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A dimensão espacial | um teatro que habita o espaço

Para tratar da dimensão espacial da habitação teatral, aproximo a discussão do ponto de vista arquitetônico, a partir do livro Habitar, do finlandês Juhani Pallasmaa, com a intenção de refletir sobre a arquitetura e a paisagem dos bairros habitados pelo Teatro Público, bem como investigar o modo como o grupo se relaciona ambas. De acordo com Pallasmaa (2017), a essência da arquitetura se encontra no ato de habitar que, para o autor, tem como dimensões primordiais o espaço e o tempo. Para ele, o habitar dá significado e singularidade ao espaço, sendo a base do modo como um sujeito se relaciona com o mundo. Em seu estudo sobre o habitar, o arquiteto identifica no “lar” um “mediador entre as esferas públicas e privadas” (PALLASMAA, 2017, p.

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27). Segundo ele, as imagens da casa servem como referência para pensar a arquitetura, ou melhor, “a arquitetura resulta do ato de habitar e, por conseguinte, suas imagens primordiais são identificadas mais facilmente na casa, a morada humana” (PALLASMAA, 2017, p. 103).

A casa do Saudade, por exemplo, guardava e nos transmitia as marcas do bairro ao mesmo tempo em que os escritos de giz na entrada, os utensílios do café, as roupas nas araras, os mapas conceituais nas paredes da sala, dentre outros objetos, eram os traços de uma nova presença na casa que desenhavam a nossa habitação no Saudade. Para o Pallasmaa (2017, p.18), o lar não diz respeito a um objeto simplesmente, mas a uma “condição complexa e difusa que integra memórias e imagens, desejos e medos, o passado e o presente”, bem como os hábitos adquiridos pelo tempo. Isso significa que o habitar, também para ele, exige uma relação de permanência, isto é, “não pode se construir em um instante, pois tem uma dimensão temporal e uma continuidade, sendo um produto gradual da adaptação da família e do indivíduo no mundo” (2017, p. 18).

Como já foi dito no início deste capítulo, trazer o foco da discussão para a dimensão espacial do ato de habitar não significa ignorar que, no modo como pensamos esta prática, inevitavelmente, uma dimensão sempre está atrelada à outra. Basta resgatar a noção dos “espaços vazados” (Garrocho, 2015), que foi base para pensar a espacialidade dos bairros habitados pelo Teatro Público, na qual o princípio de “vazamento” já diz de um espaço poroso, que é atravessado pelas interferências do tempo e das relações. Nesse sentido, a dimensão do espaço do habitar perpassa também o tempo e o convívio.

Pensar a dimensão espacial na habitação teatral diz respeito tanto à espacialidade habitada – as ruas, praças, casas, mercados, bares, cemitérios – quanto ao modo de habitá-la – caminhar, estar, perceber, permanecer, frequentar – e esses dois aspectos são indissociáveis. Em primeiro lugar, é preciso considerar os espaços como entes ativos no lugar de objetos inanimados, consequentemente, isso requer escuta e disponibilidade para ouvir suas especificidades. Uma prática artística que se propõe a dialogar com o espaço público precisa compreender que essa relação é sempre uma via de mão dupla, de modo que os aspectos físicos, geográficos, históricos e simbólicos de um espaço interferem na percepção do artista, ao mesmo tempo em que o artista altera, revela e potencializa suas características a partir da maneira como se relaciona com o espaço. Para Pallasmaa (2017, p. 7-8), “por um lado, o habitante se acomoda no espaço e o

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espaço se acomoda na consciência do habitante, por outro, esse lugar se converte em uma exteriorização de seu ser, tanto do ponto de vista físico quanto mental”.

No trabalho do Teatro Público, quando habitamos um bairro, caminhamos pelas ruas, fixamos residência, contemplamos a vista da janela, sentamos à mesa de um bar com os moradores, entramos em cemitérios, contemplamos o pôr-do-sol, frequentamos certos estabelecimentos comerciais, conversamos, bebemos e comemos juntos, enfim, agimos e experienciamos a vida cotidiana dos bairros. Desse modo, a habitação teatral se configura como um ato convivial e sensível e não como uma estrutura concreta e imóvel. No caso do bairro Saudade, por exemplo, não se trata simplesmente de suas ruas e casas, mas das condições de vida de um local não verticalizado pela construção de prédios, característica das grandes cidades, que fez com que os atores associassem ao bairro um aspecto interiorano, no sentido de um outro tempo e fluxo que seu ambiente ainda permite existir, perceptível através da presença das pessoas nas portas das casas e de crianças que brincam nas ruas. Também no bairro Lagoinha, não se trata simplesmente da arquitetura tombada, mas das camadas de história e gerações que suas paredes guardam, a presença dos imigrantes italianos, da Rainha do Congado e dos hábitos de andar a pé e sentar na praça para “prosear”, que ainda persistem. Como explica Pallasmaa:

A fenomenologia da arquitetura se fundamenta em verbos e não em substantivos. O ato de aproximar de uma casa e não sua mera fachada; o ato de entrar, não a porta; o ato de olhar pela janela, não a janela em si; mais do que tais objetos puramente – todas essas expressões verbais parecem despertar nossas emoções (2017, p. 23).

A primeira forma de habitar os espaços do bairro que aparece em ambas as experiências analisadas nesta pesquisa é a deriva. Se inicialmente as ideias de habitação e deriva parecem se opor – no sentido em que o habitar pressupõe um tempo de permanência e a deriva (ou percurso) indica trânsito –, são os deslocamentos dentro de um território, as caminhadas e deambulações pelas ruas e estabelecimentos de um bairro que permitem uma percepção sensível dos espaços, bem como o convívio e a relação com os moradores, caracterizando uma forma específica de habitar. Assim, as relações estabelecidas com os espaços do bairro são, ao mesmo tempo, fixas e móveis: fixas no sentido de se fixarem na mesma região por um tempo e móveis porque propõem deslocamentos espaciais dentro do bairro, colocando atores e espectadores em movimento e em contato com a cidade.

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A cidade, mais do que a casa, é um instrumento de função metafísica, um instrumento intrincado que estrutura poder e ação, mobilidade e troca, organizações sociais e estruturas culturais, identidade e memória. Constituindo, sem dúvida, o mais significativo e complexo artefato humano, a cidade controla e atrai, simboliza e representa, expressa e oculta. Cidades são escavações habitadas da arqueologia da cultura expondo o denso da vida social (PALLASMAA, 2017, p. 47).

A prática de habitar a cidade favorece uma percepção sensorial dos sujeitos sobre os espaços e instaura um espaço-tempo diferente dos “movimentos rápidos e mecanizados” da cidade contemporânea que “nos impedem de estabelecer um contato íntimo e corporal com ela” (PALLASMAA, 2017, p. 47). Dessa forma, a habitação teatral favorece uma relação tátil com a cidade e não apenas visual, no sentido como fala Pallasmaa (2017, p. 48): “a cidade tátil nos acolhe como cidadão, plenamente autorizados a participar de seu cotidiano. A cidade tátil evoca nosso sentimento de empatia e envolve emoções”. Isso porque os traços da arquitetura, a extensão territorial, as texturas, os rastros e vestígios dos habitantes e transeuntes são elementos capazes de ativar sensações e memórias.

Se, para Pallasmaa (2017, p. 49), quando “habitamos a cidade e a cidade reside em nós”, de modo que “todas as cidades que visitamos se tornam parte de nossas identidades e consciência”, o mesmo ocorre na habitação teatral. Nesse sentido, quando habitamos um bairro, ele também passa a habitar nosso imaginário e nossa memória, o que vale tanto para os moradores do bairro quanto para os artistas.

Um edifício não é um fim em si mesmo. Um edifício altera e condiciona a experiência humana da realidade: um edifício emoldura, estrutura, articula, relaciona, separa e une, facilita e proíbe. Experiências arquitetônicas profundas são ações não objetos. Como consequência dessas ações implícitas, a reação corporal é um aspecto inseparável da experiência da arquitetura. As imagens arquitetônicas são promessas e convites: um piso é um convite a levantar-se e agir; uma porta convida a cruzá-la e entrar; uma janela, a contemplar a vista; uma escada, a subir e descer (PALLASMAA, 2017, p. 96).

Nesta perspectiva, habitar a cidade é experienciar sua arquitetura. As ruas íngremes do Lagoinha convidavam a descer mais do que a subir e os bancos da praça a sentar para tomar sol. A vista da casa do Saudade nos convidava a observar os cortejos fúnebres no cemitério, enquanto os buracos dos muros sugeriam espiar o seu interior ou encaixar os pés e as mãos nas fendas abertas para escalar e pular para o outro lado do muro, cruzando a barreira que separa os vivos dos mortos. Em ambos os bairros, os antiquários da Rua Itapecerica (Lagoinha) e o topa tudo da Rua Simeone (Saudade) convidavam a relembrar o passado. Como afirma Pallasmaa (2017, p.

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96), “a arquitetura dirige, proporciona e emoldura ações, percepções e pensamentos. E, principalmente, articula nossas relações com outras pessoas e com as instituições humanas”. Lugares diferentes convidam a experiências diferentes, ao mesmo tempo em que uma mesma ação pode ganhar sentidos distintos de acordo com o lugar – como aconteceu na primeira saída das mulheres no Saudade, quando a simples ação de andar, feita ao redor do cemitério, ganhou um peso específico. A arquitetura do cemitério concretiza o exemplo de um lugar onde a experiência não passa incólume: sejam os cemitérios com muros pichados, como no Saudade, ou outros com túmulos adornados, como no Bonfim, em todos os casos, para a maioria das pessoas este é um lugar a ser evitado.

Se, para Pallasmaa (2017, p. 96), “os autênticos ‘elementos’ da arquitetura (...) são

confrontos e encontros ativos”, à medida que a habitação teatral compreende os bairros não como

cenários de fundo para a criação – que seria comparável à crítica de Pallasmaa sobre ver a fachada ou a porta da casa como objetos –, mas como um território sensível a ser vivido, esta prática artística se configura também como uma “experiência arquitetônica” (PALLASMAA, 2017, p. 97).