro, bíblico-teológico; o segundo, eclesiológico.

O sentido bíblico-teológico refere-se à união de Maria com a obra redentora de Cristo revelada nos Evangelhos280. No início do Evangelho de S. Lucas, o Coração de

Maria surge como o primeiro a acreditar no que lhe fora anunciado da parte de Deus no episódio da Visitação (cf. Lc 1, 45). Mais tarde, aquando do nascimento de Jesus, foi ele que prestou os primeiros cuidados ao seu Filho Jesus em Belém (cf. Lc 2, 19). Também, no final da vida de Jesus se dá um forte relevo à presença do ‘Imaculado Coração de Maria’. No capítulo dezanove de S. João relata-se que o Coração de Maria participou na agonia do Seu Filho na Cruz (cf. Jo 19, 25) e que viu o soldado a trespassar o coração do seu Filho (cf. Jo 19, 34). Também neste final se mostra a concretização espiritual da profecia de Simeão (cf. Lc 2, 35). Assim, a espiritualidade associada ao ‘Coração de Maria’ aparece vinculada ao ‘Coração de Jesus’ nas Aparições angélicas, sem nada acrescentar à eficácia salvífica de Cristo único mediador281.

O sentido eclesiológico é expresso de modo exímio pelas palavras de S. Paulo VI no encerramento do terceiro período do Concílio Vaticano II: “o conhecimento da verdadeira doutrina Católica sobre Maria será sempre a chave da exata compreensão do mistério de Cristo e da Igreja, porque em Maria tudo é referido a Cristo e tudo depende d’Ele”282.Esta

frase elucida a compreensão da ligação entre o ‘Coração de Jesus e de Maria’ que perpassa toda Mensagem de Fátima.

278 Cit. 2ª, fl. 9v, pág. 152. 279 Cit. 3ª, fl. 5v, pg.195.

280 Cf. P. COELHO, «Ciclo Angélico: a pedagogia da adoração reparadora», pág.216. 281 Cf. P. COELHO, «Ciclo Angélico: a pedagogia da adoração reparadora», pág.217.

282 Cit. E. BUENO DE LA FUENTE, «Dimensão teocêntrica da mensagem de Fátima», in

COUTINHO, Vítor, coord., Mensagem de Esperança para o Mundo - Acontecimento e Significado de

Verifica-se então que, ao longo das Aparições, a figura do ‘Coração de Jesus’ vai sendo progressivamente desvelada aos videntes em três fases distintas. A primeira fase, na primeira oração do Anjo, na qual é criado o primeiro laço entre os videntes e o ‘Coração de Jesus’. A segunda fase, na união da figura do ‘Coração de Jesus’ à oração e ao sacrifício. Por último, a terceira fase, em que se destaca a íntima ligação da espiritualidade do ‘Coração de Jesus’ ao culto eucarístico. A novidade das revelações, contudo, não se centra no seu conteúdo, mas na progressividade e gradualidade da pedagogia divina para com os videntes.

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