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A divulgação da museologia portuguesa na imprensa periódica

Capítulo 1 – Do museu privado ao museu público

1.3. A divulgação da museologia portuguesa na imprensa periódica

Empenhado no fundamento das Luzes no final de setecentos, Ribeiro Sanches preconiza um programa teórico da pedagogia a adoptar nos museus como um repositório antiquado de recursos naturais, em que a imaginação que se oferece à vista exercite a memória através de imagens sensíveis. “Neste Gabinete vemos as Aves, os Peyxes, os Animaes, os Insectos, as Arvores, da Azia e da América; e pela mesma separação vamos notando os Mineraes, as Pedras, as marmores, as pedras preciosas, os Saes, os Bitumes, os Balsamos, e as differentes terras e barros; esta he a Historia Natural, e como he tão natural saber para que servem estas produções lhes dirá as propriedades e seu uzo na Medicina e nas artes mechanicas e

liberaes”220. A confirmar a heterogeneidade das colecções, a definição de Museu no Novo

Diccionario da lingua portuguesa […], em 1806, oculta o seu carácter público, restringido ao público leitor o “lugar onde se guardão producções da Natureza, e da Arte, moedas,

medalhas”221.

O movimento associativo nascia com o novo regime liberal, tais como a sociedade de ciências médicas e de literatura do Porto, fundada em 1833. Os fins eram sempre culturais e algumas destas associações publicavam anais, por desejarem propagar conhecimentos úteis no domínio da vida moderna e promover melhoramentos nos interesses materiais da Nação. Alguma imprensa aparece à estampa como Sociedade Promotora, designação que aparece retomando a ideia de 1820 das Sociedades Civilizadoras, através do lançamento de revistas pitorescas, humorísticas e artísticas, cuja estrutura editorial aparece consubstanciada nos gostos e modas na prática das colecções, pois os fait-divers e os bric-à-brac traduzem-nos

comportamentos da sociedade portuguesa de Oitocentos evidentes na imprensa escrita222.

Como vimos no ponto anterior, a crítica, teorização e sistematização da actividade museológica por escritores nacionais no século XIX foram, até muito tardiamente, praticamente

inexistente. Isabel M. Martins Moreira223 apresenta-nos alguns elementos para a tentativa de

sistematização do conceito de museu público em Portugal. No seu trabalho refere que em 1844, Francisco Solano Constancio o anuncia como “depósito de productos da natureza ou da arte (...)

de história natural, de pintura, escultura”224. Já em 1909, Esteves Pereira define-o como um

“edifício onde se guardam os exemplares e objectos raros ou curiosos relativos às sciencias,

bellas artes, letras e industriais, quer antigos, quer modernos”225. Conclui a autora com António

220

Madalena Brás Teixeira, Ibidem, p. 188. 221

In Novo diccionario da língua portugueza composto sobre os que até ao presente se tem dado ao prelo, e acrescentado de vários

vocábulos extrahidos dos clássicos antigos, e dos modernos de melhor nota, que se achão universalmente recebidos, Typographia

Rollandiana, Lisboa, 1806. 222

A própria análise da acção de censura na imprensa portuguesa, durante o período da revolução francesa, contra Voltaire e Rousseau, não deixavam de anunciar as novas ideias pedagógicas dos museus públicos. A nova sociedade liberal desejava ser informada e discutir essa informação, por isso obras incluídas no Índex Censório aparecem em livrarias de nobres, clérigos e burgueses do tempo, literatura progressista solicitada no estrangeiro através da diplomacia ou adquirida a viajantes estrangeiros. Factores que contribuíram para o movimento a favor da liberdade de imprensa, que se desenvolvera entre os vintistas e tivera o seu coroamento legal pelo decreto de 18 de Julho de 1821, reacendeu-se logo a seguir à vitória de D. Pedro. A lei de 22 de Dezembro de 1834 traduz este reatamento de forma clara, na medida em que garante uma liberdade integral e garante da constitucionalidade. RAMOS, Luís, A. Oliveira, O Porto e as Origens

do Liberalismo, Publicações da Câmara Municipal do Porto, Gabinete de História da Cidade, Porto, Janeiro de 1980.

223

In MOREIRA, Isabel M. Martins, Museus e Monumentos em Portugal (1772-1974), Universidade Aberta, Lisboa, 1989. 224

Desde 1818 publica em Paris os Anais das Ciências, Arte e Letras, cujos artigos assumem uma enorme importância teórica e crítica no quadro da cultura social portuguesa. Francisco Solano Constâncio, Novo diccionario critico e etymologico da língua portufueza, 2.ª ed., Paris, 1844. In Idem, Ibdem.

225

PEREIRA, Esteves E RODRIGUES, Guilherme, Portugal – Diccionario histórico, biographico, bibliographico, heráldico, chorographico,

de Morais Silva que, em 1945, o menciona como “estabelecimento público” 226, onde se reúnem colecções de objectos de arte, de erudição, de ciência, de indústria, de curiosidades de todas as espécies. Restrito pelo enfoque histórico e crítico, os excertos evidenciam indirectamente o atraso da museologia portuguesa relativamente ao museu público.

Algumas secções da imprensa periódica ilustrada, ao longo do século XIX e primeira metade do XX, esforçaram-se por divulgar a actividade museológica portuguesa, no sentido da investigação científica e estudo da cultura artística, como o objectivo de instruir e recrear o

grande público. Apesar da “inexistência da função museológica em Lisboa, e muito no Porto”227,

o Museu Literario, Util, e Divertido, de 1833, dirigia-se às “pessoas, que gostão de se instruir, e recrear por boa leitura, e mesmo para a Mocidade estudiosa”; O Museo, de 1836, que se dedicava ao “estudo da Litteratura, das Sciencias e das Artes, vulgarizando assim

conhecimentos de tanta utilidade”, e que adoptava como modelo publicações estrangeiras, nomeadamente a Penny Magazine inglesa, o Magasin Pittoresque e Musée des Familles francesas, e o Semanario Pintoresco espanhol; O Panorama - Jornal Litterrario e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, editado de 1837 a 1868, que Alexandre Herculano foi director, era a mais importante revista de divulgação do seu tempo e destinada ao grande público. Mais do que as contribuições ideológicas, as grandes ideias do século, aos românticos da Geração de 70, Herculano permitiu a tantos outros escritores, até ao final do século XIX, descobrir novos estudos para a recoberta de modelos estrangeiros, seguir teorias e experimentar novos géneros literários de difusão da prática museológica.

A opinião pública tornava-se uma força viva que tendia a organizar-se através da imprensa liberal, em jornais e revistas culturais ilustrados. Os semanários históricos aparecem nesta altura, o primeiro dos quais desde o começo de 1835, o Arquivo Popular, entre 1837- 1843, ilustrando monumentos, quadros célebres, alargando a informação museológica. O Museu, Bi-mensal musico e litterario, de 1838; O Museu Portuense – Jornal de Historia, Artes, Sciencias Industriais e Bellas Letras, editado pela Sociedade da Typographia Commercial Portuense, entre 1838 e 1839, e que se assumia com “intenções patrióticas [para] concorrer para o progresso da civilização nacional”; o Annunciador Portuense de 1839, O Museu Pittoresco – Jornal d’Instrução e Recreio, de 1842, vocacionado para a “diffusão das luzes [e

para os] puros sentimentos da verdadeira philanthropia”228; a Ilustração de 1845; O Espectador

Portuense de 1848; o Archivo Pittoresco de 1857-68; o Muzeu Historico e Recreativo, publicado entre 1861 e 1863, era direccionado em três linhas mestras, “obras históricas [...] parte

recreativa [e] parte noticiaria”; o Museu Litterario – Semanario de Instrucção e Recreio, de 1876, apresentado por Pinheiro Chagas, como um “pequenino sanctuario às letras”; o Museu Illustrado – Álbum Litterario, Mensal, publicado no Porto, entre 1878 e 1879, pretendia “reunir n’uma ordem lógica os trabalhos dos nossos modernos homens e letras [e] ocupar o logar de motor da civilização”; e já no fim do século, o Occidente, editado de 1878 a 1915.

226

António de Morais Silva, Novo dicionário compacto da língua portuguesa, 10.ª ed., Lisboa, 1945. In Idem, Ibdem. 227

FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no século XIX, Vol. I, Livraria Bertrand, Lisboa, 1966, p. 405. 228

Ver Anexo C, Lista de Documentos, N.º 1. O Museu Pittoresco – Jornal d’Instrução e Recreio, 1.º vol., Maio de 1842, Lisboa, Impressão de Galherdo e Irmãos, Rua da Procissão, n.º 45.

Procurando encontrar para a arte uma utilização fabril, ligando artes e ofícios, ideia progressista desejável mas relativamente tardia e efémera, o Museu Technologico – revista das Industrias Portuguezas e Estrangeiras e dos Principios Scientificos em que as mesmas se fundam, editada entre 1877 e 1878, é a única que, sob a designação de “Museu”, se dedica à indústria e ao seu desenvolvimento tecnológico. Entre outros princípios propõe-se “descrever os processos adoptados nos estabelecimentos industriaes mais importantes de Portugal,

determinando ao mesmo tempo os princípios scientificos em que os primeiros se fundam; indagar as sucessivas transformações por que elles têm passado, até attingir o seu actual estado de perfeição”.

Já no século XX, O Muzeu Illustrado – Magazine semanal de instrucção e recreio, de 1907, afirmava-se como um “magazine popular”, economicamente acessível a uma larga camada da população. Entre os seus objectivos destacava o facto de querer “ser um verdadeiro Muzeu”, onde pudesse difundir “tudo que pode interessar a mocidade intelligente e curiosa, mas também espalhar pelas nossas familias portuguezas uma grande porção de noções úteis à vida familial, à economia domestica, à hygiene geral, que por completo se ignoram e que ninguém em Portugal se encarregou jamais de vulgarizar”. Aarão de Lacerda, Armando de Mattos e Vasco Valente dão à estampa, em 1934, o Museu, onde expunham um “plano literário de uma grande extensão panorâmica”. Procuravam integrar Portugal no “concerto das outras nações, pondo bem alto a nossa História, a contribuição dos nossos maiores para a génese da

civilização contemporânea”. O Museu – Revista de Arte, Arqueologia, Tradições, publicada em 1942, sob a orientação de Aarão de Lacerda e Vasco Valente, pretendia invocar “a grande causa da Arte”, segundo as linhas orientadoras do Círculo Dr. José de Figueiredo.

A imprensa periódica que acabámos de referir tinha como principal objectivo a divulgação da museologia portuguesa que, segundo o Museu Illustrado – Álbum Litterario editado no Porto, entre 1878 e 1879, “tanto transpõe o reposteiro do gabinete do rico, como o albergue do

proletariado”. No entanto, a intenção não foi acompanhada de textos que possam ser

considerados com orientação museológica, nem a acção tinha público suficiente para sustentar tal empreendimento. Sem deixar de haver consciência do papel da imprensa ilustrada, a constatação desta impossibilidade tornou pouco convincente a investigação, e a consequente

difusão, do conhecimento da cultura artística em Portugal no último quarto do século XIX229. Em

1863, o Arquivo Pitoresco reporta-se a um país, “onde desgraçadamente tanto se desconhece as Belas-Artes”, caracterizando a ineficácia das obrigações expositivas das Academias, os esquemas do antigo mecenato e da fraca protecção aristocrática. A partir de 1874, A Actualidade, dirigido por Teófilo Braga, debate os problemas do município com ardor, cuja imobilidade do Museu Municipal do Porto é uma preocupação da nova mentalidade da imprensa local.

229

Apesar de representarem a situação empírica da investigação cultural portuguesa na época, a publicação dos dois inventários mais importantes foram o Portugal Antigo e Moderno de Pinho Leal, cujos doze volumes apareceram de 1873 a 1880, e a História dos

A partir da visão de conjunto da imprensa periódica portuguesa, na tentativa de divulgar a acção museológica, vemos que os valores emergentes do liberalismo português foram mais ideológicos do que culturais, pois assistimos ao lançamento e à vida efémera de certo número de revistas para uma especialização cultural e as limitações temáticas da sua informação, bem como o próprio destino que tiveram. O desenvolvimento da actividade editorial na segunda metade do século XIX, com o aperfeiçoamento dos processos de reprodução da imagem, a difusão extraordinária da gravura, da fotografia e do postal ilustrado, permite-nos dispor de um manancial informativo sobre alguns dos aspectos da vida cultural da cidade do Porto, e em particular das suas instituições museológicas.

Num país que permanece culturalmente imóvel no seio das suas revoluções, a doutrina pedagógica da museologia portuguesa na imprensa periódica ficava apenas subentendida, porque não tinha uma conveniente orientação do programa anunciado, pois a informação concentrava-se ao nível da curiosidade. Esta grande amálgama de informação circunscrita ou diversificada, viria a desencadear, a partir da década de 80 do século XIX, os primeiros estudos e comentários científicos sobre a museologia portuguesa, em artigos publicados por Sousa Holstein e Joaquim de Vasconcelos, que aproveitaram as novas possibilidades técnicas proporcionadas pela novidade fotográfica.

No entanto, o entusiasmo pela civilização da imagem já vinha desde 1852, quando um quotidiano do Porto, o Periódico dos Pobres, edição de 19 de Abril, falava da ilustração como vantagem do olhar, uma “linguagem características dos nossos tempos”. O autor anónimo do artigo considerava que uma estampa teria mais informação artística que os faustosos livros de iluminuras, acrescentando, “hoje (...) a ciência é destinada a entrar pelos olhos e não mais pelos ouvidos”, coincidindo com a função pública dos museus portugueses do século XIX, e era, de resto, a inauguração do Museu Municipal do Porto que servia de pretexto ao entusiasmo pela informação visual, que precisava cada vez mais de um suporte material de divulgação. À medida que a cidade do Porto cresce e se transforma, desenvolve-se a vontade de a conhecer, de descobrir as permanências e mostrar as novidades, como que em busca de uma nova identidade local.