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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

4.1 A disputa popular na tecedura do urbano

Os trabalhadores marginalizados são marcados pela preocupação com o valor dos aluguéis, com as impossibilidades de financiamento habitacional condizentes com os baixos salários, com as dificuldades no acesso à direitos sociais basilares como saúde e educação, e com a garantia de necessidades básicas relacionadas à moradia e própria permanência no espaço. O lugar social, expressado pela alocação periférica no acesso ao espaço, bens e serviços urbanos, articula desejos e necessidades, relacionando o espaço e o acesso a ele à construção de distintas experiências e percepções de classe.

Como argumenta Castells (1976), na interação entre o lugar do problema urbano na estrutura social, o lugar do grupo social nas relações de classe e as características político- ideológicas das organizações intervenientes, é que se encontra o segredo último dos movimentos sociais urbanos. Nesse sentido, apreendemos que esses movimentos são expressões políticas formuladas na experiência objetiva e subjetiva da classe que compõe sua base social, que vive sob os antagonismos sociais e se constitui a partir deles.

Os conflitos que envolvem a posse dos terrenos urbanos podem ser compreendidos como embates entre projetos de conservação e de subversão da ordem espacial orientada pela

propriedade privada e dirigida pelos interesses do capital. A luta por moradia, baseada nas próprias contradições da dinâmica da sociedade capitalista, confronta o urbano instituído, expondo as fissuras dos mecanismos de dominação do capital. São dessas fissuras, pois, que brotam as práxis criativas, dispostas a romper com a ordem dada, e a alterar ou reconstruir materialidades e sociabilidades.

É possível inferir que há uma relação dialética entre a condição de marginalidade e a opção central pela ação direta. As condições de reprodução a que são submetidos alijam esses trabalhadores do acesso ao mercado formal de habitações, enquanto, para a maior parte dessa camada, o pagamento do aluguel significa a privação de outras necessidades básicas, como alimentação. O processo de luta, que transforma a carência de moradia em uma reivindicação de urgência, constitui-se no âmbito de estratégias de sobrevivência.

Não desconsideramos que, nas diversas falas e relatos que registramos, a casa própria também aparece como sonho individual e familiar. A conquista da moradia, como ambiente de sociabilidade privada, é socialmente conformada como um símbolo de conquista, isto é, do êxito de uma moralidade que valoriza a segurança e a privacidade do lar familiar, perfazendo, como escreveu Kowarick (2009), uma condição de "cidadão privado", em uma sociedade cuja vida pública é excludente e violenta.

No mesmo sentido, o conflito entre a legitimação da propriedade privada e a reivindicação de função social, no contexto de latência das assimetrias sociais, evidencia-se no incomodo de muitos deles em se reconhecer como “invasores” ou, no caso da ocupação do Glória, na legitimação da ocupação pelo fato de se tratar de uma área pública.

O fato é que, objetivamente, estes trabalhadores sentem na pele a contradição entre a concentração do excedente social e a precarização das condições de reprodução da força de trabalho – contradição esta que não só se mantém como se aprofunda nos países da periferia do sistema –, e politizam no movimento social tanto a urgência quanto a demanda. Por certo, estes processos não são homogêneos ou totalizantes, e muito menos isolados. Se estas contradições representam as fissuras do programa político reivindicado por esses movimentos, voltando-nos às bases sociais sem-teto, fica evidente que, quando falamos em luta de classes, não estamos abordando um processo binário ou bilateral, e muito menos exterior às relações endógenas aos movimentos.

Uma vez que os movimentos sem-teto se constituem como coletividade a partir da vivência das experiências de privação, faz-se necessário compreender aqui que não só a

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objetividade, mas também a subjetividade destas experiências, são formulações relacionais. O cotidiano dos processos de politização das condições de marginalidade, nos revelaram a luta de classes que ocorre vividamente nos diversos processos individuais e coletivos de formulação e representação frente à realidade experimentada. As expressões de classe sobre as carências e privações relativas à espoliação urbana são produtos de embates, não só concretos, mas fundamentalmente ideológicos.

Não é possível, portanto, ignorar que a importação de elementos, normas e valores hegemônicos é intrínseca aos processos que projetam sua ressignificação. A impressão de dualidade quanto aos repertórios populares diz respeito à realidade sobre a constituição das classes trabalhadoras, com exatidão, das formas com que essa fração se constitui ideologicamente como classe. Menos que contradições endógenas, essas fissuras expressam os obstáculos arquitetados às resistências e insubordinações à ordem instituída.

As mudanças produtivas encetadas nas últimas décadas, apoiadas pelo ideário neoliberal, não só fragmentam e dispersam as classes trabalhadoras, mas propagam a percepção e o sentimento da necessidade de ser incluído na lógica e nos espaços hegemônicos. Esses trabalhadores marginalizados não são uma totalidade diametralmente oposta à totalidade dominante, à medida que se constituem objetiva e subjetivamente sob as reverberações do lugar de dominação que ocupam no conjunto das estruturas sociais.

A consciência de classe – como processo que determina a existência subjetiva da classe – é um fenômeno histórico, dialético, não desenvolve de forma inexoravelmente linear. Neste sentido, o desenvolvimento de uma consciência crítica por parte dos trabalhadores pobres só pode ocorrer a partir dos processos de constituição ideológica próprios à subalternidade a que são condicionados.

A articulação direta entre as reivindicações do mundo do trabalho com aquelas relativas à vida urbana e ao local de moradia nem sempre é realizada de forma organizada e coesa na maior parte dos movimentos sem-teto. Isso não significa que essas relações não sejam apreendidas e que as lutas pela cidade e sobre ela não digam respeito a um embate com as estruturas do capital. Entender o processo urbano como meio de controle sobre a produção e utilização da produção excedente é a conexão necessária para compreender o caráter classista da mobilização popular.

A forma e a gradação com que as organizações concebem esses antagonismos e se projetam no sentido de construção de relações sociais alternativas às que estruturam o capital

não são homogêneas. Não por isso deixamos de compreender estes movimentos como lutas que se contrapõem a dinâmicas de exploração e expropriação, que não se encerram no local de trabalho. Além disso, consideramos que, sendo a própria urbanização produzida, essas lutas dizem respeito a trabalhadores que, em grande parte, produzem concretamente a cidade.

Na organização e na ação coletiva dos sem-teto estão presentes conteúdos que, direta ou indiretamente, confrontam a produção capitalista da pobreza e da desigualdade por meio da legitimação quase absoluta da propriedade privada; bem como o sistema jurídico-político que a sustenta. Este processo aberto de conversão das contradições em contestação aponta para a interpelação do antagonismo originário da posição de classe ao passo que, no confronto com as estruturas que coordenam a reprodução das classes, articula-se a disputa pela organização da cidade enquanto processo sistêmico.

As lutas das classes trabalhadoras no âmbito da reprodução da força de trabalho não podem ser compreendidas como dissociadas das relações sociais de produção capitalista, de seus aspectos econômicos, políticos e ideológicos. Consideramos possível inferir que, apesar das limitações e dificuldades que condicionam os movimentos e as ações populares, a criação de táticas e estratégias de reformulação da sobrevivência urbana apresenta sua potencialidade transformadora, não pela força de condições já estabelecidas, mas, como bem definiu, Lefebvre (2001) pela desnaturalização delas.

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