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6. ASPECTOS COMPOSICIONAIS DA SÉRIE O SAGRADO

6.3 A ARTICULAÇÃO ENTRE OS ASPECTOS VERBAIS E NÃO

6.3.1 A dimensão não verbal: o representante em foco

Conforme apresentado nas seções anteriores, a organização do episódio marca, por meio da mudança de (tipos de) imagens, os limites entre a fala do narrador e do representante religioso. Durante a fala do narrador, há a veiculação de imagens diversas (como veremos na seção seguinte), já durante a fala do representante religioso há apenas uma única imagem sendo veiculada na maioria dos episódios, qual seja, a do próprio religioso. Junto dessa imagem, em close-up médio, há, no canto inferior esquerdo, a identificação do religioso (nome completo, função que exerce no contexto religioso e instituição religiosa a que pertence), conforme imagem abaixo:

60 Exemplo disso é a análise apresentada ao final da seção 6.1 em que há

convergência entre a voz do narrador e do representante judeu e divergência com o representante islâmico.

Assunto Religião Violência urbana Budismo Catolicismo Judaísmo Religiões afro-brasileiras

Lugar e papel social da mulher no mundo contemporâneo

Budismo Catolicismo

Judaísmo

Figura 6 - Representante religiosa em close-up médio

Fonte: O Sagrado (Rede Globo - Brasil)

Do ponto de vista enunciativo, conforme aponta Rose (2008), o close-up médio – uma convenção utilizada em fotografia e apropriada pela televisão – significa autoridade (como no caso dos locutores de notícias e peritos). Nesse caso, a escolha dessa convenção indica o investimento/reconhecimento de autoridade para os representantes que participam da campanha, ou seja, esses são vozes autorizadas a falar sobre a crença que professam e, por consequência, em nome das pessoas que também professem essa crença.

Essa autoridade é apresentada também por meio da titulação que é dada aos representantes no momento da veiculação de sua imagem (em letras brancas no canto inferior esquerdo da figura acima). Ao incluir nessa titulação as funções que eles exercem no contexto religioso, a emissora mostra que esses são investidos de autoridade nesse contexto (religioso), podendo assim representar o grupo, a comunidade que lideram – já que a maioria tem cargo de liderança.61

Se, em princípio, isso parece positivo por apontar que a emissora reconhece a autoridade desses líderes, dessas vozes, desses grupos sociais, por dar-lhes voz, esse reconhecimento implica a homogeneização desses grupos religiosos, personificados na pessoa do representante, já que é questionável o fato de esses religiosos realmente representarem os grupos sociais que a emissora diz que representam.

Na abordagem do grupo “evangélicos”, por exemplo, percebemos que os líderes escolhidos têm relação com apenas parte dos evangélicos,

61 Conforme mostra a identificação apresentada na tabela 05.

a parte mais tradicional, aliás, caracterizada pelo IBGE (2010) de “Evangélicos de Missão”. A maioria dos evangélicos no Brasil, no entanto, é de “Origem Pentecostal” (IBGE, 2010), vertente que foi negligenciada na série.

Nesse sentido, é claro o fato de que a emissora escolhe o representante para os credos religiosos ali presentes62, tendo, inclusive, escolhido certos credos em detrimento de outros. Há, então, um recorte importante sobre as perspectivas religiosas que a emissora busca mostrar/ dar voz, sobretudo, se observadas as vertentes de (não) crenças que não participam da série como é o caso do grupo das pessoas que se declaram ateus ou sem religião, que segundo o IBGE (2010) tem crescido significativamente nos últimos anos63.

No que tange à escolha do tipo de imagem (mostrar o representante) e do plano escolhido (em close-up médio), é possível afirmar, então, que a maneira com que a emissora intercala a voz desse sujeito ao enunciado institucional legitima o discurso de que a emissora esteja dando voz a essas vertentes religiosas, ou seja, está atribuindo o dito ao que diz – o religioso. Essa estratégia discursiva é convergente com que Bourdieu (1997) afirma a respeito de certa visibilidade proposta pela televisão, afirma o autor:

[...] a televisão pode, paradoxalmente, ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar; ou ainda, mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade (BOURDIEU, 1997, p. 24)

62 Ainda que o representante seja reconhecido pelo grupo religioso, é impossível

não ressaltar o fato de que há inúmeros representantes nesses grupos, ficando a critério da emissora (e a aceitação do representante) a escolha entre eles.

63 Segundo o IBGE esse grupo cresceu de 7,4%, em 2000, para 8%, em 2010, ao

lado dos evangélicos e espíritas. Disponível em:

http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-

censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2170&t=censo-2010-numero-catolicos- cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao

Na citação acima, o autor se refere aos fatos do jornalismo que são mostrados pela televisão, mas o são de uma forma específica, de modo que ocultam questões que são imprescindíveis ao noticiar aquele fato. Nesse sentido, mesmo que a informação esteja sendo mostrada, que seja visível ao telespectador, essa mesma visibilidade pode ocultar questões importantes sobre essa notícia. Estreitando o foco para O Sagrado, mesmo que os representantes estejam “sendo mostrados”, esse “mostrar” oculta questões importantes sobre a pluralidade religiosa (que é o que supostamente se faz), como o fato de que esses representantes podem não representar de fato esses grupos religiosos, como apontamos acima.

Do ponto de vista linguístico, esse processo de tornar visível o representante, dar-lhe voz diretamente, pode ser comparado à citação direta nos textos escritos. Nesse caso, é como se a emissora se distanciasse do que diz o representante, mostrando, por isso mesmo, que abre espaço para que ele fale. Assim, a estratégia de criar um discurso que valorize a emissora como a que promove a pluralidade religiosa é bem-sucedida, afinal, é incontestável o fato de que os religiosos estão ali, visíveis, são mostrados, como disse Bourdieu (1997), no espaço da emissora.

A utilização dessa “citação direta”, no entanto, pode não servir apenas para diferenciar a voz do narrador (institucional) da voz do religiosos, ressaltando essa última, mas também, como afirma Maingueneau (1997 apud RESENDE E RAMALHO, 2006), para usar a autoridade da voz alheia com vistas a sustentar sua própria posição valorativa diante dos assuntos abordados (como quando legitima-se que a violência tem origem no indivíduo e apenas nele); ou ainda, tomam-se essas vozes para confrontá-las, acentuando a diferença entre a posição da emissora (legitimada) contra a das religiões (contestadas no discurso institucional).

Assim, é possível afirmar que o tipo de imagem (plano) veiculada durante as falas dos representantes se constitui numa escolha discursiva estratégica para a efetivação do projeto de dizer da emissora, qual seja, afirmar que é uma empresa inclusiva, que dá voz às diversas (não tão diversas, na verdade) crenças religiosas, mesmo que, de fato, essa visibilidade seja absorvida pelo discurso de valorização da marca institucional.