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4 – A dissolução das formas anteriores ao capitalismo

CAPÍTULO III – OS PRINCÍPIOS DO PASSADO

III. 4 – A dissolução das formas anteriores ao capitalismo

As formas precedentes ao domínio do capital foram dissolvidas para dar lugar às novas relações sociais. Esta dissolução estabelece uma ruptura entre o objetivo da produção

destas formas de vida e o objetivo da produção capitalista, aquelas voltadas à produção de valor de uso, e esta dedicada à produção de valor.

A dissolução a ser discutida é de natureza universal, com o desaparecimento destas formas sociais. As comunidades enfrentavam periodicamente o perigo da suas dissoluções. Porém, eram desaparecimentos particulares, onde uma comunidade era destruída ou absorvida por outra após uma guerra. A comunidade vitoriosa repunha as suas condições de produção em bases similares. Os vencidos poderiam se tornar parte das condições inorgânicas que eram a base sobre a qual a comunidade mantinha o seu nexo interno. Como diz Marx:

“O único limite que pode encontrar a entidade comunitária em seu comportamento com as condições naturais da produção – a terra –… como com condições suas, é outra entidade comunitária que já as reclame como seu corpo inorgânico. Por isso é a guerra um dos trabalhos mais originários de todas estas entidades comunitárias naturais, tanto para a afirmação da propriedade como para nova aquisição desta” (MARX: 1989, 451).

A propriedade é usufruída por ser estabelecida uma relação com a comunidade. A propriedade aparece com condição para a existência, como condição natural da produção. Além disso, a condição de membro da comunidade é fundamental para a existência do indivíduo. A existência deste indivíduo é objetiva e subjetiva, não é cindida, como no capitalismo, onde foi preciso separar as condições objetivas das subjetivas. O indivíduo pertence a uma comunidade e se relaciona com a terra como propriedade sua e da comunidade.

A existência subjetiva pode ser tragada e identificar-se com as condições objetivas, mas somente na medida em que a comunidade deixa de existir para o indivíduo. A perda das condições objetivas faz desaparecer a subjetividade, a objetividade é pressuposta para a efetivação da subjetividade. No capitalismo dá-se o inverso: a existência subjetiva do trabalhador separou-se das condições objetivas. Além de perder a existência comunitária, perde as condições que lhe permitiam trabalhar como proprietário. A subjetividade do trabalhador no capitalismo é formada por sua perda das condições objetivas, algo que se deu na dissolução das formas anteriores ao capitalismo. Por isso, a dissolução desempenha um papel tão destacado na compreensão de Marx sobre a formação da sociedade capitalista.

A sociedade do capital é erguida sobre a dissolução das condições de produção das sociedades comunitárias restritas. O capital necessita da destruição da propriedade como resultado de uma vida tribal. Precisa da separação entre existência subjetiva e objetiva, precisa da destruição da propriedade anterior. O próprio fundo de consumo deve ser separado das condições de produção.

A dissolução é uma ruptura, por isso somente se pode falar de formações pré- capitalistas com ressalvas. Não há uma continuidade entre as formações anteriores e o capitalismo, assim como não há um desenvolvimento necessário que leve ao capital. A dissolução não pode ser explicada apontando um caminho histórico inelutável. É preciso apresentar as razões que permitiram que, em um certo ponto, as comunidades em decadência fossem substituídas pelo capitalismo, ao invés de darem origem a uma nova forma de comunidade.

As comunidades destruídas e substituídas por outras deram origem à escravidão e servidão. Estas formas são desenvolvimentos da forma tribal. Não estão em contradição com a vida comunitária restrita, antes significam uma das manifestações de sua força. A exceção é a forma asiática onde a relação com a terra ainda não é de propriedade, mas de posse. Diz Marx:

“... escravidão e servidão são tão somente desenvolvimentos posteriores da propriedade baseada na organização tribal. Modificam necessariamente todas as formas desta. A forma a que menos podem afetar é a forma asiática” (MARX: 1989, 453).

Aqui está explicitada uma contradição importante para entender o mecanismo de dissolução: servidão e escravidão são desenvolvimentos, mas afetam e modificam as formas onde surgem. O desenvolvimento modifica as relações originárias, colocando recorrentemente a mudança e reorganização da produção. A forma asiática consegue a maior permanência por estabelecer um proprietário geral como expressão do poder da comunidade. O desenvolvimento é restringido por não haver proprietários que dirijam suas produções particulares. As condições do progresso são limitadas e a contradição do desenvolvimento é controlada.

A propriedade cria novas bases para a atividade subjetiva; o indivíduo põe sua ação em efetivação. Desenvolvem-se as condições da apropriação natural. Porém, tal apropriação é dirigida para uma finalidade concreta de preservação da vida comunitária. A

produção é a ação efetiva da capacidade subjetiva, não havendo uma cisão entre a produção e o indivíduo, entre o indivíduo e suas condições objetivas. O objetivo da produção passa a ser a própria capacidade subjetiva em sua forma individual e comunitária. Como nos diz Marx:

“O objetivo de todas estas entidades comunitárias é [[sua]] conservação,

quer dizer sua reprodução no mesmo modo de existência, o qual constitui ao mesmo tempo o comportamento dos membros entre si e, por conseguinte, constitui a comunidade mesma. Mas, ao mesmo tempo, esta reprodução é necessariamente nova produção e destruição da forma antiga… De tal modo a conservação da comunidade antiga implica a

destruição das condições em que se baseia, se converte em seu oposto” (MARX: 1989, 454).

Tais comunidades vivem em uma tensão permanente entre a conservação e o desenvolvimento. Não havia conciliação possível entre as duas características. A proposta de Marx é voltada para a apresentação de uma solução para o dilema das comunidades restritas anteriores ao capital, e o da universalidade dominada pela objetividade, que é o capitalismo. Sua perspectiva é a de propor um modo de produção onde as condições objetivas estejam a serviço dos sujeitos e da comunidade, e onde o desenvolvimento das capacidades e da força produtiva humana não seja um fator de dissolução social.

As comunidades que subsistem por um maior período de tempo são aquelas onde a produção assume uma forma “tradicional”, preservando as condições da produção e da propriedade. A continuidade é a condição fundamental para a preservação das comunidades antigas. O desenvolvimento provoca a dissolução não apenas das formas de vida, mas também das formas em que se configuram os produtores. Diz Marx:

“No ato mesmo da reprodução não somente se modificam as condições objetivas,… a aldeia se torna cidade, a terra inculta, campo despejado, etc., mas que também se modificam os produtores, enquanto despertam novas qualidades, se desenvolvem a si mesmos através da produção, se transformam, constroem novas forças e novas representações, novos modos de inter-relação, novas necessidades e nova linguagem” (MARX: 1989, 455).

O desenvolvimento da comunidade é o seu principal fator de dissolução. No capitalismo ocorre o inverso: a dissolução se torna a marca da sua conservação. O

capitalismo conserva a si mesmo destruindo as formas tradicionais. Inicia-se o período de transformações permanentes, caracterizado pelo domínio do capital. Porém, esta combinação continuamente nova das forças produtivas produz ininterruptamente o domínio dos objetos sobre os indivíduos. Uma sociedade que substituísse o modo de produção capitalista deveria suplantar este domínio, assumindo formas distintas de relação sujeito- objeto. Os objetos teriam que retornar ao seu papel de instrumentos para a satisfação das necessidades humanas, mas com a contínua evolução destas necessidades10.

As relações entre as comunidades antigas provocavam a dissolução. Essa dissolução é essencialmente a modificação da natureza da propriedade em sua estrutura comunitária. A relação com a propriedade (o que implica a relação com a terra, com os meios e objetos de trabalho) sofre alterações e se estabelecem novas formas de existência. Tal substituição foi, durante longo tempo, apenas entre comunidades distintas. Porém, o capitalismo eliminou esta sucessão de povos e comunidades distintas, substituindo-as por uma formação social global.

10

Devemos ressaltar que não podemos confundir a idéia de necessidade em Marx com a concepção de necessidade para a Economia Política. Nesta, as necessidades de objetos e da subsistência aparecem como ilimitadas e os recursos são escassos, o que denuncia o domínio dos objetos sobre os sujeitos. Daí derivam os economistas que a subsistência deve ser a motivação para a produção, algo que encontramos em Malthus e Ricardo. Para Marx a necessidade imposta pela Economia Política é a miséria e a redução das necessidades humanas ao patamar dos animais, sendo a destruição da verdadeira necessidade humana. Marx discute este tema nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844.