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A distinção entre conhecimento e probabilidade

No Tratado, Hume apontou sete tipos de relações filosóficas. O ‘conhecimento’ se constitui do que é dado por quatro tipos dessas relações: (i) semelhança; (ii) contrariedade; (iii) graus de qualidade e (iv) proporção de quantidade ou número. Tais relações são objetos de conhecimento e certeza porque dependem somente das ideias comparadas entre si. Já ‘probabilidade’ se constitui do que é dado pelos outros três tipos de relações filosóficas: (v) identidade; (vi) situações no

tempo e no espaço e (vii) causalidade. Os quatro primeiros tipos de

relação filosófica são, então, segundo os termos utilizados por Hume, os que fundamentam o conhecimento e a ciência. Essas quatro relações não são problemáticas; quer dizer, as mesmas são descobertas por intuição, sem investigação ou raciocínio; em outros termos: são relações que saltam aos olhos [à mente] como é o caso com a de semelhança, pela qual, nas palavras de Hume, “quando dois ou mais objetos se assemelham, a semelhança logo salta aos olhos, ou, antes, à mente, e quase nunca requer novo exame” (HUME, 2001 p. 98). As relações de

identidade, de situações no tempo e no espaço e de causalidade

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“relações de ideias e questões de fato” (KEMP SMITH, 2005 p.350, tradução nossa).

35“Na distinção entre conhecimento e crença, o que interessa principalmente a

Hume é o uso que ele propõe para a distinção, ou seja, como delimitação da esfera de conhecimento” (KEMP SMITH, 2005 p. 349, tradução nossa).

consistem em uma comparação que descobre relações constantes ou inconstantes entre dois objetos, e esta comparação é feita quando os dois objetos se apresentam aos sentidos, quando apenas um deles está presente e até mesmo quando nenhum deles está presente.

Ao introduzir o assunto central da Seção IV da Investigação, [dúvidas céticas sobre as operações do entendimento], Hume resumiu e reapresentou a distinção anteriormente apontada no Tratado. Segundo ele, o entendimento [ou a razão humana] possui apenas dois tipos de objetos: relações de ideias e questões de fato, distinção já citada acima, quando Kemp Smith atribui a Hume uma adaptação da análise de Locke. As relações de ideias fazem-se de tudo aquilo que pode ser dado como certo, intuitiva ou demonstrativamente e que se compõe de objetos da matemática e da geometria. Segundo Kemp Smith, relações de ideias e de questões de fato representam dois reinos diferentes, ou seja, “in knowledge the opposite of what is known is inconceivable; outside the realm of knowledge we have only the sheerly de facto [tradução livre: o essencialmente real], as disclosed in experience” (KEMP SMITH, 2005 p.365)36.

Hume não apresentou nenhum tipo de dúvida ou de questionamento cético no que se refere às relações de ideias. Em suas palavras: “Que 'três vezes cinco é igual à metade de trinta' expressa uma relação entre esses números. As proposições dessa espécie podem ser descobertas pela simples operação do pensamento sem dependerem do que possa existir em qualquer parte do universo” (HUME, 1973 p. 137). A dúvida cética foi introduzida especificamente em relação ao segundo tipo de objeto da razão, ou seja, em relação às questões de fato. Essas questões não têm a mesma natureza das relações de ideias e em relação a elas não é possível encontrar evidências demonstrativas ou intuitivas de sua verdade como na matemática e na geometria. Uma questão de

fato nunca implica em contradição; seu contrário é sempre possível e

sempre concebível pelo entendimento.

Como seria possível demonstrar a falsidade de qualquer proposição referente a questões de fato que não estão imediatamente presentes aos sentidos e à memória? Seria vão tentar demonstrar a

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“em conhecimento o oposto do que é conhecido é inconcebível; fora do reino do conhecimento, temos apenas o essencialmente ou real, como dado na experiência” (KEMP SMITH, 2005 p.365, tradução nossa).

falsidade de qualquer proposição referente ao futuro, pois, se isso fosse demonstrativamente falso, implicaria uma contradição e esta seria concebida pelo entendimento. A proposição 'que o sol não nascerá amanhã' é tão inteligível quanto à proposição contrária, de que ele nascerá.

Se nossa evidência sobre as questões de fato não surge intuitivamente nem demonstrativamente, qual é a evidência que nos garante qualquer existência real de uma questão de fato além do testemunho imediato dos sentidos e da memória? A resposta de Hume é de que todos os nossos raciocínios sobre questões de fato fundam-se nas

relações de causa e feito, e somente através dela é que conseguimos

ultrapassar a memória e os sentidos. Cabe, então, perguntar como chegamos ao conhecimento desta relação tão importante.

Na Investigação, em resposta a essa questão, Hume apresenta uma proposição geral que não admite exceção: “O conhecimento de relações causais nunca se dá a priori.” Esse tipo de conhecimento nunca é um dado anterior à experiência; sua origem está no fato de observarmos que certos objetos particulares estão conectados a outros; logo, trata-se de algo a posteriori. Adão, por exemplo, mesmo de posse de todas as faculdades racionais jamais poderia inferir das qualidades observáveis da água que nesta se afogaria ou das qualidades observáveis do fogo que este o consumiria. Nenhum objeto é capaz de revelar suas causas ou os efeitos que delas decorrerão pelas simples qualidades observáveis através dos sentidos, nem nossa razão é capaz de inferir algo a este respeito sem o recurso à experiência.

A causalidade é a principal fonte de nossas crenças sobre

questões de fato. A proposição geral 'o conhecimento de relações

causais nunca se dá a priori' é também confirmada, segundo Hume, nas situações em que nos deparamos com objetos que outrora nos eram desconhecidos. Nesses momentos, sentimos perfeitamente a incapacidade de a razão prever o que possivelmente decorreria desses objetos. Como exemplifica Hume, não há “quem imagine que a explosão da pólvora ou o poder de atração do ímã pudessem ser descobertos mediante argumentos a priori” (HUME, 1973 p. 139). O mesmo ocorre quando há um mecanismo complexo ou uma estrutura secreta de partes, como no caso dos efeitos dos alimentos sobre nosso corpo. Essa proposição geral serve como base para a introdução das

dúvidas céticas a respeito tanto das operações do entendimento quanto das questões de fato.